Uma das cidades mais castigadas pela estiagem e uma das primeiras a decretar emergência, Hulha Negra, na região da Campanha, amanheceu com chuva nesta terça-feira (20) – desde outubro o município não recebe precipitações consistentes. Como uma miragem no deserto, os três milímetros que caíram por cerca de três horas até molharam a terra, mas, uma hora depois, o sol e o vento vieram fortes, tornando imperceptíveis os efeitos sobre o solo sofrido.
Na propriedade de Jeferson Alves da Silva, 35 anos, localizada no assentamento Estância Velha, o tempo seco escancara as consequências: o terreno usado para pastagem exibe rachaduras de mais de 50 centímetros de profundidade. Há poucos quilômetros dali, no mesmo assentamento, Márcia Outeiro Câmara, 42 anos, amarga dois açudes completamente secos.
– Estamos tendo prejuízo de mais de 50% na produção de leite, sem falar os diversos litros que foram enviados, mas não passaram nos testes de qualidade e foram jogados fora. Toda vez que o caminhão chega, meu coração acelera de medo – conta a produtora.
Magro, o gado, que bebia água até quatro vezes por turno, agora tem de ser guiado até um tanque, abastecido com líquido de outro açude distante, e a ingere apenas uma vez.
O racionamento se deve ao fato de que a fonte dos animais é a mesma para todos os afazeres da residência. Dois terneiros já morreram de sede. E a preocupação já ultrapassa a estiagem do verão:
– Já imaginou no inverno, quando o frio de renguear cusco chegar na Campanha? Essas vacas, magras do jeito que estão, além de não dar leite, vão morrer de frio – lamenta Márcia.
Estância Velha, onde mora, é um dos 23 assentamentos rurais do município e está entre os 18 que não contam com água encanada. Das 855 famílias que vivem nas terras doadas pelo Estado e pelo governo federal, cerca de 240 são abastecidas com caminhões da prefeitura
Família improvisou banheiro no mato
O número de pedidos para abastecimento aumenta todo dia, enquanto a prefeitura segue apenas com dois veículos: um deles é da década de 1960 e proveniente de Bagé, da qual Hulha Negra foi emancipada há 26 anos. O outro, uma carreta cuja caçamba carrega um reservatório de água. Apesar das más condições, cada caminhão sai duas vezes por dia carregando 8,5 mil litros de água para dar de beber. Quem administra as entregas é o diretor de Água do município, Moisés de Abreu.
– É uma situação dramática, porque a população depende da agricultura para viver e tem dado água própria para animais e bebido até água da chuva – conta o servidor.
Quando o caminhão-pipa improvisado chegou na propriedade de Sirlei Terezinha e Aristides de Oliveira, no assentamento Santa Elmira, nesta terça-feira (20), o casal estava havia três dias com as duas caixas d’água vazias.
– Não tínhamos água para lavar roupa, tomar banho, para os vasos, para dar água às galinhas e aos cachorros. Salvei apenas 50 litros para a gente tomar – conta Sirlei.
Porcos e vacas foram doados a parentes, para que não morressem de fome. O banheiro teve de ser improvisado no mato.
– Era algo para acontecer há cem anos, não em pleno século 21 – comentou um servidor público, sem se identificar.
Solução passa por barragens
A situação na propriedade dos Oliveira não estaria tão dramática se o poço não tivesse secado. O problema se repete em todo o município, inclusive na área urbana, onde vivem 52% da população.
O prefeito Renato Machado (PP) admite que o abastecimento na cidade depende exclusivamente dos poços artesanais, o que quer dizer que nem chuva em abundância resolveria a situação. Algumas perfurações foram reativadas com a desobstrução de bombas, sendo que oito estão em uso para abastecer toda a rede municipal. No entanto, 17 poços foram escavados em vão.
Como solução, são necessárias duas iniciativas independentes. A que está mais encaminhada trata da construção da Usina Termelétrica Pampa Sul, que vai contar com uma grande barragem de 360 hectares de reservatório de água. Como compensação ambiental, a Engie Tractebel Energia prometeu construir uma estação de tratamento (ETA) e instalar toda a tubulação na área urbana.
A outra parte envolve assentamentos. Conforme o prefeito, há 11 barragens nas redondezas que poderiam ser usadas como fonte de abastecimento. Porém, entraves burocráticos envolvendo questões ambientais junto ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e ao governo estadual impedem a execução da medida, que não tem prazo para sair do papel.
De acordo com o Incra, a prefeitura enviou um projeto ao órgão no qual foi constatada a necessidade de informações complementares para prosseguimento da análise. Já a Secretaria do Ambiente do Estado afirmou que, caso as barragens sejam do Incra, “o órgão não forneceu informações solicitadas para concluir o processo de outorga e não realizou o cadastro de todas as obras no sistema da secretaria, sendo que, nesta situação, estariam regularizados”.
Confira, na íntegra, o que diz o Incra
" 1) O INCRA corrobora parcialmente com a Prefeitura no sentido de que o uso ordenado de algumas das barragens situadas em Assentamentos sob gestão do INCRA, constituem-se em alternativa para o abastecimento humano do município junto à zona rural, em associação com outras políticas públicas.
2) No que se refere à não liberação pelo INCRA esclarecemos.
Há em tramitação junto ao INCRA/Superintendência Regional do Rio Grande do Sul uma solicitação do Poder Executivo Municipal, datada de meados de abril/2017, solicitando a anuência da Barragem Banhado Grande, Assentamento Banhado Grande, para a finalidade de abastecimento humano, em conformidade com projeto apresentado pela Prefeitura junto Ministério de Desenvolvimento Social e Agrário.
Recebido o Ofício, o INCRA em um primeiro momento solicitou cópia do projeto, já que a Prefeitura não havia remetido cópia inicialmente. Recebida a cópia do projeto foi constatado que havia necessidade de complementação de informações para prosseguimento da análise. Isto deu-se em agosto/2017. Posteriormente a Prefeitura solicitou reunião de trabalho junto ao INCRA para melhor entendimento do solicitado pelo INCRA. Reunião esta que deu-se em meados de janeiro/18, contando ainda com participação da FUNASA. Estamos aguardando manifestação da prefeitura em relação aos nossos questionamentos realizados na reunião de trabalho acima referida.
Quanto à solução para o abastecimento dos assentados, informamos que o projeto apresentado pela Prefeitura, quando implantado, abastecerá as famílias residentes no Assentamento Banhado Grande e demais famílias do entorno".
Confira, na íntegra, o que diz a Sema
"Essas barragens são do Incra? Se forem, o Incra não forneceu as informações solicitadas para concluir o processo de outorga e não realizou o cadastro de todas as obras no sistema de outorga da Secretaria, sendo que nesta situação estariam regularizados.
O uso da água para abastecimento humano deve atender a parâmetros estabelecidos por legislação específica, não determinada pela SEMA. Soluções emergenciais podem ser realizadas a partir do simples cadastramento, o que não tem custo e é totalmente online. A prefeitura pode realizar esse cadastro.
As consequências do uso sem outorga ou dispensa de outorga são a notificação e possível multa.
As soluções de abastecimento dos assentados não cabem à SEMA, mas desde o começo desta gestão foram implantadas ferramentas e políticas de incentivo à reservação de água, que se tivessem sido acionadas poderiam reduzir ou eliminar o problema".
Detalhe GZH
Como ajuda emergencial, o decreto homologado pela Defesa do Civil estadual rendeu de auxílio apenas 200 cestas básicas a Hulha Negra – mais de 30% da população está em situação de vulnerabilidade social. Da União, que reconheceu a situação de emergência, o município não recebeu ajuda. O prefeito vai a Brasília nesta semana para reforçar a necessidade de recursos.