Fazia tempo que a praça de Cristal não ficava tão cheia. Noite estrelada de vento quente – nada com que os 7,8 mil habitantes não tenham se habituado – indicava que o dia seguinte seria novamente de sol de rachar. Era quarta-feira, data de jogo da Recopa, mas os moradores se reuniam por motivo superior à dupla Gre-Nal: chuva. No desespero, pessoas de diferentes credos oraram para pedir ajuda aos céus.
O município, que está a apenas 160 quilômetros de Porto Alegre, foi o primeiro a decretar o que os gaúchos que moram da BR-290 para baixo sentiam desde novembro: a falta de chuva havia extrapolado a capacidade de lidar com o problema sem ajuda externa. Agora, já são mais de 26 prefeituras com decreto de situação de emergência.
GaúchaZH montou um roteiro pelas cinco cidades mais castigadas (veja abaixo). O motorista Laércio Guterres levou repórter e fotógrafo por 1.375 quilômetros, em cinco dias. O Diário da Estiagem começou por Bagé, segunda-feira. Lá, são 12 horas de racionamento por dia, o que dificulta a vida de pequenos empreendedores.
Basta sair da área urbana que a situação piora. Embora a última seca extrema no Estado tenha ocorrido há seis anos, desde 1989, quando Bagé virou deserto, Luiz Fernando Batista, 65 anos, não vivenciava efeitos tão drásticos. Além de o açude ter secado, mais de 90% dos 70 mil litros, o que mais dói é ver suas mais de 40 árvores com frutos ressecados antes de se desenvolver.
— Até o limoeiro, um pé resistente, morreu. Olha aqui, mal o toquei, e já cai no chão, duro feito pedra — lamenta o aposentado.
— Este ano vai ser sem schmier e suco — completa sua mulher, Gladis Batista, 63 anos, que vê os gastos se multiplicarem ao ter de comprar alimentos antes produzidos no quintal.
No caminho até Hulha Negra, município emancipado de Bagé há 25 anos, o cenário vai piorando. Quanto mais para o interior, mais tostadas estão as pastagens, mais esquelético está o gado, maior é o desespero das famílias.
— Hoje, se não viesse o caminhão, não tinha água nem para fazer comida. As necessidades, estamos fazendo no mato há três dias — afirma Sirlei Terezinha Oliveira, 49 anos, que vive em um assentamento rural que não tem água canalizada.
Em um dos vizinhos, havia baldes, panelas, bacias e tanques sob a calha da casa, na tentativa de coletar o pouco da chuva que caiu naquele dia. Na propriedade, no lugar de pastagem, rachaduras de dois dedos de largura e mais de 50 centímetros de profundidade representam a secura em que o pampa se transformou.
Em Piratini, terceiro local visitado, um pecuarista sentenciou:
— Parece o Nordeste.
No município, os trechos de estradas rurais soltam uma poeira vermelha que gruda no carro, nas roupas dos varais e até na lã das ovelhas. Na propriedade administrada por Íris Govea Brede, 74 anos, três terneiros e quatro ovelhas morreram. Nos vizinhos que cultivam soja, as perdas são superiores a 70%.
No quarto dia, a reportagem chegou a São Lourenço do Sul. Mesmo banhado em mais de 40 quilômetros pela Lagoa dos Patos, o município padece diante da secura do tempo. Quem mora ou faz turismo à beira do manancial pode não fazer ideia de que mais de 90% dos pés de milho estão sem grãos, de que tem gente cedendo a própria água para os animais. Por lá, água doce só chega a grandes plantações de arroz na beira da lagoa.
Cinquenta quilômetros na direção norte da BR-116, Cristal foi o quinto e último destino do Diário da Estiagem. A recepção foi um Rio Camaquã com volume de água seis vezes menor: ao invés dos três metros normais, amargava profundidade de 48 centímetros. Em alguns trechos, o curso d’água resiste por cerca de um quinto do seu leito – o resto foi tomado por bancos de areia.
A oração multirreligiosa deu certo, na avaliação do pastor Everson Dummer, também secretário da Educação, pois foram registrados 50 milímetros depois da reunião na praça. Mas não foi o suficiente.
— Só Deus sabe o que faz — sintetiza ele, já que pelas mãos dos homens está difícil reduzir o drama toda vez que a estiagem assola o Estado.