— Não queira ser o fortão, mas queira sempre ser o diferente.
O conselho, que virou uma espécie de mantra na trajetória do ainda desconhecido Raphinha, veio de Clayton Padilha, um velho amigo da família que foi ao socorro do menino de nove anos que acabara de ser cortado de uma seleção mirim na base do Grêmio sob a alegação de ser "mirradinho". De lá para cá muita coisa aconteceu na vida desse habilidoso meia-atacante. Recentemente, ele ganhou os holofotes ao ser anunciado na lista de Tite na Seleção Brasileira para a disputa da rodada tripla das Eliminatórias para a Copa do Mundo de 2022. A convocação incluía os jogos contra Argentina (que acabou suspenso), Chile e Peru.
Raphinha, no entanto, viu o sonho de vestir a camisa amarela ser adiado. Como o Brasil constava na lista vermelha de países com alto risco de contágio do novo coronavírus, os clubes ingleses não liberaram os atletas brasileiros para defender a Seleção. Diante da nova oportunidade, ele espera, enfim, estar no grupo para os jogos contra a Venezuela, a Colômbia e o Uruguai.
— Mais uma vez, tive a oportunidade de ser chamado e estou muito motivado. Espero que, desta vez, as coisas saiam da melhor forma possível e eu possa realizar o meu sonho de criança, que é vestir essa camisa e representar o meu País. Aproveito para agradecer às pessoas que, de alguma forma, me ajudaram ao longo dessa caminhada, e também aos meus familiares — comemorou Raphinha.
Estar na lista de Tite é um cartão de visita para a torcida que pouco sabe da trajetória desse ilustre desconhecido, que foi lapidado no bairro da Restinga, comunidade carente de Porto Alegre.
Depois de tentar vingar na base do Grêmio, Raphinha se destacou nos juniores do Avaí e logo se transferiu para Portugal. Assim, sua estreia profissional aconteceu no Vitória de Guimarães, longe do Brasil.
A transferência para o Sporting atestou o seu bom começo no exterior. Em seguida, o jogador mudou de país e ajudou o Rennes a terminar o Campeonato Francês em terceiro lugar. Suas atuações chamaram a atenção do Leeds United. Hoje, ele é um dos homens de confiança do técnico Marcelo Bielsa para fazer a equipe emplacar no Campeonato Inglês.
Mas, antes de chegar ao futebol europeu e consolidar o seu nome dentro de campo, Raphinha teve que tirar forças para lidar com a falta de dinheiro e também com o preconceito por ser franzino.
— Ele não baixou a cabeça diante do comentário infeliz do tal treinador quando era criança. Lembro que estava muito triste, com os olhos cheios d'água. O que fiz foi pedir para não mudar a sua essência. A persistência falou mais alto. Não chegou onde está por acaso— afirmou Clayton, que era uma espécie de anjo da guarda do promissor jogador.
Menino de drible fácil e com uma canhota temida pelos adversários, Raphinha sempre foi disputado pelos times mirins do bairro. No entanto, muitas vezes ele acabava preterido por ser magrinho.
— Sou do Sul e sei como as coisas funcionam. Lá, para você vingar, tem de ser forte e grande. Muitos treinadores têm preconceito. Acham que futebol é vigor físico, porrada e com isso os moleques maiores têm mais oportunidades. Ele sempre foi mirradinho, mas era tinhoso. Com nove anos, já jogava contra meninos de 13, 14. E, se deixasse dominar, ele passava mesmo. Só paravam com falta—disse Clayton.
Vida simples e dinheiro contado
Mas quem vê o seu sucesso no futebol inglês não imagina as adversidades que brotaram em seu caminho desde a infância. Criado em meio a escassos recursos financeiros, Raphinha desde cedo viu na solidariedade uma forma de superar os obstáculos.
A mãe, Liziane, era merendeira da creche do bairro naquele período de vacas magras. O pai tirava o sustento da música para ajudar nas despesas da família. Com um orçamento apertado para passar o mês, o garoto às vezes sequer tinha dinheiro para a condução em dias de treino no Grêmio.
Funcionário do time tricolor gaúcho na fase em que o Raphinha ainda dava os seus primeiros chutes, Clayton revelou ao Estadão que, em uma dessas voltas para casa, já dentro do ônibus, precisou conversar com o cobrador ao saber que o menino estava sem dinheiro para a passagem.
— Sensibilizado por saber que o Raphinha estava voltando de um treino, o trocador ainda disse: toda vez que você não tiver o dinheiro, fala comigo que eu libero. Os motoristas e cobradores daquela época tinham muita amizade com os moradores da Restinga—lembrou Clayton.
Oriundo de uma família de boleiros, o menino tem exemplos de bons jogadores na sua linhagem. Maninho, o pai, jogou na várzea com Tinga, ex-Grêmio e Inter. Era um meia-atacante dos bons. O tio Dudu é citado nas redondezas como um dos craques da região.
Apesar de o pai torcer para o Internacional, um ídolo com raiz gremista foi quem inspirou Raphinha.
— Ele via os lances do Ronaldinho e tentava imitar no campinho. Era muito fã dos dribles e arrancadas do R10. Não sei se virou gremista, até porque, quando um garoto se torna jogador, perde um pouco dessa identificação. Mas era uma baita referência ter o Ronaldinho como inspiração— comentou Clayton.
Projeto social tirou crianças da rua
Um projeto social liderado por Marco Aurélio Ribeiro de Melo, e que assistia cerca de 200 crianças, tinha Raphinha como um dos alunos: era o Udinese Futebol Clube. Também conhecido como Caco, Marco Aurélio era roupeiro dos sub-17 do Inter. Nas horas vagas, aproveitava a prática do futebol para tirar as crianças das ruas do bairro da Restinga.
— Tínhamos muitos problemas de gangues aqui na comunidade. Com esse projeto, ocupamos parte do tempo desses garotos. Duas vezes na semana, os treinos começavam às 19h, mas às 18h45min, todos tinham que estar à minha espera sentados na calçada. Aos sábados, a atividade começava às 10h e a molecada também tinha que chegar 15 minutos mais cedo— recordou Caco.
Para fazer parte do grupo, uma exigência tinha que ser cumprida: estar na escola e ter boas notas. E se engana quem pensa que os meninos se limitavam a correr atrás da bola.
— Eu passava tarefas. Um era o escolhido para pegar o material esportivo, outros iam limpar o campo antes das atividades. O Raphinha gostava de colocar as redes no gol. Ao fim dos treinos e jogos, sempre tinha um suco e um sanduíche de mortadela com queijo para todo mundo— lembra.
Nos torneios internos que promovia, o bairro todo se envolvia na organização.
— Formávamos uns sete, oito times e alguns pais participavam como técnicos das equipes. As mães faziam bolos, vários tipos de sanduíches, sucos e outras coisas de comer. Era o dia inteiro com jogos. Para não ter chiadeira, eu apitava todas as partidas— comenta Marco Aurélio.
Trajetória emociona Tinga
Amigo da família e também morador do bairro, o ex-volante Tinga também falou com o Estadão. A conversa foi breve, pois ele aproveitou um intervalo do seu trabalho para comentar sobre o êxito que Raphinha alcançou jogando futebol no exterior.
— Eu o conheço desde a infância. Conheço a família toda. O pai dele é da minha geração, jogamos futebol juntos e corremos nas ruas da Restinga. Isso é o retrato do Brasil. O futebol é uma grande oportunidade para as favelas e periferias. Infelizmente, ele teve de levar todo um tempo fora para depois ser valorizado. Às vezes as coisas estão próximas da gente e não conseguimos enxergar —diz o ex-volante que defendeu a Seleção Brasileira nas Eliminatórias para a Copa de 2002.
O ex-jogador de Grêmio, Inter e Cruzeiro se emocionou ao lembrar que Raphinha, assim como ele, tem um roteiro onde superação e resiliência foram fundamentais na sua trajetória.
— Temos dificuldade de valorizar o que é nosso. Fico feliz de ver o Raphinha fazendo sucesso. Ele me representa e está representando também o nosso bairro que tem tantas crianças e adolescentes que jogam futebol, mas que não conseguem ser vistos— afirma Tinga.