A possibilidade de os pais deixarem de matricular seus filhos em escolas públicas ou privadas e educá-los em casa está no aguardo de julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) – seria discutida na quinta-feira (30), mas a votação foi adiada. Em debate, um tema que opõe organizações e pais que defendem a educação domiciliar a órgãos públicos e educadores que veem, nessa prática, problemas como falta de socialização e até abandono intelectual.
No Brasil, não há regulamentação que autorize ou impeça a educação domiciliar. A Constituição de 1988 garante que a educação, “direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. Prevê, ainda, que deve ser garantida “educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade, assegurada inclusive sua oferta gratuita para todos os que a ela não tiveram acesso na idade própria”.
Para o Ministério da Educação (MEC) e juízes que, no passado, deram decisões contrárias à prática, deixar de matricular crianças na escola fere o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) e a própria Constituição. Para quem defende o homeschooling, como essa alternativa é conhecida internacionalmente, não há por que impedir o estudo em casa – muitos, inclusive, sugerem que os alunos sejam submetidos às mesmas provas aplicadas nas escolas.
— O ensino domiciliar não é algo generalizado: é uma luta de pais que têm condições de promovê-lo, que vão dedicar um tempo da vida deles a esse tipo de educação, utilizando livros didáticos típicos das escolas e se dispondo a levar os filhos para as mesmas provas — explica o advogado Júlio César Tricot Santos, mestre em Direito e autor da ação que será julgada no STF.
O que caberá aos ministros decidirem é a constitucionalidade da educação domiciliar: se isso pode ser feito no país ou não. No julgamento, não será definido, por exemplo, o método a ser aplicado, ainda que possam ser estabelecidas condições mínimas para a prática. A tarefa de criar uma legislação a respeito caberia ao Congresso, em caso de autorização do STF. Caso contrário, os pais que hoje educam os filhos em casa podem, inclusive, responder criminalmente por isso.
Processos que estavam tramitando em todas as instâncias judiciais sobre o tema estão parados desde dezembro de 2016, quando o ministro do Supremo Luís Roberto Barroso acatou um recurso extraordinário e determinou que as decisões relacionadas à educação domiciliar fossem suspensas até que a Corte desse um parecer final a respeito – o que deve acontecer nesta semana.
Como funciona o homeschooling
Na educação domiciliar, o estudante não frequenta escolas formais: todo o aprendizado se dá em casa, sob orientação e supervisão dos pais ou de professores particulares, geralmente a partir de um currículo preestabelecido e semelhante ao adotado nas escolas, além de cronograma específico. Não há professores, colegas – a não ser irmãos, por exemplo –, chamada ou recreio. São as próprias famílias as responsáveis por definir em que ritmo e com quais conteúdos será feita a formação do estudante.
Isso não quer dizer que não haja cobrança. A forma de acompanhar as descobertas e avançar nos conteúdos é diferente, feita em ambiente familiar.
— Os pais que escolhem ensinar seus filhos em casa geralmente veem a escola como um fator adverso, ruim mesmo, para a formação da criança, entendendo que uma série questões, como indisciplina em sala de aula e bullying, atrapalha a aprendizagem — define Édison Prado de Andrade, advogado e fundador da Associação Brasileira de Defesa e Promoção da Educação Familiar (ABDPEF).
Quando um Estado ou município identifica que um aluno deixou de estar matriculado em uma escola, costuma acionar o Conselho Tutelar, que comunica o caso ao Ministério Público (MP). A promotora de Justiça Luciana Casarotto explica que, para o MP, nos casos de homeschooling há infração dos deveres do poder familiar, uma vez que a frequência à escola é obrigatória a toda e qualquer criança, ressalvados casos específicos de educação especial.
— Independentemente da postura familiar, ainda que contra os pais, o direito da criança e do adolescente em frequentar uma escola regular é tutelado pelo Ministério Público. Deixar ao encargo da família toda a educação de seus filhos poderia fazer com que ficassem restritos àquele círculo, sem a convivência sadia com a sociedade, em toda sua diversidade, e fundamental para seu pleno desenvolvimento — afirma Luciana.
— A frequência obrigatória à escola, é bom lembrar, não se trata apenas de uma questão meramente pedagógica, mas, sim, de socialização, de inclusão social — completa a promotora de Justiça Regional da Educação.
Como essa não é uma prática regulamentada no Brasil, um dos problemas da educação domiciliar está em comprovar que o estudante teve uma formação adequada. A alternativa para os alunos, desde o ano passado, quando o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) deixou de poder garantir esse diploma, tem sido buscar o certificado de conclusão do Ensino Médio por meio do Exame Nacional de Certificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja). Para isso, no entanto, o candidato precisa ter no mínimo 18 anos completos na data da prova.
Sem escola, mas com diploma
Depois de completar todo o Ensino Fundamental e metade do Ensino Médio em escolas particulares de Porto Alegre, Diego Burger, aos 16 anos, deixou de frequentar as aulas tradicionais. Atleta em formação, participava de competições internacionais de tênis, e a família identificou que ele não conseguia conciliar esporte e colégio. Somou-se a isso uma insatisfação de Diego e da mãe, a advogada Adriana Burger, com o sistema de ensino brasileiro, e a alternativa encontrada foi a educação domiciliar.
— Os órgãos públicos estão certos em cobrar que toda criança esteja na escola. Mas é preciso haver um diálogo, porque às vezes, como no nosso caso, o homeschooling é uma opção dos pais e do próprio aluno — afirma Adriana, que já trabalhou como defensora pública.
Diego concluiu os estudos a distância e hoje, com 22 anos, estuda na Naropa University, no Colorado (EUA) – instituição inspirada no budismo que é referência em mindfulness (atenção plena).
— Eu me sentia sufocado. Meu sonho era jogar tênis profissional e sabia que a escola não estava ajudando. Foi uma mudança muito rápida, que eu não estava esperando, então óbvio que senti falta dos meus amigos, acabei ficando isolado. Mas era o que eu queria, amadureci e vi que fiz a escolha certa — reflete Diego.
Também educada em casa, uma jovem de Canela deixou, no 6º ano do Ensino Fundamental, de frequentar a escola rural em que estava matriculada. Em 2012, quando tinha 11 anos, começou a ter aulas em casa, com os pais, que passaram a se revezar no compromisso de passar os conteúdos para a filha. Na decisão, conforme os pais, pesou o fato de ela dividir a sala de aula com colegas de outras idades e séries – nas chamadas classes multisseriadas –, o que não estaria contribuindo para seu aprendizado.
— Não dá para dizer que é perfeito, porque há vários problemas que é preciso vencer, mas é um método interessante. O aluno não recebe nada mastigado, acaba aprendendo a pensar por conta própria, a ir atrás do que precisa saber — avalia o pai.
É o caso dessa jovem que será julgado no STF e vai embasar a decisão para todos os outros processos sobre o tema no Brasil. Depois de completar 18 anos, o objetivo dela é fazer as provas necessárias para concluir o Ensino Médio e, com o certificado em mãos, tentar ingressar em alguma faculdade na área da saúde.
Os prós e os contras
Críticos afirmam que a educação domiciliar limita a socialização das crianças: sem frequentar um colégio, elas seriam privadas da diversidade, do contato com outras pessoas e ideias, de frustrações. Essa prática poderia representar, ainda, lacunas na aprendizagem. Órgãos públicos concordam e identificam que a escola desempenha um papel fundamental na vida de todos por dar ao estudante experiências e visões diferentes daquelas apresentadas pela família.
“A escola é indispensável para o pleno exercício da cidadania e, na medida em que os indivíduos são orientados para respeitar a diversidade com a qual inevitavelmente terão que conviver, contribui para a erradicação da discriminação e o respeito aos direitos humanos”, afirmou a Advocacia Geral da União (AGU), representando o Ministério da Educação e o Conselho Nacional de Educação, além de procuradores de 19 Estados, em um parecer contra a constitucionalidade da educação domiciliar.
Entusiastas do homeschooling entendem que o modelo garante mais segurança, desperta o interesse por uma variedade maior de assuntos e dá mais qualidade ao aprendizado.
Em tese de doutorado defendida na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), o advogado Édison Prado de Andrade partiu da hipótese de que a educação domiciliar era uma violação do direito da criança e do adolescente. No decorrer do trabalho, mudou de ideia: identificou que o modelo seria um modo de garantir um bom ensino diante de condições adversas – seja a qualidade do ensino, seja a prática de bullying.
— Não sou, por princípio, favorável à ideia de que a educação domiciliar simplesmente seja liberada. É uma alternativa para casos bem específicos. Mas temos, no Brasil, escolas constituídas, na perspectiva de muitos pais, como lugares de risco, de violência não apenas física, mas simbólica. Então, é preciso levar esse método em consideração — afirma Andrade.
O advogado Júlio César Tricot Santos enumera três razões pelas quais os pais optam por educar os filhos em casa. A primeira seria a insatisfação com a qualidade do ensino público; a segunda, problema principalmente em cidades do Interior, são as classes multisseriadas – em que o professor trabalha, na mesma sala de aula, com várias séries do Ensino Fundamental simultaneamente –; a terceira razão seriam traumas com bullying, graves a ponto de a criança ou adolescente não querer mais frequentar a escola.