O futebol espanhol está com o sinal de alerta ligado para o avanço do neofascismo. Em meio ao intenso — e inédito — debate provocado pelos atos racistas sofridos por Vinicius Junior, movimentos de defesa dos direitos humanos, jornalistas e pesquisadores espanhóis denunciam a presença de grupos extremistas infiltrados nas principais torcidas da Espanha, o que pode ter contribuído para o aumento dos casos de discriminação racial contra o brasileiro na última temporada.
— A nossa hipótese é de que existem ações organizadas para insultar o Vinicius Junior. Eles o insultam assim que o jogador desce do ônibus e, depois, no campo, continuam com os xingamentos. Isso não ocorre espontaneamente. Em Valência, por exemplo, a presença de grupos neofascistas sempre se localizou atrás do gol exatamente onde o Vinicius foi insultado no jogo do Valencia contra o Real Madrid — alerta Esteban Ibarra, 68 anos, presidente do Movimento contra a Intolerância, ONG fundada nos anos 1990 para defender os direitos de negros, imigrantes e homossexuais na Espanha.
Conhecidas como "ultras", as uniformizadas espanholas possuem semelhanças com as torcidas organizadas brasileiras. A principal diferença, contudo, é que na Espanha os "ultras" costumam ser identificados com uma ideologia política — na maioria dos casos, de extrema direita.
— O futebol é sempre uma metáfora social. O que acontece nos estádios é um reflexo da sociedade. A extrema direita e os partidos populistas de direita, que adotam discurso de ódio, estão crescendo na Espanha. Portanto, isso acaba se refletindo nos estádios — opina Carles Viñas, professor de História Contemporânea da Universidade de Barcelona.
Contudo, o pesquisador acredita que seria um erro atribuir os episódios de injúria racial contra Vinicius Junior apenas a estes grupos extremistas.
— O racismo é um comportamento que transcende a esfera dos ultras ou dos radicais. Se reduzirmos o racismo aos ultras ou a grupos neonazistas, parece que o resto das pessoas na sociedade está imune ao racismo, e não é assim. Primeiro é preciso reconhecer que existe um problema sério de racismo na Espanha. No futebol, sempre se tenta minimizar isso, dizendo que os casos de insultos racistas são coisas pontuais, promovidas pelos ultras. E não são — completa.
O repórter David Lopez Frias traçou recentemente no jornal El Periodico de España uma espécie de radiografia dos ultras espanhóis. Segundo o jornalista, praticamente todas as torcidas possuem uma ideologia política, com predomínio da extrema direita.
— Os ultras surgiram na Espanha nos anos 1980 e 1990, inspirados nos grupos da Itália e da Alemanha, que eram todos de extrema direita. Então, a coisa mais natural para a extrema direita de uma cidade com time na Primeira Divisão era se reunir em torno daquele time. Portanto, a extrema direita espanhola sempre esteve intimamente ligada ao futebol e ao movimento ultra. Logo, os estádios de futebol na Espanha são um bom termômetro para saber se a extrema direita está em alta ou em baixa no país, e neste momento está em alta. É importante dizer que há quatro grupos ultras que são de esquerda: os do Rayo Vallecano, do Athletic Bilbao, do Sevilla e do Osasuna. Porém, todos os outros ultras da Espanha são de extrema direita — explica.
Frías acredita que há uma possibilidade significativa de os autores dos insultos racistas contra Vinicius Junior em Valência, no jogo do dia 21 de maio, serem vinculados aos Yomus, como são denominados os ultras simpatizantes do clube mediterrâneo, cujos integrantes costumam assistir aos jogos, conforme relatado por Ibarra, justamente no local de onde partiram os atos contra o atacante brasileiro.
— A verdade é que Valência é um dos redutos da extrema direita espanhola, e muitos extremistas de direita de Valência fazem parte do Yomus. Claro que é difícil afirmar com certeza que todos os autores dos insultos racistas contra o Vinicius Junior integram os Yomus. Mas, se você tivesse me perguntado antes do jogo do Valencia contra o Real Madrid, em que parte do campo eu acreditaria que poderiam ocorrer insultos racistas, eu teria apontado exatamente aquele lugar, que é onde ficam os Yomus — opina.
Em entrevista exclusiva a GZH, o diretor-corporativo do Valencia, Javier Solís, disse que os Yomus foram oficialmente banidos do estádio Mestalla há bastante tempo, devido aos inúmeros episódios de violência, e garantiu que o clube cumpre todas as determinações das autoridades para evitar a entrada nos jogos de membros do grupo e de qualquer torcedor envolvido em atos criminosos.
— O Valencia sempre lutou contra a violência no futebol. Este grupos radical está proibido de entrar no estádio Mestalla há muitos anos. Mas é claro que fazer um controle individual de cada pessoa que entra nas arquibancadas do estádio ultrapassa um pouco as possibilidades do clube. Mas estamos sempre seguindo as instruções da polícia para impedir o acesso de indivíduos envolvidos em incidentes de violência — explicou
No último mês de fevereiro, o jornalista Jacobo Garcia, do El Pais, infiltrou-se em uma reunião secreta de um grupo neonazista em Madri e escreveu uma reportagem detalhando o encontro. O repórter acredita que o extremismo vem crescendo na Espanha devido a uma reação de parte da população ao aumento da imigração no país.
— Reuniões nazistas específicas como a que eu relatei naquela matéria são pequenas e pouco representativas. São formadas por desempregados que se sentem lesados pela chegada de imigrantes. Mas existe, sim, na sociedade, um sentimento de rejeição à imigração que foi ganhando força nos últimos 15 anos — relata Garcia.
Curiosamente, uma das pessoas historicamente envolvidas com a extrema direita espanhola é justamente o presidente da La Liga, Javier Tebas, o mesmo que disparou nas redes sociais contra Vinicius Junior por conta das críticas do jogador à entidade pela falta de medidas contra o racismo.
— Nos anos 1970 e 1980, Javier Tebas era um dos líderes do ramo juvenil de um partido fascista espanhol chamado Fuerza Nueva, um partido que apoiava abertamente o regime de Francisco Franco (ditador fascista que governou a Espanha entre 1936 e 1975). E hoje ele se declara apoiador do partido ultranacionalista espanhol Vox, que vem ganhando espaço na política nacional. Mas não há, nos últimos anos, nenhuma declaração abertamente racista ou xenófoba conhecida feita por ele. Isso é um fato a se reconhecer — explica Emilio Huecas, 51 anos, presidente da Federação de Acionistas e Sócios do Futebol Espanhol (FASFE), entidade formada por associados de diversas equipes da Espanha e que luta pela defesa dos direitos dos torcedores espanhóis.