As dimensões do gramado são idênticas, o tamanho das goleiras é o mesmo, o peso da bola não muda, os times igualmente contam com 11 atletas. As famosas 17 regras do jogo valem tanto para homens quanto para mulheres. Fora das quatro linhas, porém, nem parece o mesmo esporte. Enquanto o futebol masculino movimenta milhões de reais, produz ídolos em série e leva legiões de devotos aos estádios, no Brasil a modalidade feminina ainda roga por mais espaço, reconhecimento e – o básico – salários dignos para as jogadoras.
O exemplo do Grêmio, líder do ranking masculino da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), ilustra o abismo que separa o esporte praticado pelos dois gêneros no país. Na estreia tricolor no Brasileiro Feminino A1, o time comandado pela técnica Patrícia Gusmão atraiu 281 pessoas ao centro de treinamento do clube em Eldorado do Sul, em 12 de março. A torcida que comemorou o triunfo gremista por 1 a 0 sobre o Vitória de Santo Antão, de Pernambuco, representou apenas 2% do menor público registrado na Arena no último Brasileirão masculino – 12.214, em Grêmio x América-MG, no final de novembro.
Para fardar no certame nacional, as jogadoras tricolores recebem ajuda de custo mensal que varia entre R$ 700 e R$ 1 mil. Nem é preciso vasculhar os contracheques dos profissionais de barba para comparar. Só nas categorias de base do clube, recheadas de jogadores ainda em formação que já cobiçam carros importados e polpudos contratos com clubes estrangeiros, os garotos mais promissores chegam a embolsar R$ 10 mil de salário mensal.
Mesmo diante desse cenário desanimador, um número cada vez maior de meninas sonha em seguir os passos de Marta, Cristiane e Formigas, jogadoras-símbolo do Brasil. No mês passado, as longas filas formadas por candidatas surpreenderam os organizadores da primeira peneira colorada de futebol feminino. Desde as primeiras horas da manhã de 5 de março, um domingo chuvoso no Estado, mais de 700 meninas se inscreveram na seletiva realizada no CT do clube em Alvorada.
A procura acima das expectativas levou o Inter – que não disputa o Brasileiro e prepara o time para o Campeonato Gaúcho, no segundo semestre – a promover outra rodada de avaliação seis dias depois, desta vez com 60 jovens aprovadas na primeira peneira. Com as candidatas sentadas no gramado da Escola de Educação Física, Fisioterapia e Dança (Esefid) da UFRGS, a gerente do novo departamento de futebol feminino do clube, Duda Luizelli, foi encarregada de divulgar o nome das eleitas.
Ícone do futebol feminino gaúcho, ex-atacante que marcou época no Inter nos anos 1980 e 1990, com passagens pela seleção brasileira e pelos italianos Verona e Milan, Duda sabia que, de cada quatro meninas postadas à sua frente, apenas uma seria chamada para treinar no clube. Na tentativa de suavizar a frustração das barradas no teste, a dirigente evocou o exemplo de um jogador que driblou o “não” de diferentes treinadores antes de se consagrar em grandes clubes do futebol brasileiro e do Exterior até erguer a taça do penta do Brasil na Copa de 2002.
– Cafu foi reprovado em 20 peneiras e mesmo assim conseguiu seu espaço no futebol. Não desistam de seus sonhos – disse Duda.
Do ponto de vista anímico, o paralelo com a trajetória do ex-lateral e capitão da Seleção faz todo sentido. A diferença está nas perspectivas de carreira. Ao deixar o Jardim Irene – um bairro da periferia de São Paulo –, o ex-jogador de São Paulo, Palmeiras, Roma e Milan acumulou prêmios e salários que garantiram o futuro dos netos.
Entre as mulheres, são exceções os casos de atletas bem remuneradas – como Marta, a meia recém contratada pelo Orlando Pride-EUA que já foi eleita melhor do mundo em cinco oportunidades, e Andressa Alves, primeira brasileira a defender as cores do Barcelona.
O Exterior é a saída financeira – mas para poucas. Segundo a Confederação Brasileira de Futebol (CBF), hoje cerca de 35 jogadoras atuam fora do país. É praticamente o mesmo número de homens que atuam somente na Série A da Itália – na temporada 2016/2017, 31 brasileiros estão registrados no campeonato.
– A barreira do preconceito já foi superada. Há um movimento de maior inserção das mulheres no futebol. Por que havia mais de 700 candidatas na peneira do Inter? Porque existe o interesse das meninas em jogar futebol, há uma demanda que era reprimida – destaca a professora da UFRGS Silvana Goellner, coordenadora do Centro de Memória do Esportes da Esefid e pesquisadora da história do futebol feminino. – O que pesa mesmo é a ideia de que elas dificilmente vão se profissionalizar. O futebol ainda não é uma carreira para as mulheres – completa.
Apesar dos avanços conquistados desde a primeira convocação de uma seleção brasileira de futebol feminino, em 1988, a estrutura da modalidade no país apresenta apenas um verniz profissional. Na essência, "é frágil e semiamadora", reconhece o coordenador de futebol feminino da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), Marco Aurélio Cunha, um ex-dirigente do futebol masculino do São Paulo que assumiu o cargo na entidade há dois anos.
Mesmo nos principais clubes com estrutura de futebol feminino, os maiores salários giram em torno de R$ 3 mil, R$ 4 mil, um valor irrisório na comparação com os homens, que costumam ganhar cifras de seis dígitos nos times da Primeira Divisão. A regra para as mulheres é o pagamento de modestas ajudas de custo, sem carteira assinada. Assim, a maior parte das atletas se vê obrigada a ter duplo emprego.
– Não existe segurança para as jogadoras. Quando tudo parece estar bem, os clubes fecham. Quase ninguém dá valor ao futebol feminino no Brasil. Mas não tem como desistir, está no sangue – afirma Carla Tatiane Barbosa Antonio, a Carlinha, camisa 11 do Grêmio, que montou neste ano um time para disputar o Brasileiro em parceria com a Associação Gaúcha de Futebol Feminino (AGFF).
Campeonato Brasileiro só surgiu por obrigação
Nos últimos meses, um movimento iniciado pela Fifa com a meta de inflar a popularidade do futebol feminino vem injetando novo ânimo. Uma das principais ações práticas foi parida nos gabinetes da Conmebol, entidade responsável pela organização das competições na América do Sul. A partir de 2019, os clubes serão obrigados a montar equipes femininas se quiserem disputar a Copa Libertadores em sua versão masculina, principal torneio do continente. A CBF pegou carona e decidiu organizar, já a partir deste ano, um novo Campeonato Brasileiro feminino, com 32 times distribuídos em duas divisões.
A expectativa é de uma transformação em cadeia. Com mais times engajados, um número maior de mulheres será incentivado a encontrar o seu espaço no esporte. Logo, o nível técnico tende a aumentar, e jogos de mais qualidade têm potencial para turbinar o interesse do público e dos patrocinadores.
– Costumo fazer uma analogia nas conversas com as jogadoras. Sabe aquela estrada que leva para o litoral no início de um feriadão? Esse é o futebol masculino. No caminho inverso está o futebol feminino. A estrada está aberta para as mulheres no futebol. Quem imaginava, por exemplo, anos atrás, que jogadoras de vôlei ganhariam salários de R$ 100 mil? – diz Marco Aurélio Cunha.
Titular do ataque do Grêmio, o único representante gaúcho na Brasileiro A1, Carlinha disfarça a timidez para falar da esperança de ver o futebol feminino alçado a novo patamar. Aos 32 anos, com passagem pela seleção brasileira sub-20, a atleta porto-alegrense simboliza as agruras das boleiras que cumprem duplas jornadas – no grupo de 27 jogadoras do Tricolor, há desde vigilantes de escolas públicas e funcionárias de creche até arquitetas.
Moradora da Restinga, no extremo sul da capital gaúcha, Carlinha trabalha como doméstica há oito anos, servindo a um casal que mora em um prédio na Avenida Carlos Gomes, em outro lado da cidade. Para lavar roupas e louças, limpar salas e quartos e higienizar banheiros, assina a carteira por um salário mínimo regional, em torno de R$ 1 mil, valor superior ao que recebe de ajuda de custo para jogar no Grêmio. A fim de vencer o trânsito e os mais de 20 quilômetros que separam sua casa do local de trabalho, a talentosa atacante embarca em dois ônibus a partir das 8h. Uma hora e 10 minutos depois, em média, chega ao serviço.
Costuma estar de volta à Restinga em torno das 20h, mas só vai descansar em casa depois de malhar em uma academia da vizinhança, um esforço extra adotado nas últimas semanas com o objetivo de complementar o programa de preparação física traçado pela comissão técnica. Nos dias de treinos noturnos no CT do Cristal, nas terças e sextas-feiras, Carlinha só revê a família depois das 23h.
A exemplo de outras atletas, a atacante começou a exibir seu talento com a bola nos pés em jogos com meninos. Em casa, nenhum dos quatro filhos homens de seu Jorge Jatair Barbosa Antônio, um pintor automotivo aposentado de 66 anos, jogava mais do que a filha mais nova.
– Sempre achei o máximo ela jogar futebol – afirma o pai.
No princípio, a gurizada resistia em aceitá-la em campo. Mas não por preconceito, garante Jorge:
– É que eles tinham medo de machucá-la.
Quando constataram que aquela menina franzina não se intimidava, os garotos começaram a chamá-la em casa. Nos campinhos do bairro, Carlinha conheceu Diego Nunes Santana, um adolescente da mesma idade com quem engatou um namoro. Estão casados há 14 anos, e os dois também jogaram na base do Grêmio.
O futebol proporcionou a primeira viagem de avião da atacante, uma lembrança que ela guarda em fotos de uma era pré-digital. Em 2001, aos 15 anos, Carlinha ficou confinada por dois meses em treinamentos da seleção sub-20 na Granja Comary, em Teresópolis-RJ. Conviveu com Marta, posteriormente craque mundial, e Cristiane, a maior artilheira (com 14 gols) na história dos Jogos Olímpicos. Também conheceu – e tietou – Rivaldo, craque do Barcelona à época, então em tratamento de uma lesão no CT da CBF.
Um imprevisto a afastou dos campos por um longo período. Recém saída da adolescência, a jogadora deu à luz Diully em 2004. Treze anos depois, Carlinha, Diego e a garota vivem em uma garagem reformada no mesmo terreno onde mora o pai da atacante. No espaço de pouco mais de 30 metros quadrados, estão distribuídos o quarto do casal, um anexo com a cama onde dorme a filha, uma copa/cozinha, um pequeno banheiro e uma lavanderia. O plano, aproveitando a recente promoção de Diego a gerente de uma loja de eletrodomésticos, é poupar dinheiro com aluguel para comprar uma casa em outro bairro, de preferência na vizinha Hípica.
A família sabe que sonho da casa própria dificilmente será impulsionado com os gols, as arrancadas e as assistências de Carlinha. Após a gestação, ela voltou a jogar bola por amor ao futebol, não pelo dinheiro. Em 2008, passou a disputar torneios amadores de futsal. Ganhava cachês de R$ 100 a R$ 200 por partida. Mais tarde, foi para o Canoas/Duda, um time montado em parceria entre a prefeitura e a ex-jogadora, proprietária de uma rede de escolinhas de futebol. Sagrou-se campeã gaúcha.
– Admiro demais a Carlinha – destaca Karina Balestra da Luz, a parceira de ataque no Grêmio. – É muito sacrifício, não sei como ela encontra disposição para treinar e jogar tão bem futebol.
No Exterior, bons salários, fama, estádios lotados e muita saudade
Capitã e goleadora tricolor, Karina também cumpre expediente em outro endereço – mantém uma escolinha de futebol em parceria com Patrícia Gusmão, 38 anos, ex-atleta e técnica do Grêmio.
A diferença é que a jogadora de 35 anos já fez um pé de meia com o futebol, fruto de um contrato de três temporadas em um clube na Coreia do Sul que lhe permitiu comprar um sobrado de dois dormitórios em condomínio fechado em Cachoeirinha e um Jeep Renegade.
A atacante de 1m61cm e 53kg foi a autora do gol que garantiu os primeiros pontos gremistas na competição, contra o Vitória-PE, nos acréscimos. Uma semana depois, Karina voltou a balançar as redes, desta vez longe de casa, contra o Sport, em Recife, no empate em 1 a 1.
A paixão pelo futebol começou cedo. Aos três anos, ganhou uma boneca de presente da mãe. Em vez de brincar de casinha, preferiu improvisar uma bola com a cabeça arrancada da boneca para jogar com o irmão mais velho, Carlos Augusto. Com sete anos, já acompanhava o mano de 10 em partidas na vizinhança. No início, foi difícil engolir a presença de uma menina em meio a marmanjos. O irmão até comprou brigas com os amigos.
Karina também teve de superar o preconceito e o despreparo de professores, que torciam o nariz aos insistentes pedidos da aluna para jogar futebol com os guris na educação física. A falta de incentivo, aliás, persiste como um obstáculo às mulheres, que por quase quatro décadas, entre 1941 e 1979, foram proibidas por decreto do governo federal de participar profissionalmente de esportes considerados “rudes e violentos”, como lutas e futebol.
– Apesar dos avanços, ainda temos um longo caminho a percorrer. Os professores têm de se abrir mais. Continua existindo aquela cultura, nas escolas, de que menino joga futebol e menina joga vôlei – afirma o professor de educação física Leandro Vargas, que ministra aulas de graduação e pós-graduação no IPA.
Vencidas as primeiras barreiras, o futebol logo deixou de ser brincadeira para Karina. Aos 15 anos, passou a integrar o grupo feminino do Inter. Recebia R$ 300 de ajuda de custo, valor que, nos anos 1990, julgou suficiente para pedir à mãe, doméstica, que deixasse de trabalhar.
Em sete temporadas no Beira-Rio, Karina chegou à seleção brasileira. Em 2003, ao lado de jovens estrelas como Marta e Cristiane, venceu o Pan-Americano de Santo Domingo, na República Dominicana.
Após o fechamento do departamento de futebol feminino colorado, arrumou um contrato no Botucatu, do interior de São Paulo. O salário? R$ 700. Ainda rodou por outros clubes, como Juventude, Corinthians e São Bernardo do Campo. A vida da goleadora só começou a mudar para melhor quando surgiu a chance de jogar no Exterior. Antiga colega de seleção, a ex-zagueira Juliana Cabral encaminhou um vídeo com lances da gaúcha para um empresário com conexões na Ásia. O FC Suwon, clube da cidade homônima na Coreia do Sul, contratou a atacante. No país asiático, viveu dias de celebridade:
– Os sul-coreanos gostam mais do futebol feminino do que do masculino. Os jogos são transmitidos na TV, eu era reconhecida nos shoppings centers.
Depois de se habituar a jogar em campos sem arquibancadas e torcida no Brasil, Karina disputou clássicos em estádios da Coreia do Sul com público de 65 mil pessoas. Em 2010, a jogadora levantou o caneco do campeonato nacional. O sucesso asiático, claro, se refletiu na conta bancária. Chegou a faturar US$ 120 mil (mais de R$ 600 mil no câmbio atual) em apenas uma temporada.
– Lá, vivia só de bônus, nem mexia no salário. Os prêmios chegavam a US$ 500. O clube pagava bônus por gol marcado, por assistência. Se não faltasse aos treinos durante 20 dias, também ganhava um extra. Sem falar nos bichos por vitória. A temporada tinha nove meses, com um jogo por semana. Teve ano que ganhei cerca de US$ 30 mil só em prêmios.
A distância da família cobrou um preço caro à jogadora. Em 2012, o pai de Karina faleceu, e ela não conseguiu voltar a tempo para o velório e o enterro. A jogadora passou a refletir se o esforço de morar longe de tudo e de todos valia a pena. Resolveu retornar ao Brasil, mesmo com proposta para permanecer no Suwon.
– Meu sonho é ver essas meninas que surgem vivendo do futebol no Brasil. Mas hoje, se puder dar um conselho para elas, é: "Quer ganhar dinheiro no futebol feminino? Vá jogar fora do país".
A oportunidade de defender as cores de um time do Exterior surgiu por acaso para a goleira Renata Armiliato, 32 anos, colega de Karina no Grêmio. Apesar de incentivada desde cedo a praticar esportes, a caxiense inicialmente teve de superar um foco de resistência em casa. O pai de Renata preferia que ela jogasse vôlei. Já a mãe sentia “vergonha” de ver a filha disputando jogos de uma modalidade associada à virilidade.
A goleira de 1m72cm comenta:
– Muitas meninas que jogavam futebol eram masculinizadas, tinham cabelo curto. Algumas vezes, torcedores nos ginásios me chamavam de sapatão. Mas eu levava numa boa.
Logo a paixão pela bola passou a ocupar boa parte do tempo da jovem que deixava o Ensino Médio e ingressava no curso de Arquitetura da Universidade de Caxias do Sul (UCS).
– Eu jogava em qualquer canto, de quarta a domingo. Ganhava mais dinheiro com o futsal do que como estagiária. Até deu para fazer um pé de meia.
Em participações nos torneios amadores de futsal pelo Interior, recebia mais de R$ 1 mil por mês. Quando a goleira começou a se cansar da rotina de viagens, resolveu dar uma freada no futsal. Foi então que o futebol de campo apareceu. De 2004 a 2008, Renata foi camisa 1 do Juventude. No Alfredo Jaconi, integrou o time que disputou a Copa do Brasil e ganhou três títulos gaúchos.
– O Juventude tinha um departamento de futebol feminino organizado. Metade do grupo atual do Grêmio veio de lá – conta.
Mas o infortúnio golpeou a trajetória de Renata e suas colegas. A partir de 2007, sucedeu-se uma série de rebaixamentos do time masculino. De um clube de Série A, o Ju chegou a ficar fora até da quarta divisão. E elas acabaram pagando o pato do fracasso deles: a direção decidiu acabar com o time feminino.
Àquela altura, Renata se encaminhava para a conclusão da faculdade e, para dar um upgrade na formação acadêmica, buscou um intercâmbio em Portugal. Foi na Península Ibérica que uma experiência de estudos com prazo de validade de seis meses acabou se convertendo numa aventura remunerada – em euros – de quase dois anos.
Instalada em Guimarães, a gaúcha enturmou-se com garotas que jogavam futsal no Aves, clube da cidade portuguesa. Voltou a usar luvas nas quadras. E a disputar torneios. Suas boas atuações chamaram a atenção de um empresário espanhol.
Desconfiada como muitos gringos e gringas de Caxias, uma hesitante goleira aceitou o convite para visitar Logroño, cidade de 150 mil habitantes da província de La Rioja, conhecida mundialmente pelos vinhos de alta qualidade. Lá, ganharia salário mensal de 2 mil euros para defender o Kupsa Teccan. Por uma temporada, entre 2008 e 2009, disputou a Liga Espanhola de futsal feminino, invariavelmente em ginásios lotados país afora.
Novas ofertas chegaram, uma delas de um time italiano, mas Renata estava decidida a voltar ao Brasil. Com dois semestres pela frente para a formatura, os estudos voltaram a ser prioridade. Apesar do amor pelo futebol, não enxergava seu futuro no esporte.
A carreira de técnica ou qualquer outra função fora das quatro linhas jamais esteve em suas cogitações.
Formada há cinco anos, Renata se dedica durante a semana a visitas a obras e a projetos de design de produtos, outra de suas capacitações. Nas tardes de sexta-feira, a goleira adotou uma nova rotina. Desde fevereiro, desce a Serra de ônibus. A exemplo das demais colegas do Interior, treina com o restante do grupo apenas nas noites de sexta e nas manhãs de sábado. Mesmo assim, demonstra otimismo com os rumos do futebol feminino no Brasil:
– Meu sonho sempre foi ser arquiteta. Mas também sonho em ver as meninas se dedicando e vivendo exclusivamente do futebol, algo que só consegui lá fora. Sou da velha guarda, de um tempo em que as meninas pagavam para jogar. Gostaria de ter hoje 10 anos a menos para aproveitar melhor esse novo momento.
Duplo emprego e sacrifícios em nome dos sonhos
Luciane Vanzan, 40 anos, também só pensa em aproveitar o momento. Apenas a partir de 2014 a goleira começou a jogar sob traves de 2m44cm de altura e 7m32cm de largura. Até fazer parte do grupo do Canoas/Duda que conquistou os dois últimos títulos estaduais, Luciane havia disputado somente torneios amadores de futsal, defendo metas de 2m por 3m.
Em março, a microempresária foi convidada a fazer testes no Inter, em treinos no CT Parque Gigante, nas noites de segunda e quarta, e na Esefid/UFRGS, nas tardes de terça, quinta e sábado. Por ser dona do próprio negócio, conseguiu conciliar as atividades nos gramados a sua agenda de trabalho.
Luciane não alimenta ilusões. Tem consciência de que dificilmente receberá salários no futebol e, mesmo se ganhasse, o valor do contracheque não chegaria perto do seu faturamento na Imperlav, a pequena empresa de limpeza e impermeabilização de estofados que emprega um funcionário. A goleira cobra mais de R$ 500 pelo serviço completo em um sofá de três lugares.
Para a gaúcha de Horizontina, radicada há 20 anos na Capital, o importante é jogar bola. Um exemplo de sua devoção ao esporte: há três anos, engravidou do segundo filho. Vinte dias depois do nascimento de Bernardo, Luciane já estava em campo outra vez, em um torneio de futebol 7.
Por duas semanas, a goleira treinou ao lado de outras 38 jogadoras no Inter. Luciane acabou de fora do grupo de 22 atletas que, sob o comando da técnica Tatiele Silveira, disputará amistosos e o Campeonato Gaúcho no segundo semestre.
– Almejo pouco no futebol. Já fico feliz só por ter contribuído com o projeto do Inter e servido de exemplo para as meninas não desistirem – afirma.
Melhor sorte teve Carolyne da Rocha Capistrano, a Carol Sangue, nome de guerra da vigorosa zagueira. Chamada para integrar o elenco colorado, a jogadora de 29 anos se destaca pelo alto astral – sempre com o sorriso aberto, costuma puxar as brincadeiras nos treinos – e pela estatura: 1m79cm. Poucas colegas batem a cabeça em seus ombros. Até mesmo Tiago, casado há 10 anos com a jogadora, tem de erguer os olhos para falar com a mulher.
Cria do Partenon, na zona leste de Porto Alegre, Carol, na infância, chegava a disputar peladas improvisadas no corredor de ônibus da Avenida Bento Gonçalves, à noite, nos horários de menor movimento. Na adolescência, passou a ser vítima de bullying, resultado da preferência esportiva e do porte físico incomum da garota.
– Me chamavam de maloqueira. A mãe de uma amiga não queria que a filha andasse comigo. Achava que eu era lésbica. No fim, descobriram que quem gostava de mulher era minha amiga, não eu – sorri.
Hoje, Carol concilia aquilo que define como suas duas grandes paixões: o futebol e as crianças. Estudante de Educação Física, a zagueira é instrutora da Escola da Duda, que recebe mais de mil meninos e meninas em oito unidades distribuídas em Porto Alegre, Canoas e São Leopoldo. No futuro, planeja montar sua própria escolinha.
Já a paranaense Cibele Ariane Ogioni Damaceno traça metas mais ambiciosas. Selecionada nas peneiras do Inter e aprovada nos treinos de formação do grupo, a meia-atacante de 19 anos pretende trilhar os mesmos passos da ídolo Marta:
– O maior sonho, sem dúvida, é vestir a amarelinha e depois jogar na Europa. Quero ter o futebol como profissão – afirma Cibele, que afirma ter sido aprovada em uma peneira da seleção feminina sub-17, há dois anos, mas acabou cortada por lesão.
Com passagem nas bases de Atlético-PR, Coritiba e Paraná, Cibele viu as portas fechadas em Curitiba com a desativação da estrutura de futebol feminina dos três principais clubes do Estado. Para se manter em atividade, treinava no Águia Dourada, um clube amador mantido por Diana Carla, 31 anos. Funcionária de uma empresa de impressão digital, Diana viu o anúncio da peneira do Inter e inscreveu a garota, a quem acolheu como se fosse uma “filha de coração”. No dia da primeira peneira, tirou do próprio bolso o dinheiro das passagens de ambas para Porto Alegre. Na segunda viagem ao Rio Grande do Sul, elas arrecadaram cerca de R$ 1 mil em rifas para custear as despesas.
Nos jogos das duas rodadas da seletiva, a velocidade e o instinto de artilheira de Cibele chamaram a atenção de Duda e Tatiele. Com uma bandana à la Ronaldinho prendendo os cabelos, a garota fez gols e distribuiu assistências.
Ao escutar o nome da pupila anunciado por Duda no final de tarde do dia 11, Diana irrompeu em lágrimas. Tomada pela emoção, ela também tentava controlar a angústia:
– Vou ter de encontrar um lugar para ela ficar aqui. Não temos condições de pagar a hospedagem.
A solidariedade de uma família de Gravataí pôs fim ao sofrimento. Nas longas filas da peneira colorada em Alvorada, a paranaense fez amizade com Greyce Débora, outra candidata a jogadora do Inter, que estava acompanhada dos pais. Deles, ouviu a promessa de que seria acolhida caso fosse aprovada na seletiva. Nas duas semanas seguintes, Cibele instalou-se na casa da família.
Daqui para frente, o lar da paranaense será um quarto de hotel em Porto Alegre. Ao enxergar o potencial da garota, o Inter abriu uma exceção e decidiu bancar a hospedagem dela. Sem remuneração garantida (o clube ainda estuda pagamento de um salário mínimo na carteira às jogadoras), Cibele ganhará benefícios como plano de saúde e bolsa de estudos. É pouco. Assim como suas colegas de vestiário, a promissora meia-atacante provavelmente terá de buscar alguma vaga de trabalho em outra atividade para se manter com dignidade.
* ZH Esportes