Em 2012, os irmãos mineiros Davi e Jônatas Nunes, então com 17 e 18 anos, viajaram com tudo pago para a Campus Party americana. A dupla, que abandonou a escola antes de concluir o Ensino Fundamental, passando a estudar pelo sistema homeschooling, ganhou passagens e estadia ao superar em um concurso 7 mil concorrentes, vindos de faculdades de Engenharia e Computação.
A trajetória autodidata dos jovens, moradores de Vargem Alegre (MG), não foi fácil. Em 2007, os pais, Cleber e Bernadeth Nunes, foram condenados pela Justiça a rematricular os filhos na escola - decisão que o casal ignorou -, além de pagar multa. Na sequência, tiveram um pedido de recurso negado pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Em 2010, foram condenados pelo Juizado Especial Criminal por crime de
abandono intelectual.
As derrotas jurídicas dos Nunes servem como alerta a outros pais que possam se interessar pela educação domiciliar. Enquanto o modelo não for regulamentado no país, deixar de matricular as crianças em instituições escolares pode ser o começo de uma dor de cabeça.
Pai de dois filhos - um político de 35 anos e uma advogada de 27 anos - que frequentaram escolas formais, o deputado federal Lincoln Portela (PR-MG) apresentou, em 2012, um projeto de lei que visa à regulamentação da educação domiciliar básica no país. O texto já obteve o voto favorável da relatora na Comissão de Educação, e poderá ser analisado em breve pelas comissões de Finanças e de Constituição e Justiça da Câmara.
- Comecei a aprender a ler e a escrever com a minha avó. É claro que passei pela escola formal, mas tive o incentivo do aprendizado em casa - explica Portela.
Conforme o deputado mineiro, o ensino doméstico estimula e gera o interesse pelo aprendizado, desenvolvendo na criança o autodidatismo. Como consequência, embora durante o processo não haja avaliações, o parlamentar afirma que os resultados obtidos pelos estudantes em termos de aprendizado são "iguais ou melhores do que os melhores da educação convencional na mesma faixa etária".
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Ainda segundo Portela, a falta de regulamentação do modelo no país gera injustiças, como o enquadramento dos pais em crime de abandono intelectual.
- É um absurdo você penalizar um pai com a ameaça de lhe tirar as suas crianças, sendo que, nas ruas, temos milhares de crianças sem escola e os pais não são penalizados - afirma o parlamentar.
Câmara realiza enquete online
Ex-deputado federal e atual secretário estadual de Trabalho e Renda do Rio de Janeiro, Arolde de Oliveira (PSD-RJ) também defende a regulamentação do homeschooling. Alfabetizado pela mãe, o político auxiliou na educação dos irmãos mais novos. Por isso, diz que a educação domiciliar "deve ser uma alternativa ao alcance das famílias".
Legalizada em países como Canadá, Austrália, Áustria, Bélgica, Estados Unidos, Itália e França, a educação domiciliar é proibida na Alemanha e na Suécia. Na maior parte dos países onde vigora, a lei exige que os estudantes sejam avaliados anualmente.
Para descobrir a opinião dos brasileiros, a Câmara dos Deputados está realizando uma enquete em seu site, questionando se os cidadãos concordam ou discordam do projeto de lei que prevê a possibilidade de a educação básica ser feita em casa. Até a sexta-feira passada, 25,6 mil pessoas já haviam votado - três a cada quatro votos eram favoráveis à legalização: 75,5% a 24,5%.
Defensores estão descontentes
O projeto de lei do deputado Lincoln Portela encontra restrição mesmo entre defensores da educação domiciliar. Para a filósofa e pesquisadora Carla Ferro, a única mudança efetiva seria a possibilidade de os pais não terem de matricular os filhos na escola.
- É uma decisão que não muda de fato a realidade, não traz à tona uma discussão mais profunda sobre a educação, que é o que está sendo questionado pelas
famílias - diz Carla.
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Opinião semelhante tem o cientista social e pesquisador Guilherme Schröder. Para ele, o homeschooling proposto significa apenas a transferência do atual modelo escolar, que Schröder classifica como "uma industrialização de mentes", para o ambiente doméstico, sem questionar a essência do modo de ensino "escolarizado".
- É um processo que leva a escola para casa. Traz o "conteudismo", o currículo e todas as formas de estruturas de "ensinagem" e aplica isso tudo em casa, e não na escola. Ou seja, segue sendo escolarização, com todos os padrões que a desescolarização tenta evitar - critica.
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Schröder acrescenta outro problema:
- A escola, sendo laica, não ensina religião e ainda ensina outras coisas às quais os pais não querem que os filhos estejam expostos. Muitas das famílias que optam pelo ensino doméstico no Brasil o fazem por questões religiosas, reproduzindo um fenômeno comum nos EUA e inibindo a socialização.