Em fevereiro de 2017, ao ficar sem o meia Douglas, afastado por lesão no joelho esquerdo,
o técnico Renato Portaluppi mirou a categoria de base em busca de uma solução caseira.
Deu-se, então, seu primeiro contato com Jean Pyerre, que ainda nem completara 19 anos.
As primeiras chances, recebidas ao longo do Brasileirão, quase renderam ao garoto nascido em Alvorada a inscrição nas semifinais da Libertadores. Jael, mais experiente, ganhou a vaga.
Vítima do fraco desempenho do time de transição no Gauchão de 2018, Jean Pyerre voltou ao grupo que treinava com o técnico Thiago Gomes em Eldorado do Sul. Sua qualidade, contudo, falou mais alto e, em julho, o meia retornou às mãos de Renato. Desta vez, para não mais sair.
Destaque neste início de Gauchão, com assistências precisas, Jean Pyerre faz o Grêmio desistir da ideia de contratar um armador experiente. Nesta entrevista ao GaúchaZH, mostra uma maturidade incomum para sua idade.
Como você está vendo seu momento? Fica mais seguro quando atua junto dos titulares?
O final de temporada que tive em 2018 me ajudou muito. Ganhei experiência e confiança para jogar. Estou mais tranquilo para arriscar. Fazer o que sempre fiz, já que, às vezes, a gente fica com receio. Mas os próprios jogadores e o professor Renato falam para a gente arriscar, não ter medo. Se errar, corre atrás da bola de novo, mas tem de arriscar. Isso me deu mais segurança nesse começo de 2019 para iniciar jogando bem e com resultados.
Você está encarando este Gauchão como uma vitrine para ganhar chance na Libertadores?
Todo jogo é muito importante, toda a competição importa. Para aqueles que dizem que Gauchão não vale nada, é mentira. Estou encarando como se fosse uma Copa do Mundo.
Como você aprendeu a dar lançamentos precisos como o que fez contra o Juventude?
Tem algumas coisas que nascem com a gente. Sempre joguei futebol, desde pequeno, então eu não caí de paraquedas ali. Claro que não foi da noite para o dia, mas estou aprimorando o que fazia desde criança. Não é um segredo que eu tenha aprendido.
Você já está percebendo o reconhecimento dos torcedores quando anda na rua?
Sim, muda quando você começa a aparecer e a jogar um pouco mais. Ontem (terça-feira) mesmo eu estava no shopping e fui bastante reconhecido. A gente fica feliz também, é algo que a gente sempre sonhou quando estava na base. Tem pessoas que já estão acostumadas, mas ainda sou novo nisso. Antes quem tietava jogadores era a gente, agora nós somos tietados.
Você jogava futebol com limões do seu pai quando era criança?
Quando eu era pequeno e tinha churrasco em casa, ele gostava muito de tomar caipira. Uma certa vez eu peguei o limão, comecei a jogar e ficou macio. Então, todas as vezes que ele ia fazer a caipira, eu pegava o limão e ficava jogando. Talvez até um pouco deste cacoete que eu tenho de pisar na bola é por causa do limão. Eu nunca joguei futsal, e quem joga faz muito. Foi algo que me ajudou, querendo ou não. Tudo a gente aprende. Por ser limão, não podia deixar estourar. Tinha que cuidar bastante para deixar no ponto certo para o meu pai.
Seu pai também orienta você para se expressar bem em entrevistas?
Sempre que aparecia alguém na televisão, algum jogador falando, principalmente se estava falando errado, não estava se expressando da forma correta, ele falava "olha como é feio, como você tem de estudar, saber se expressar e falar as coisas". Ele falava para mim e para meu irmão pequeno também. Querendo ou não, é aprendizado. Nós aprendemos muito com isso. Se isso não tivesse acontecido, talvez um outro pai ia chamar o filho e dizer "olha o Jean Pyerre falando errado".
Como foi o episódio do incêndio na casa de vocês no ano passado? Está superado?
Foi um momento bem difícil, a gente praticamente perdeu tudo. Não tinha ninguém em casa. Quando cheguei com meu pai, meu irmão e meus amigos, a gente viu a sala pegando fogo. A gente achava que talvez o problema seria só na sala, mas foi na casa toda. Mas a gente teve bastante ajuda no Grêmio, todos os jogadores nos ajudaram, fizeram uma vaquinha para que a pudéssemos colocar as coisas dentro de casa de novo. O pessoal aqui perto de onde eu moro também deixou a gente ficar um tempo na casa deles até tudo se estabilizar.
Sua família continua morando na mesma casa?
Sim, a gente segue em Alvorada. Os danos foram mais materiais, o incêndio não destruiu a estrutura da casa. Conseguimos repor tudo, praticamente reformar a casa. O incêndio ocorreu por conta de um raio, e a gente não tinha aterramento embaixo. Aí pegou no fio do telefone, da TV por assinatura, do som, da TV. Juntou tudo.
Você contou com a ajuda da psicóloga do Grêmio, Fernanda Faggiani, para voltar a jogar no ano passado?
Sim, fiz um trabalho com a Fernanda. Uma psicóloga que sempre conversei e me senti à vontade para falar. Ela me ajudou a esperar e entender que o meu momento chegaria. Me ajudou muito nesta questão da ansiedade, me mandava mensagens e, quando era possível, conversava pessoalmente comigo também.
Como foi para você ter de voltar para a transição depois de ter aparecido no fim de 2017 e no início do Gauchão 2018? De que forma você administrou este período?
Foi um momento bem difícil para mim, pelo fato de ter de treinar no CT de Eldorado do Sul. Fiquei um mês fazendo treino físico lá. Fui cumprindo com meus deveres, chegava e saía sempre no meu horário. Naquela época, muita coisa foi falada a meu respeito. Que eu era isso, era aquilo, e nada se comprovou. Foi uma época em que fiquei muito chateado. Minha mãe chorava todos os dias por tudo o que ouvia a meu respeito e por saber que era mentira. Assim como, quando pegou fogo na minha casa, falaram que era porque eu estava usando drogas. Então, são coisas que eu venci. Para quem torcia contra mim, queria cavar algo contra mim, hoje deve estar tentando mais alguma coisa. Venci aquela etapa e estou colhendo os frutos.
Este período serviu como uma grande lição para você, então?
Sim. Muita coisa foi dita a meu respeito naquela época. Meu pai gosta bastante de ouvir rádio, ouvia muita coisa de mim que era muita mentira e nunca tinha acontecido. Diziam que eu brigava e chegava atrasado, ou algo do tipo. Coisas que nunca aconteceram nos 12 anos em que estou no Grêmio. Minha mãe chorava bastante, já nem ouvia o rádio para se prevenir e não ter de passar por isso tudo. E eu lá, indo trabalhar todos os dias, sem reclamar de nada. Apenas fazendo minha parte.
Esse desabafo é importante. Você poderia ficar rotulado por algo que não fez.
Sou uma pessoa muito simples. Não tenho frescura, nem nada. Algumas pessoas me encontram e dizem "poxa, você joga no Grêmio". Eu digo "não muda nada, sou um ser humano igual a qualquer outro". As mesmas coisas que os outros sentem, eu sinto, dou risada pelos mesmos motivos. Então, não tem diferença. Não sou um monstro do Ben 10 (série de desenho animado), que se transforma pelo fato de ser um jogador. Não tem diferença, sou um ser humano como todo mundo.
Como foi o episódio da comemoração após o gol do Matheus Henrique contra o Novo Hamburgo, simulando armas em punho em menção ao jogo PUBG, e que alguns disseram que seria uma referência ao presidente Jair Bolsonaro (PSL)?
A gente combinou antes que faria aquilo. Depois, a gente foi ver (nas redes sociais) e estavam falando que era em apoio ao presidente. Não tinha nada a ver. Era uma comemoração que a gente estava fazendo e teve de parar para explicar. Tem pessoas que querem mais complicar do que entender. A gente joga bastante este jogo, porque é online e todos podem participar.
Qual foi o jogo até agora que mais marcou para você no profissional do Grêmio?
Tem dois jogos. O contra o Atlético-MG, em 2017, meu primeiro jogo, e o Gre-Nal, no ano passado, que foi minha reestreia no profissional depois do tempo que eu tinha ficado na transição. Entrar em um Gre-Nal, por toda a grandeza e história que tem, pude ir bem. Os comentários foram os melhores possíveis, fiquei muito feliz. Estes jogos me marcaram bastante.
Você começa a ser comparado a outros jogadores, como o Paulo Henrique Ganso. Você se inspira em alguém?
Quem eu cresci vendo jogar, pude acompanhar a carreira e acho que foi o melhor de todos, foi o Ronaldinho Gaúcho, que sempre gostei muito. Ao longo dos anos também me inspirei no Pogba e no Iniesta. Sempre gostei desse estilo de jogo de toque, de jogo curto. Vejo que muitas pessoas pedem que eu tenho de melhorar a velocidade. Não tem como. Jogador do meu tamanho e do meu estilo, se você não nasce com a corrida, não vai conseguir jogar desse jeito. Você nunca vai ver o Ganso correndo mais do que o Neymar. Comigo, é a mesma coisa.
O Ronaldinho se encontrou contigo durante suas férias, não é?
Pude realizar esse sonho de conhecê-lo. Me tratou muito bem, parecia que a gente se conhecia há 20 anos já. Me deu bons conselhos, fiquei muito feliz. Me marcou bastante. Ele elogiou minha qualidade e disse para eu sempre focar, valorizar tudo, o clube em que estou, a minha família também. E que quando as coisas dessem certo e eu começasse a aparecer, que eu não me deslumbrasse com aquilo porque eu poderia alcançar coisas muito maiores.
O quanto o Thiago Gomes te ajudou a evoluir no seu estilo de jogo?
Quando ele chegou ao Grêmio, no terceiro dia ele me chamou para conversar. Falou que eu precisava melhorar algumas coisas e que ele estava ali para me ajudar. Que ia pegar no meu pé e não queria que eu o entendesse de forma errada. Ia me ajudar a melhorar minha retomada de bola e também a entrar mais na área. Ele foi usando os métodos dele e me ajudou muito nessas coisas. Na questão da retomada eu melhorei muito, mas ainda tenho bastante para evoluir. Quanto a entrar na área, comecei a fazer gols na base e fui gostando. Agora, no profissional, ainda não saiu, mas o gol vai vir no momento certo.
Quem quer ser vitorioso tem de conquistar títulos grandes
JEAN PYERRE
Sobre a disputa da Libertadores
E no que o Renato te fez melhorar como jogador?
O professor tem trabalhado muito nesta tecla de eu entrar mais na área e finalizar mais no gol. Às vezes, chego na cara do gol e quero dar passe, pifar. Ou às vezes faço a jogada e não acompanho. Ele conversa muito comigo para que eu finalize mais e entre mais na área. Vai me corrigindo as coisas que eu erro quando a gente revisa as jogadas no vídeo.
Como foi a mudança de deixar de ser volante para virar o meia que hoje você é?
Quando eu subi para o time de transição, meu treinador foi o Felipe Endres. Ele disse que eu tinha qualidade na finalização e de achar passes perto do gol e que iria me treinar mais perto da área. Quando eu era menor, joguei em alguns momentos como meia. Então, não tive muita dificuldade. Só fiquei com alguns cacoetes de volante, como descer um pouco para pegar a bola. Mas tudo isso estou trabalhando, tentando evoluir para mudar.
De que forma os jogadores mais experientes do grupo te aconselharam e te ajudaram a chegar onde você está?
Os conselhos deles são muito no dia a dia. São jogadores muito importantes para o clube e para a gente que vem da base, porque nos acolhem e nos dão total liberdade para chegar neles e falar qualquer coisa. Também dão total liberdade para que a gente não tenha medo de jogar dentro de campo. Assim como o professor, só pedem que, se a jogada não der certo, não ficar se lamentando e tentar recuperar a bola. Eles confiam muito na gente, isso me deixa muito tranquilo e muito seguro. Procuro sempre aprender vendo eles treinarem. Tem vezes que a gente faz uma jogada no treino e eles aconselham: "Se tu dominar a bola de frente, tu já ganhas mais tempo". Tudo o que eles podem ajudar, que veem que estamos fazendo errado, eles têm mais experiência do que a gente e nos ajudam bastante.
Os jovens da base do Grêmio estão se destacando bastante. O Arthur foi para o Barcelona, o Tetê, que ainda nem estreou no profissional e já teve proposta da Ucrânia. A possibilidade de ter um futuro na Europa mexe com você?
Procuro não me envolver com estas questões. A gente tem de focar só no que é importante, só no Grêmio. Claro que tenho o sonho de jogar na Europa, lá fora. Mas no momento certo isso vai acontecer. Se eu não fizer as coisas acontecerem aqui, talvez este sonho não se concretize. Também quero construir minha história no Grêmio antes para depois seguir meu sonho.
Jogar a Olimpíada no ano que vem também é um objetivo que passa pela tua cabeça?
Lógico que eu penso. Sabendo onde eu posso chegar, trabalho para que possa brilhar uma oportunidade para mim. Mas se não brilhar, também, faz parte. É consequência. A gente trabalha almejando coisas maiores sempre.
É um sonho para você conquistar o título da Libertadores neste ano?
Claro. Um título dessa grandeza, todo mundo quer. Quem quer ser vitorioso na vida tem de conquistar títulos grandes. Lógico que é um sonho que tenho, de conquistar e estar no grupo. Eu já estava no profissional quando o clube ganhou a Libertadores, mas não estava jogando e nem inscrito. No ano passado, já estava inscrito. Talvez neste ano chegue o meu momento. Sigo trabalhando, buscando meu espaço jogo a jogo.
Essa exposição toda que você está tendo pode também ser encarada como uma pressão?
Lido tranquilamente com isso. Fico muito feliz com este reconhecimento. Não tem pressão nenhuma. Também pelo fato de que estou fazendo algo que eu gosto, que faço desde pequeno. Na minha cabeça, não tem pressão. Levo isso mais como me divertir com responsabilidade dentro de campo. É onde eu sou feliz, esqueço de todos os meus problemas e posso desfrutar daquilo que eu mais amo.