A falta de dinheiro exige soluções pouco usuais. Às vezes, a criatividade pode gerar situações inusitadas. Mesmo absurda, a forma de economizar encontrada pelo Esporte Clube Ijuí ofereceu mais uma prova de amor ao futebol feminino.
Pela tabela, o time do norte do Estado teria de viajar duas vezes no ano para o Vale do Taquari para enfrentar o Guarani, em Lajeado, e o Estrela, na cidade que leva o nome do clube. Sem recursos, surgiu a proposta aceita por todos: o time de Ijuí faria uma viagem só e enfrentaria os dois times da região em um mesmo domingo. O jogo contra o Lajeado seria às 10h30min, e a partida contra o Estrela, às 15h30min.
– Não tinha muita alternativa. Se a gente pudesse, jogaria em dois finais de semana, mas a situação financeira não é viável. O custo de uma viagem dessas não baixa de R$ 3,5 mil – conta a técnica e presidente do clube, Marli Lourenzon, 58 anos.
Repórteres de Zero Hora e da Rádio Gaúcha acompanharam a viagem.
00h50
Da frente da prefeitura de Ijuí, ponto de encontro para aguardar o ônibus, a delegação partiu, reforçada por amigos e familiares que acompanharam as jogadoras na saga. No início da viagem, nada de dormir.
A pedido das atletas, uma música pop era tocada no sistema de som do ônibus.
– A música ajuda a relaxar um pouco no início. Depois, a gente silencia pra todo mundo poder descansar. Torna-se bem cansativo para nós fazer uma viagem longa e ter que jogar duas partidas no mesmo dia. Na verdade, a gente não consegue superar o cansaço, não conseguimos descansar. A gente vai mesmo é na garra. O que vale são as amizades que a gente constrói e o prazer de estar com todas as gurias – relata a zagueira Mariane Schaffer, 26 anos, que trabalha com os pais em uma vidraçaria em Panambi, a 60 quilômetros de Ijuí – Voltamos no domingo à noite e já vou direto pra Panambi. Segunda já trabalho de manhã cedinho – completa.
Aguentar a viagem longa e o desgaste de disputar duas partidas é um desafio para as atletas. Ao mesmo tempo, é o preço a ser pago para as meninas estarem com as amigas e fazerem o que elas mais gostam: jogar futebol.
– Eu acho que vai ser bem difícil, principalmente pelo nosso preparo físico. A gente não tem muita possibilidade de treinar. Vamos ter de jogar na garra. Mas isso aqui para nós é uma alegria. O que importa é se divertir. Aqui ninguém recebe. A gente joga por amor e pelo clube. Eu sou apaixonada por futebol, jogo desde pequena – explica a lateral-esquerda Tânia Baldissera, 24 anos, estudante de Educação Física na Unijuí e estagiária em uma academia da cidade.
1h50
A primeira escala foi em Cruz Alta. O ônibus parou para o embarque de cinco atletas. A segunda parada foi em Espumoso, onde reside Mari Toledo, a única goleira do grupo, que embarcou no ônibus às 2h55min.
– Não dormi, não consegui dormir nada, fiquei só esperando. Eu trabalho como técnica de enfermagem, chego umas 21h em casa. Até organizar as coisas, mais a ansiedade do jogo e da viagem. Como eu não sabia que horas as gurias iriam passar, então fiquei acordada – relatou.
5h35
Já no município de Lajeado, o ônibus parou em um refúgio no km 340, às margens da BR-386, e desligou os motores. Ao redor, na noite escura e deserta, havia apenas um posto de gasolina e um restaurante, ambos fechados e com luzes apagadas. O único sinal de vida próximo estava a 200 metros dali, onde a reportagem vislumbrou o posto da Polícia Rodoviária Federal.
O objetivo desta parada era apenas dar a oportunidade para as atletas dormirem por algumas horas sem os solavancos, arranques e freadas de um ônibus em movimento. Por mais de três horas, o veículo ficou parado na beira da estrada, sem que ninguém descesse.
– A gente poderia ter saído às 4h de Ijuí, mas aí chegaríamos na hora do jogo. Seria mais cansativo. É muito melhor ter essa parada para elas descansarem e relaxarem – contou o motorista Valdemar da Silva, 58 anos, por volta de 8h, quando as primeiras atletas começavam a acordar.
Era como se o ônibus do Esporte Clube Ijuí tivesse se transformado em um hotel.
8h30
A treinadora e presidente Marli passou em todos os bancos com uma cesta com sanduíches, bolachas e sonhos.
Era o café da manhã das atletas. Dentro do ônibus.
– O item numero um é sonho. A gente já vem sonhando há tempos. Aí comemos sonho no café da manhã para, na hora jogo, ele não se transformar em pesadelo – explica, aos risos, Marli – Eu coloco na cesta bolacha, torradinha, sanduiche, waffer, café, tudo o que elas gostam. Tem de meter comida para dentro, para entrar em campo bem energizada – completa.
Já com o sol brilhando no lado de fora, algumas atletas aproveitaram que o restaurante na beira da estrada estava abrindo para ir ao banheiro e escovar os dentes.
– O café da manhã é no ônibus mesmo. Sempre foi assim. E esta parada é boa para distrair um pouquinho, dar risada, tomar um cafezinho que a nossa treinadora trouxe. Ela sempre traz café, sanduíche, pão, sonho, bolachinha, de tudo um pouco. A gente tem que se superar. Futebol feminino é isso – diz a lateral Tupã, 48 anos, a veterana do grupo, que trabalha como árbitra de futebol e complementa a renda vendendo lanches.
8h55
A delegação partiu rumo ao Estádio Elísio Trevisol, em Lajeado, palco do jogo contra o Esporte Clube Guarani, onde desembarcaram 20 minutos depois. As 21 atletas foram diretamente para o vestiário, enquanto amigos e familiares prontamente ocuparam um lugar na arquibancada.
10h
Enquanto as jogadoras dos dois times faziam o trabalho de aquecimento no gramado, a atacante Maikelle Toledo, 22 anos, repentinamente abandonou o campo e partiu na direção da arquibancada.
O motivo: precisava amamentar a filha Pietra, de apenas um ano. A criança e o marido Emerson de Lima, 21 anos, a acompanham em todas as viagens do Esporte Clube Ijuí.
– Sempre levo a Pietra nos jogos. É complicado, mas a gente dá um jeito. Normalmente eu dou de mamar antes de iniciar as partidas. Eu aqueço um pouquinho e aí vou dar de mamar para ela, para não ter que dar na metade do jogo. Depois, eu foco na partida, porque ela fica com o pai e eu sei que está em boas mãos. Ela fica bem feliz, grita gol e vibra bastante – diz Maikelle, que estudava Educação Física, mas trancou o curso após o nascimento da filha.
A pequena Pietra já nasceu no meio do futebol. Afinal, Maikelle só descobriu que estava grávida após cinco meses de gestação.
– Eu desmaiava ao final de todos os jogos. A gente achava que era anemia. Aí fiz um exame de farmácia e descobri que estava grávida – conta Maikelle, que marcou diversos gols sem saber que carregava Pietra.
– Ela já nasceu artilheira – diverte-se o pai, que trabalha como vendedor em uma loja de autopeças.
Com a filha e o marido torcendo na arquibancada, Maikelle marcou o primeiro gol do jogo, aos 25 minutos. O Ijuí abriu 2 a 0 nos primeiros 30 minutos, mas cedeu o empate nos minutos finais ainda do primeiro tempo. O jogo foi bastante prejudicado pelo gramado encharcado.
O placar final foi 2 a 2. Mesmo com outro jogo pela frente, Marli optou por fazer apenas quatro das sete substituições permitidas.
12h30
Após o final da partida, as jogadoras das duas equipes permaneceram no estádio.
O Guarani, de Lajeado, ofereceu um almoço para toda a delegação do Ijuí, prática comum entre anfitriões e visitantes no Estadual feminino.
– Quando a gente foi a Ijuí, fomos muito bem recebidos. Aí tivemos que retribuir essa gentileza. No futebol feminino, estamos sempre nos ajudando. Não temos rivalidade, nosso objetivo é ajudar. Se os times tiverem que parar em um restaurante, o custo será bem maior. Temos de economizar o máximo possível – explica Sandro Seco, 32 anos, técnico e dirigente do Guarani.
O almoço contou com galeto, arroz, massa, feijão e pão. Mesmo com as atletas repetindo o prato diversas vezes, sobrou comida.
– Sempre oferecemos essa possibilidade para a equipe que vai jogar em Ijuí e depois a gente tem o retorno deles. A economia com isso é bem significativa. Uma refeição na beira da estrada não custa menos de R$ 50 por atleta – afirma a técnica Marli.
14h
O almoço terminou, apenas 1h30min antes do segundo jogo do dia. As atletas puderam descansar no ônibus por cerca de 15 minutos e, depois, já estava na hora de partir rumo ao campo do bairro Jardim do Cedro, local da partida contra o Estrela.
– Jogar dois jogos no mesmo dia é complicado. Será desgastante, vai ter de ser na superação – disse Victor Ferrugem, um dos membros da comissão técnica – Sou preparador físico, motivador e marido – se diverte.
– Estamos nos superando. Depois que descemos a escada (do ônibus), o cansaço acabou – relatou a zagueira Mariane, quando entrou no gramado para fazer o aquecimento.
15h30
O gramado da segunda partida não tinha tantas poças d’água, apesar de também estar bastante molhado. Em determinado momento, a chuva começou a cair, o que, na visão da goleira, Mari Toledo, aquela que havia sido buscada em Espumoso, ajudava a manter o time acordado.
– Na viagem dei aquela cochiladinha normal. Dormi umas 2h, 2h30min, por aí. Até que não estou cansada. Estou tranquila. Acho que a chuvinha ajuda a despertar um pouco – disse Mari, para quem o futebol de campo ainda é uma novidade – Eu sou goleira de futsal. Este é só o meu terceiro jogo de campo. Então, ainda estou me acostumando. Mas acho que está dando para quebrar o galho – finalizou.
Mesmo com o desgaste físico, o Ijuí entrou em campo contra o Estrela com as mesmas 11 atletas que iniciaram a partida contra o Lajeado. E quis o destino que a saga daquele domingo fosse premiada com uma vitoriosa história de superação. Contra um adversário mais descansado, as garotas de Marli dominaram a partida e venceram por 2 a 1. Foram feitas seis substituições, sendo que quatro atletas (a goleira Mari Toledo, as zagueiras Isabelle e Fabiane e a atacante Silvana) atuaram durante os 90 minutos dos dois jogos.
– Estou feliz da vida. A gente tem que ter superação. Essas meninas valem ouro. Foi difícil, viagem desgastante, campo embarrado, mas a gente se superou. As minhas colegas passam uma energia muito boa. O grupo está de parabéns – disse a lateral Tupã após a partida.
– A gente só conseguiria vencer se fosse na base da superação. Foi bastante desgastante, mas a gente mostrou a nossa força. Eu sei da força do meu grupo. Amanhã elas vão estar muito cansadas. Vamos ter que providenciar umas cadeiras de rodas para elas – brincou a técnica Marli depois da vitória.
17h30
A viagem de volta foi marcada por muita comemoração, regada a cerveja e risadas. Passava da meia-noite de segunda-feira quando o ônibus estacionou em frente à prefeitura de Ijuí. Celebrando os quatro pontos conquistados no mesmo dia, Marli avaliava a missão bem-sucedida e já fazia os planos para as próximas viagens e jogos do clube.
– Tem que ser. Eu gerencio os patrocínios, faço a locação do ônibus, preparo os lanches. Na verdade, eu faço de tudo um pouco e tomo conta de tudo. Eu sou de presidente a roupeira do clube. Sou meio perpétua no clube. Sou tipo um Eurico Miranda dos pampas, só não faço as falcatruas que ele faz – diverte-se Marli.