Apesar dos sinais de arrefecimento da greve dos caminhoneiros e dos bloqueios parciais ou totais de rodovias no Sudeste, no Nordeste e no Norte do país, o Sul ainda é uma região de efervescência. Os pontos de manifestação seguem numerosos e as restrições de abastecimento e circulação de mercadorias e caminhões ainda são consideráveis.
O movimento já não é liderado por profissionais da boleia. Ruralistas, empresários e comerciantes se juntaram aos atos, agregando pautas diversas, e tentam não deixar a centelha apagar. Retrato disso é a cidade de São Luiz Gonzaga, de 35 mil habitantes, distante 500 quilômetros da Capital.
A greve dos caminhoneiros no município do noroeste gaúcho levou centenas de pessoas a participarem de uma carreata até o 4º Regimento de Cavalaria Blindado (4ºRCB), na segunda-feira, onde lideranças do grupo pediram intervenção militar ao serem recebidas pelo comandante Marcus Vinicius Scussiato.
Nas fileiras deste movimento, não estão em maior número os caminhoneiros autônomos, que dirigem o próprio veículo e que há 10 dias iniciaram a paralisação reivindicando redução do litro do diesel e preço mínimo do frete, pautas já atendidas. Como em outros pontos de manifestação pelo Estado, a greve persiste pela adesão de outros grupos.
Em São Luiz Gonzaga, nos últimos dias, entre as lideranças e integrantes da retaguarda dos protestos, estão empresários do setor de transportes, agropecuaristas, fazendeiros, comerciantes e até criadores de cavalo crioulo. A pauta principal passou a ser a intervenção militar e a manifestação de indignação generalizada com a política brasileira. O atendimento das exigências iniciais dos caminhoneiros já não é mais o foco.
Na segunda-feira, quem liderou o deslocamento até a unidade militar em São Luiz Gonzaga foi o empresário do setor dos transportes Gilmar Pillon Schommer, proprietário da GP Transportes, localizada no bairro Centenário. Ele confirma ser empreendedor, mas diz que sua frota se limita a dois veículos.
Antes da carreata, distribuiu dezenas de adesivos veiculares com a inscrição "intervenção militar já". Os materiais tiveram os custos rateados entre empresários da cidade.
Diante do comandante militar, Pillon, ao justificar o clamor por intervenção, declarou: "Viemos aqui pedir para que olhem pelo povo" e "não acredito que o período militar seja como contam os professores de história", conforme registrado pela Rádio Missioneira.
Questionado pela reportagem de GaúchaZH, Pillon afirmou não ter conhecimento de que o locaute — greve movida por empresários — é proibida pela legislação brasileira.
— Acho que não (sobre possível locaute). Temos movimento pacífico, não temos caminhão obstruindo a pista. Essa caminhada do pessoal (ao 4º RCB para pedir intervenção), eu mesmo tenho dúvidas a respeito, mas a comunidade nos pede, e ela nos ajuda, então uma mão lava a outra. Estamos tranquilos — diz Pillon, que apontou o "Mercosul e região de São Luiz" como áreas de atuação da sua empresa.
Ao lado dele, também defendendo a opção pela ruptura institucional, estava Bruno Tagliari. Ele, de fato, é um caminhoneiro autônomo de região de São Luiz Gonzaga. Já foi empreendedor, tendo uma loja de peças veiculares em São Nicolau, e seu pai é um produtor rural de médio porte, possuindo 200 hectares de terra. Tagliari relata o status atual das manifestações.
— Os caminhoneiros perderam o controle da situação. Quem assumiu foram os agricultores, o pessoal do comércio, das empresas, da sociedade em geral. Eles não querem arredar pé. Os próprios caminhoneiros que estão parados nos postos não querem sair, alguns dizem que os patrões deles, os donos dos caminhões e das empresas, estão orientando para que não saiam de onde estão — afirma Tagliari.
Um dos engajados em São Luiz Gonzaga é o empresário do agronegócio Nico Martins, que atua no setor de carnes bovinas. No seu perfil do Facebook, postou imagens de dezenas de caminhões parados à beira da rodovia, de pessoas se manifestando em frente ao 4ºRCB e de uma montanha de pães recheados com fiambres frescos que seriam levados por ele para alimentar grevistas no café da manhã.
— Conheço ele (Nico). Está ajudando. Ele e mais uma centena de empresários. Temos uma central onde ficam os alimentos e mantimentos. E isso é distribuído aos caminhoneiros parados. Tem muita comida aqui. É impressionante — conta Tagliari, organizador de grupos de apoio ao pré-candidato à Presidência Jair Bolsonaro (PSL-RJ).
Procurado, Nico não atendeu às ligações de GaúchaZH.
Em março de 2018, Tagliari e Pillon foram entrevistados, em São Miguel das Missões, enquanto participavam de protestos contra a caravana do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que enfrentou a maior resistência dentre todos os Estados brasileiros no Rio Grande do Sul. Naquela ocasião, Tagliari se identificou como "produtor rural".
Em São Luiz Gonzaga, não há bloqueio das rodovias BR-285 e ERS-168. Os manifestantes se concentram em estacionamentos de postos de combustíveis e nos acostamentos da pista, onde portam cartazes e estacionam máquinas agrícolas.
O cenário radicalizado está levando entidades a retiraram o apoio da greve dos caminhoneiros. No município do noroeste gaúcho, depois da carreata de clamor por intervenção militar, a Cooperativa Tritícola Regional Sãoluizense (Coopatrigo) anunciou nesta terça-feira o seu afastamento.
"A Coopatrigo (...) vem a público solicitar o fim deste movimento, pois várias reivindicações já foram atendidas e outras estão em estudo e também por ele estar tomando outros rumos, como o político-ideológico, campo este que a cooperativa não tem posicionamento", diz trecho da nota da instituição.
A Federação dos Trabalhadores na Agricultura no Rio Grande do Sul (Fetag-RS) também retirou o suporte.
— Nos somamos desde o início por entender que a pauta dos caminhoneiros é justa. E a questão do diesel é importante para o agricultor. Mas sempre condicionamos o nosso apoio à passagem nas rodovias de leite, cargas vivas e ração para os animais. E estamos tendo dificuldade, as coisas se radicalizaram muito em alguns pontos. Como não passa ração, temos animais morrendo. Mais de cem mil famílias de agricultores familiares estão perdendo suas produções de leite, suínos, aves e de hortifrutigranjeiros. Não é em todos os pontos, não são todas as pessoas, mas estão estragando uma mobilização que começou muito bem feita pelos caminhoneiros — relata Carlos Joel da Silva, presidente da Fetag-RS.
Segundo o dirigente, estratégias de milícia estão sendo adotadas para evitar a circulação de gêneros alimentícios nas estradas gaúchas.
— Na Serra, caminhões que saíram das garagens e foram recolher leite nas propriedades foram abordados por pessoas que foram atrás em motos ou carros. Fazem intimidação. Dizem que é para parar ou que vai ter consequência. Isso está acontecendo — diz Silva.
Atacadista da Ceasa, em Porto Alegre, Hermes Bitencourt conta que três carretas vindas da Argentina carregadas de alho e cebola estão há uma semana paradas em São Borja, aguardando a normalização do clima nas estradas. Enquanto isso não ocorre, ele fica sem a entrega da mercadoria. E o produto vai perdendo qualidade na caçamba.
Com a prioridade das escoltas garantida aos caminhões-tanque de combustíveis, os atacadistas da Ceasa, principal entreposto de hortifrutigranjeiros do Rio Grande do Sul, não conseguem receber proteção policial para atravessar o Estado.
— Ninguém vai sair sem certeza de segurança absoluta. A maioria quer sair, mas ninguém se atreve. É medo de tiro, pedrada, caminhão queimado. Esse tipo de ameaça. Alguém tem de fazer alguma coisa — suplica Bitencourt.