— Eu nunca achei que poderia sentir isso.
— Chegou um momento em que eu pensei: "Será que é isso que eu ainda gosto de fazer"?
— Fisicamente, eu estava bem, mas internamente eu precisava dar um passo atrás.
— Cheguei em casa e falei: "Não quero mais".
— Simplesmente eu senti que precisava cuidar de mim.
Todas as frases acima foram ditas ao longo dos últimos três anos por atletas de ponta do esporte mundial, que disputarão as Olimpíadas 2024 e são favoritos ao pódio em suas respectivas modalidades. Contudo, todos eles só conseguiram chegar a Paris porque, em algum momento, perceberam que precisavam cuidar da saúde mental.
O ciclo dos Jogos Olímpicos 2024 já entrou para história como aquele em que houve uma maior atenção dos atletas de alto rendimento com o estado emocional. Muito por conta da ginasta norte-americana Simone Biles, que desistiu de quatro finais nas Olimpíadas de Tóquio, alegando razões psicológicas.
Segundo o psicólogo do Comitê Olímpico do Brasil (COB), Eduardo Cillo, que está presente em Paris dando suporte emocional aos atletas brasileiros, o caso Biles foi importante, mas não foi o único:
— O caso da Simone Biles foi emblemático porque se tratava de uma grande atleta de um país muito poderoso. Mas, naquele mesmo ano, a tenista japonesa Naomi Osaka já havia desistido de disputar Roland Garros alegando problemas de saúde mental.
Em seguida, Cillo falou da situação psicológica de atletas em nosso país:
— No Brasil, antes mesmo da pandemia, um número significativo de jogadores de futebol começou a falar publicamente sobre depressão. Com isso, você consegue perceber que tem algo muito difícil no esporte de alto rendimento que é a exigência, a pressão e a cobrança.
Mesmo após o episódio envolvendo Biles em Tóquio, o ciclo das Olimpíadas 2024 foi marcado por muitos casos semelhantes.
Em junho de 2022, por exemplo, o nadador norte-americano Caleeb Dressel desistiu de participar das semifinais dos 50 metros livre, no Mundial de Esportes Aquáticos de Budapeste-HUN, alegando "razões médicas".
Dono de sete medalhas de ouro olímpicas conquistadas entre os Jogos de 2016, no Rio de Janeiro e 2020, em Tóquio, o atleta acabaria ficando quase um ano sem competir e falaria sobre o assunto apenas meses depois.
"Eu sei que consigo nadar e ser feliz, eu já tive isso em algum ponto da minha vida, e estou tentando recuperar. Se você precisa de um tempo, tire. Eu vou voltar", escreveu em uma rede social.
No mesmo ano, dois nomes de peso do esporte brasileiro também anunciaram uma pausa na carreira. Logo após se tornar tricampeão mundial, o surfista Gabriel Medina optou por tirar um "ano sabático" em 2022 para cuidar da saúde mental.
A mesma escolha fez o skatista Pedro Barros, que ficou cerca de um ano sem competir após ganhar a medalha de prata na categoria park, em Tóquio.
— Chegou um momento em que eu pensei: "Será que é isso que eu ainda gosto de fazer?" — contou o atleta em entrevista ao Uol.
O ano de 2023 começou com mais atletas brasileiros relatando problemas relativos à saúde mental. Após ser submetida a uma cirurgia no ombro esquerdo, a nadadora Ana Marcela, ouro na maratona aquática em Tóquio, percebeu que precisava ter menos exigência e autocobrança na preparação rumo aos Jogos de Paris.
Buscando uma rotina mais leve, trocou de treinador e se mudou para a Itália.
— A verdade é que eu achei que não podia sentir isso. A gente vive no alto rendimento, está todo dia dando o nosso melhor, mas depois que eu vi atletas de nível mundial passando por essa situação, eu pude entender o que estava acontecendo comigo. Cheguei um dia em casa e falei: "Eu não quero mais, não amo mais fazer isso". Mas eu me reencontrei. Dei um tempo para a minha cabeça e para a minha mente — contou Ana Marcela, em entrevista recente ao ge.globo.
Uma situação parecida viveu o canoísta Isaquías Queiroz, ouro na canoagem em Tóquio. Dono de três medalhas olímpicas e candidato a se tornar o maior medalhista brasileiro de todos os tempos, o baiano, ainda assim, optou por "tirar o pé do acelerador" no ciclo de Paris.
Nos últimos três anos, disputou poucas competições e aproveitou mais tempo com a família.
— A questão do aspecto psicológico é desafiadora para nós. Não podemos perder, e o povo brasileiro gosta de ver o país em primeiro lugar. Não gostam do segundo ou terceiro lugares. Eu competi em uma Copa do Mundo com covid. Eu não sabia que era covid, mas estava me sentindo muito mal, com dores em todo o corpo, e nem conseguia dormir — contou Isaquías à Rádio Itatiaia.
Mesmo assim, ele continuou a competir, passando por cima da situação, mas alertando a importância de olhar para os problemas, sejam eles patológicos ou psicológicos.
— Eu competi e conquistei uma medalha. Não nos importamos com doenças ou dores físicas. Temos grandes apoiadores e não queremos decepcionar. Espero que possamos avançar na discussão sobre a saúde mental no esporte — compeletou Isaquías.
Outro que decidiu parar por um tempo foi o surfista Filipe Toledo. Mesmo sendo o atual bicampeão mundial, o paulista optou por não participar da Liga Mundial de Surfe em 2024 e irá focar apenas nas Olimpíadas.
O atleta não teve receio de dizer que o motivo da pausa foi o cuidado com a saúde mental.
— Eu precisava falar sobre isso e mostrar ao mundo como é difícil. Todo esporte deve dar atenção à saúde mental. As pessoas começam super jovens, por tantos anos fazendo a mesma coisa, isso se torna estressante. E quanto mais falamos sobre isso, mais fácil fica, então estou feliz por ser alguém que fala sobre isso e defende essa bandeira — disse Toledo ao site Olympics.com.
Mesmo capazes de grandes feitos, eles (atletas) continuam sendo humanos e, para eles, também existem limites.
EDUARDO CILLO
Psicólogo do Comitê Olímpico Brasileiro
Para o psicólogo do COB, Eduardo Cillo, admitir que precisa de ajuda é fundamental para o atleta superar a dificuldade:
— Isso não faz deles inferiores. Pelo contrário. O atleta que tem coragem de admitir que precisa de ajuda consegue buscar apoio e superar as suas dificuldades emocionais. Mesmo capazes de grandes feitos, eles continuam sendo humanos e, para eles, também existem limites.
Na sequência, o psicólogo ressalta o quão positivo é cuidar da cabeça para poder realizar as atividades esportivas com êxito.
— Assim como existe limite para o músculo, também existe limite para a cabeça e para o coração. Você admitir a necessidade de cuidar deles é importante inclusive para que você possa não só cuidar da saúde mental como performar em excelência — opina.
Na avaliação de Cillo, o esporte de alto rendimento não está gerando mais pressão sobre os atletas do que antigamente. O que ocorre é que falar sobre saúde mental está, felizmente, se tornando algo mais natural.
— O esporte sempre foi exigente. O que mudou não foi o esporte em si e sim a cultura dos atletas de falar sobre saúde mental com menos preocupações com relação a julgamentos externos e alheios. Eles estão se sentindo mais encorajados justamente porque grandes atletas com muita visibilidade vieram a público falar das suas dificuldades — finaliza.
Simone Biles, Caleeb Dressel, Pedro Barros, Gabriel Medina, Ana Marcela, Isaquías Queiroz e Filipe Toledo estão confirmados nas Olimpíadas de Paris. Porém, antes mesmo de entrar na água, no tablado ou na pista, já conquistaram uma medalha ao naturalizar o debate sobre a saúde mental.