Apesar do corte pela metade nas tarifas pagas em três praças de pedágios da BR-290 (de Guaíba a Osório), em 2017, a renovação do contrato para manutenção da rodovia por um ano saiu mais caro do que deveria aos usuários. De acordo com o Tribunal de Contas da União (TCU), os dados que embasaram os novos preços foram superestimados pela Concepa.
Na prática, as tarifas deveriam ter sido reduzidas de R$ 3,50 para R$ 1,60 e de R$ 7,10 para R$ 3,20. Como isso não ocorreu, a empresa teria alcançado lucro irregular de R$ 72,4 milhões no período, segundo o relatório do TCU.
GauchaZH teve acesso a detalhes da investigação que culminou com o fim do contrato de exploração da estrada pela concessionária por 21 anos. Em documentos apreendidos pela Polícia Federal na Operação Cancela Livre, deflagrada em agosto de 2017, há indícios de que a empresa maquiou dados por pelo menos cinco anos para superestimar os gastos que tinha na operação e na conservação da rodovia.
O material traz a reprodução de uma conversa entre dois diretores ligados à Triunfo Participações e Investimentos, holding que controla a Concepa e outras empresas. No diálogo, um dos executivos afirma que seria preciso "engenhar a margem com custo" da renovação.
Para o TCU, "engenhar" significava combinar o valor ideal da tarifa para obter lucro de R$ 100 milhões em um ano, sendo que o máximo previsto no novo contrato pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) era de cerca de R$ 36 milhões.
"Há elementos que evidenciam uma ausência de boa-fé por parte da concessionária que, sabidamente, conhecia seus reais custos de operação e conservação, os quais são sensivelmente inferiores aos indicados na contabilidade", diz trecho de relatório elaborado pela área técnica do TCU.
Para executar serviços de operação e conservação da freeway, a Concepa contratava duas companhias também pertencentes ao grupo Triunfo: Maestra e Rio Guaíba.
Ao analisar os números propostos na renovação da concessão por mais um ano, os auditores do tribunal se surpreenderam ao ver que os dados, fornecidos pela própria Concepa, consideravam como investimento na rodovia valores maiores do que efetivamente gastos pelas empresas subcontratadas para a função. Os técnicos concluíram que a diferença nos valores foi revertida como lucro para o grupo Triunfo.
Apenas em 2015, as demonstrações contábeis da empresa Rio Guaíba apresentavam receita líquida de R$ 52,9 milhões, pagos na totalidade pela Concepa. Do total, somente R$ 14 milhões foram utilizados na prestação de serviços, enquanto o lucro líquido declarado pela subcontratada foi de R$ 30,2 milhões. Situação semelhante ocorreu com a Maestra.
A manobra contábil e fiscal já havia sido percebida pela Receita Federal, que aplicou autuação tributária contra a concessionária entre 2008 e 2011.
O TCU esclarece que não seria obrigação da ANTT, responsável por fiscalizar as concessões, monitorar a contabilidade das empresas. No entanto, ao utilizar esses dados para calcular a nova tarifa de pedágio, o órgão teria sido imprudente.
— A ANTT usou uma informação que não conhecia. Ao fazer isso, assumiu risco de utilizar dados que poderiam não ser reais, e foi o que aconteceu — relata o diretor da Secretaria de Fiscalização de Infraestrutura Rodoviária do TCU, Fábio Amorim.
Outro ponto que impactou no cálculo de um valor mais alto que o devido para os pedágios foi a projeção da ANTT estimando apenas a expectativa de crescimento da frota durante 12 meses, sem considerar o aumento de tráfego que ocorreria devido à redução do custo para usar a rodovia.
Após os apontamentos dos auditores, o ministro Augusto Nardes, do TCU, concedeu medida cautelar determinando nova redução das tarifas. A Concepa questionou a decisão no Supremo Tribunal Federal (STF), alegando arbitrariedade e falta de acesso à íntegra dos cálculos da Corte de Contas.
Apesar de o ministro Marco Aurélio Mello, do STF, suspender a cautelar, a empresa decidiu não renovar o contrato por mais um ano, e deixou a administração da estrada em 3 de julho.
Além de ser obrigada a reduzir as tarifas, o TCU pretendia cobrar da companhia a devolução dos R$ 72,4 milhões cobrados a mais durante a primeira renovação.
Procuradas, ANTT e Concepa não quiseram gravar entrevista. GaúchaZH enviou questionamentos por e-mail e a agência e a empresa responderam por meio de notas.
O que disse a ANTT
A Agência assumiu a responsabilidade de administrar o contrato de concessão da BR-290/RS, conhecida como freeway, firmado em 1997 entre a União e a Concepa. Desde a sua criação, em 2001, a ANTT tem atuado no sentido de aperfeiçoar a regulação dos contratos de concessão federais. O processo de estruturação da Rodovia de Integração do Sul (RIS) é um exemplo nesse sentido. Diversas lacunas regulatórias foram preenchidas, oferecendo novos instrumentos para que os contratos sejam mais rigorosos mas, ao mesmo tempo, suficientemente dinâmicos para atender às mudanças que ocorrem ao longo dos 30 anos de concessão. Em agosto de 2017, os estudos da RIS foram finalizados e protocolados no TCU, com vistas à sua análise, para a publicação do edital de concessão. Foram realizadas diversas reuniões com o Tribunal, e os posicionamentos técnicos do TCU sobre a questão adentraram em temas regulatórios controversos e complexos, o que resultou em inovações em diversos pontos do contrato, gerando importantes avanços no modelo regulatório.
Quanto as questões tarifárias levantadas:
Para cada concessionária existe, anualmente, uma data em que reajustes e revisões tomam efeito. O reajuste refere-se ao repasse da inflação, medida pelo IPCA. A revisão ocorre mediante avaliação de eventos que desencadeiem desequilíbrios na equação econômico-financeira contratual. Com base nos contratos e nas Resoluções ANTT nos 675/2004, 1187/2005 e 3651/2011, avalia-se o mérito desses eventos e, caso sejam procedentes, calcula-se os impactos tarifários. As informações específicas com as avaliações das concessões são publicadas na página de cada concessionária, em http://www.antt.gov.br/rodovias/Concessoes_Rodoviarias.
Diferentemente de obras públicas rodoviárias, as concessões federais do setor utilizam modelo regulatório de price-cap. Ou seja, a partir da tarifa ofertada em leilão pela companhia vencedora, anualmente se aplicam reajustes e revisões para definição da tarifa teto a ser praticada. Nunca coube no modelo, desde sua origem nos anos 1990, aferição de orçamentos de obras ou quaisquer outros custos, como operação e conservação. Por força da matriz de riscos contratual, variações de custos para consecução de obrigações cabem exclusivamente às concessionárias. A avaliação das companhias é baseada em aferição dos parâmetros desempenho de suas entregas, não em gastos para execução.
As informações sobre custos são obtidas a posteriori pela ANTT, por meio de demonstrativos contábeis. Por meio desses, constata-se que os custos por faixa da CONCEPA estão em linha com os das demais concessionárias da 1ª etapa de concessões rodoviárias federais, ocorrida nos anos 1990. Como ocorre para qualquer companhia aberta, as auditorias das informações contábeis são efetuadas por empresas especializadas de auditoria independente, autorizadas a operar e reguladas pela CVM. Relatórios e demais informações contábeis são regularmente publicados nos sítios eletrônicos das concessionárias e da CVM. No caso das concessionárias geridas pela ANTT, os relatórios anuais também constam na página http://www.antt.gov.br/rodovias/Relatorios/Relatorios_Financeiros.html.
Desse modo, ultrapassam a esfera de atribuições da ANTT as questões relacionadas à elaboração dessa documentação, assim como a manifestação acerca de investigações realizadas por outros órgãos.
Cabe lembrar finalmente que a ANTT tem como uma de suas finalidades harmonizar os interesses dos usuários e das concessionárias de rodovias federais, considerando a necessidade constante de conservação e investimentos nas rodovias, além da manutenção da segurança e do conforto dos usuários durante a sua utilização.
O que disse a Concepa
A Triunfo Concepa esclarece que ao longo dos 21 anos de concessão as tarifas de pedágio foram estabelecidas pela Agência Nacional de Transportes Terrestres. Durante o prazo original, os primeiros 20 anos, a tarifa foi a resultante de um processo de licitação. Em relação aos valores praticados no último ano de concessão, quando houve extensão do contrato pelo prazo de um ano, por decisão da agência reguladora, a tarifa foi calculada pela própria agência, sem gerência da Concepa, que apenas concordou com a tarifa resultante do método de cálculo adotado pela ANTT. Ainda, de acordo com a modelagem da concessão, os valores efetivamente gastos em manutenção, conservação e investimentos, além do risco do tráfego, sempre foram riscos da concessionária, e sua eventual variação não acarreta impacto na tarifa de pedágio. A Triunfo Concepa é uma empresa privada, com balanço financeiro auditado e publicado anualmente, disponível no site da empresa, com contrato que definia a tarifa, e não o lucro da concessionária. Quanto ao pavimento do trecho que era concedido à empresa, todo o trabalho desempenhado pela concessionária foi fiscalizado pela Agência Nacional de Transportes Terrestres durante os 21 anos de concessão. Na última pesquisa da Confederação Nacional do Transporte, divulgada em novembro de 2017 – um dos mais relevantes e rigorosos estudos sobre as condições de rodovias em todo o país – o trecho então concedido, que totalizava 121 quilômetros, foi avaliado como “ótimo” em 104 quilômetros e como “bom” em cerca de 17 quilômetros. Por fim, sobre as alegações da unidade técnica do Tribunal de Contas da União, o Supremo Tribunal Federal, nos autos do mandado de segurança nº 35.715, impetrado pela Triunfo Concepa, decidiu suspender todas as deliberações da corte de Contas, em razão da ocorrência de graves vícios processuais que violaram direitos da concessionária. Esses vícios comprometem toda a instrução daquele feito e a consistência dos elementos nele colhidos.