Foi em uma casa humilde na esquina entre as ruas Castelo Branco e Laranjeiras, na pequena cidade de Salete, interior catarinense, que Odair Hellmann passou a infância e parte da adolescência. Na moradia de madeira, dividia o quarto com o irmão Volmir. As irmãs Vilma e Evanir dormiam em outro cômodo, e os pais, Adolfo e Bernardete, em um terceiro. Nos 14 anos em que residiu no município de pouco mais de 7 mil habitantes, o atual técnico do Inter destacou-se com a bola nos pés. Mas também teve de batalhar e se superar, verbos que precisa conjugar até hoje.
Na semana em que time de Odair disputou o primeiro jogo da final da Copa do Brasil, a reportagem de GaúchaZH esteve em Salete para conhecer as origens do treinador. Conversou com familiares, amigos, ex-professores e até com o primeiro chefe. E só ouviu elogios.
A primeira informação obtida na cidade situada no Vale do Itajaí, quase ao centro de Santa Catarina, é de que os Hellmann são muitos no município colonizado por alemães e italianos. Tantos que formam o time tricampeão do maior campeonato de futebol familiar do Brasil. A segunda é de que lá o técnico é conhecido como Doda. Do atendente do restaurante ao ex-prefeito, todos chamam o treinador pelo apelido que recebeu de uma vizinha quando ainda era bebê. A mãe de Odair, Bernardete Hellmann, 74 anos, segue morando na casa onde ele foi criado. Ela descreve o seu filho caçula na infância como um menino muito tranquilo e estudioso.
— O futebol sempre foi a paixão da vida dele — acrescenta.
— Uma vez uma professora me disse que, na escola, ele ia para a biblioteca e ficava inconformado por não ter livros sobre futebol — conta Vilma Hellmann Locks, 53 anos, irmã mais velha do treinador.
A paixão pela bola era tanta que Odair e os amigos Emerson Angelo, o Mecha, Cesar Adriany David e Julio Cesar Hellmann saíam de casa uma hora antes da aula começar para jogar na quadra da Escola Estadual Guilherme André Dalri.
— Íamos mais cedo para jogar descalço na quadra de cimento, porque não podíamos estragar os tênis — conta Mecha.
Outro ponto para bater bola era o módulo esportivo, o campo principal da cidade. Como muitas vezes estava fechado, os garotos precisavam pular o muro para utilizá-lo. As partidas se estendiam até o anoitecer e só eram encerradas pela falta de iluminação.
Nos campeonatos estudantis, o talento de Doda foi chamando a atenção. Atual secretário de Educação da cidade de Taió, João Tadeu Corrêa era professor de Educação Física do menino esguio, o caçula dos Hellmann.
— Ele era um atleta de múltiplas modalidades, o que era esporte, estava dentro. Era muito educado e já exercia liderança no grupo. No handebol, era armador refinado. No futebol, já tinha um diferencial, era habilidoso. Em quadra, nunca foi agressivo, sempre um apaziguador — destaca.
Segundo o professor, ver Odair ter sucesso no mundo da bola é emocionante.
— A gente sabe das dificuldades que ele passou, da origem da família, que é humilde. Cheguei a comprar tênis e chuteiras para enviar a ele nos primeiros anos em Porto Alegre _ acrescenta Corrêa.
Professora da Estadual Guilherme André Dalri há 27 anos, Soely Bonin também recorda do ex-aluno, classificado por ela como muito educado, responsável e guerreiro nas competições.
— Eu o vejo na TV e percebo as mesmas características que tinha, de um conciliador. Merece todo o sucesso que está tendo — opina.
Além da habilidade com a bola, Odair já mostrava em Salete características que mantém até hoje, como a de lutar diante das adversidades. Com 12 anos, um grande susto. Passando um período no sítio da irmã Vilma, onde gostava de ir para a roça e tomar sopa de batatinha com o cunhado Luiz Valério, teve febre alta. Por sorte, acabou levado ao hospital a tempo, pois o diagnóstico foi de meningite.
Também muito cedo começou a trabalhar. O primeiro emprego foi em um moinho, chamado de tafona. No local, era moído o milho e descascado o arroz. Com 13 anos, o menino tímido ensacava fubá (farinha de milho ou de arroz) e entregava aos clientes.
— Era um ótimo funcionário, sempre atendia bem, mas a parte que ele mais gostava do dia era o pão com bolinho de carne que minha mãe servia como lanche _ relembra aos risos o ex-chefe, o eletricista Aldo Kuhnen, também vereador no município.
Um obstinado
Ainda guri, na casa de esquina entre as ruas Castelo Branco e Laranjeiras, Odair folheava uma revista Placar quando falou ao amigo Cesar Adriany David, hoje com 43 anos: "um dia, vou estar nesta revista".
E a previsão se confirmou, principalmente pela dedicação do menino nascido em 22 de janeiro de 1977, mas também pelo apoio do pai, Adolfo Hellmann Neto, que morreu em 2013, e também pelo empurrãozinho de um ex-prefeito de Salete.
Em um jogo que o adolescente Doda atuava entre os adultos, o contador Janir Brandt estava a marcá-lo. Por duas vezes, foi facilmente driblado pelo menino magrelo e rápido.
— Na terceira, joguei ele no alambrado — sorri o ex-prefeito.
Encantado com a atuação do garoto, fez contatos com Grêmio e Inter. A escolha por Porto Alegre ocorreu pela proximidade e também pelo histórico de sucesso dos catarinenses na Dupla, casos de Falcão e Valdo, por exemplo. No Olímpico, Odair foi aprovado nos exames físicos. Teria de voltar no outro dia para avaliação técnica, mas no Beira-Rio acabou aceito de imediato e, por isso, o guri resolveu vestir vermelho.
Ter um filho jogador era o sonho de seu Adolfo, mas o fato do caçula deixar o lar da família abalou a mãe, Bernardete. Ela se manteve firme diante do filho de 14 anos, não disse para ficar em Salete, mas quando ele deixou a moradia com a mala em punho, não aguentou. Foi até o pátio, agarrou-se em parreira e chegou a gritar de tanto chorar.
E os primeiros anos em Porto Alegre foram de batalha para Odair. Como ainda não tinha direito a alojamento no clube, ficou hospedado em quarto pequeno de uma pensão. Para custear as despesas na Capital, lavava pratos e limpava chão de restaurante. A família, em Salete, fazia o que podia para ajudar, mas tinha poucos recursos. Seu Adolfo havia abandonado carreira de policial militar para cuidar do pai, que estava doente. Por anos, trabalhou em uma cooperativa, como motorista de caminhão e depois na prefeitura. Sempre que dava, aproveitava o transporte de pacientes de Salete que precisavam de atendimento no Rio Grande do Sul e escapava para ver como estava o filho. Já dona Bernardete, em época que celular e internet nem habitavam nossa imaginação, sofria com a ausência do caçula:
— Só a mãe sabe o que era a saudade — recorda.
Aos poucos, Odair foi melhorando as condições de vida em Porto Alegre e a ganhar espaço no Inter. Em 1997, jogou o Mundial Sub-20 em uma seleção que tinha nomes como Athirson, Fernandão e Alex (ex-Palmeiras), entre outros. O guri, enfim, tornara-se jogador.
— Era um sonho que a gente tinha também. Vivemos juntos esse sonho — conta Mecha, o amigo de Doda desde o jardim de infância.
Pouco aproveitado no Inter, em 1999, o volante Odair foi para o Fluminense, que estava na Série C e era treinado por Carlos Alberto Parreira. No Rio, estava em bom momento, mas enfrentou outro drama, uma lesão ligamentar no joelho. Machucado e com salários atrasados, voltou a ter dificuldades para se manter.
— Lembro dele ligar em um domingo de Páscoa. Estávamos em uma celebração aqui em casa e ele disse que lá, não tinha nem migalha de pão — relata a irmã Vilma.
— Chorei muito naquele dia — completa a mãe.
Para o amigo Mecha, a lesão no Fluminense prejudicou a carreira de Odair, que ainda jogaria no Remo-PA, no futebol sueco e até em Hong Kong.
No último clube como jogador, já casado com Jaqueline e pai de Guilherme (enteado que considera um filho), Giovanna e Vitória, mais uma fatalidade na vida do atual técnico colorado, o acidente com o ônibus do Brasil-Pel, em 2009, que deixou três mortos. A tragédia fez com o que o volante, então com 32 anos, abreviasse a sua trajetória dentro dos gramados.
Eu o vejo na TV e percebo as mesmas características que tinha, de um conciliador"
SOELY BONIN
Ex-professora de Odair
A morte do pai
Após a aposentadoria como atleta, Odair pediu uma oportunidade no Inter. Precisava trabalhar e ajudar no sustendo da família, já que a vida jogador não rendeu muitos dividendos. Começou trabalhando na base e foi subindo até se tornar auxiliar da comissão técnica permanente do time principal.
Em dezembro de 2013, porém, levou um duro golpe. Havia três anos que não visitava Salete. Horas depois de chegar à cidade, o pai, que dias antes tinha feito teste de esteira e fora considerado bem de saúde, sofreu um infarto. Dona Bernardete gritou e pediu o socorro do filho. Odair fez massagem, tentou respiração boca a boca, mas seu Adolfo acabou morrendo.
Em Salete, quando se fala em Odair, ou melhor, em Doda, todos relacionam a seu Adolfo e ao esforço feito por ele para o filho vencer na vida.
— Ele (pai do Odair) fez o possível e o impossível para mantê-lo no Inter — afirma o amigo Cesar Adriany David.
Quis o destino que os anos após a morte de seu Adolfo fossem os mais prósperos na carreira do filho ilustre de Salete. Já como Papito, apelido que recebeu depois de assistir a um um filme no qual um dos personagens chamava todos de Papito, ele assumiu a equipe algumas vezes como interino e tornou-se treinador da equipe principal no final de 2017. A irmã Vilma alertou dos riscos que os técnicos correm, mas Odair afirmou que não poderia perder a oportunidade. O ex-auxiliar carimbou o retorno do clube à Série A e terminou o Brasileirão do ano passado na terceira colocação.
Dona Bernardete foi a um jogo no Beira-Rio em 2018 e se emocionou. Ainda hoje, antes das partidas, o caçula liga para ela e pede apoio por meio de orações. O mesmo ocorre no grupo de WhatsApp que tem com os três irmãos.
Em Salete, onde a maioria torce para times de Rio e São Paulo, a torcida agora é toda para o Inter.
— Ele é um grande orgulho para a família e para a cidade. Imagina um município deste tamanho ter alguém se destacando em nível nacional — enfatiza a diretora de Desporto, Marilu Senem.
Agora, o treinador de 42 anos está a um passo daquela que pode ser a sua maior glória, o título da Copa do Brasil. E como já disse em outras oportunidades, seu único lamento é que o pai não possa estar acompanhando a sua ascensão. Dona Bernardete pondera:
— Eu sempre digo que o Adolfo ajuda ele lá do céu.
Para quem tanto lutou, sofreu e venceu, superar o Athletico-PR não será o maior dos desafios da vida de Odair Hellmann.
Confira galeria de fotos da família de Odair Hellmann, em Salete-SC: