As questões que os 7,7 milhões de inscritos no Enem vão responder neste final de semana serão idênticas para todos, mas as condições de igualdade acabam aí. As oportunidades oferecidas a cada candidato são tão díspares que já se sabe de antemão, praticamente desde o berço, quem se sairá bem e quem se sairá mal. Alunos de famílias ricas vão tirar notas altas e ficarão com as melhores vagas no ensino superior. Para alunos pobres, as estatísticas reservam o destino de conseguir um resultado pífio no exame e contentar-se com uma faculdade menos disputada ou algum acesso via cotas. Há muitas exceções, é claro, mas o que os resultados do Enem escancaram ano após ano é que o Brasil vive uma espécie de apartheid educacional.
Ministério da Educação cria ranking alternativo do Enem
Algumas escolas gostam de fazer propaganda da média obtida por seus pupilos, como forma de atrair mais matrículas, mas especialistas sabem que o fator decisivo no rendimento escolar é o nível socioeconômico.
Na semana passada, depois de mergulhar em dados do Enem de 2013, Simon Schwartzman, sociólogo e ex-presidente do IBGE, apresentou um cruzamento de dados revelador sobre essa realidade. O levantamento mostra que, não importa a rede de ensino, o desempenho do aluno está diretamente relacionado à escolaridade dos pais - um indicador socioeconômico. Schwartzman conclui que o acesso à universidade via Enem consiste em um "jogo de cartas marcadas".
Se as características sociais já condicionam, de partida, as chances de cada brasileiro, caberia à escola reduzir a desigualdade, diminuindo o fosso entre pobres e ricos. Mas ela faz o contrário. Os brasileiros de classe média e classe alta vão para as escolas mais bem estruturadas. Começam em um patamar mais alto e encontram mais chances de avançar. Os pobres, por sua vez, acabam no patinho feio do sistema, a escola estadual. Trazem pouca bagagem de casa e não recebem muito da escola. O fosso apenas se alarga.
RS tem apenas uma escola entre as cem melhores nas provas objetivas do Enem
- Temos um sistema educacional com uma escola para os mais ricos e uma escola para os mais pobres. É isso que o Enem revela. Há mais probabilidade que jovens de meios favorecidos tenham sucesso e que os de meios menos favorecidos fracassem. Não é uma lei, não é uma regra, mas é uma probabilidade estatística - diz Antônio Augusto Batista, coordenador de pesquisa do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec).
Nesse quadro, Schwartsman entende que, ao tornar-se a principal porta de entrada para a universidade, permitindo a alunos com boas médias concorrer a vagas em qualquer parte do país, o Enem elitiza ainda mais o ensino superior público:
- O Ministério da Educação transformou o Enem num grande vestibular nacional. Disseram que era para democratizar. Mas o Enem não faz isso. Ele aumenta a injustiça no acesso. Isso se vê claramente nas faculdades de Medicina. Você vai ao interior do Nordeste e vê que as vagas estão sendo ocupadas por alunos de São Paulo. A população local não tem acesso. O aluno de escola estadual, que antes talvez conseguisse passar, agora está concorrendo com gente do país inteiro.
O ponto fraco da meritocracia
Chico Soares, presidente do Inep, órgão responsável pelo Enem, reconhece as injustiças do sistema, mas afirma que, no caso do acesso ao ensino superior, elas são contornadas pela expansão das universidades e pela política de cotas. Essa reserva de vagas para egressos da rede pública, porém, costuma ser atacada por grupos que se apresentam como defensores da meritocracia. O problema é se dá para falar em mérito quando as oportunidades são tão desiguais. Antônio Augusto Batista defende a ideia de que o mérito deve ser valorizado como ideal, mas com a consciência de que não encontra eco na realidade:
- O princípio do mérito não ocorre tal como as pessoas pregam, dizendo que quem persevera e se esforça vai alcançar os objetivos. Ao mesmo tempo, estamos em um mato sem cachorro quando ficamos sem o ideal do mérito. Então ele precisa ser pensado como um ideal a ser perseguido, por meio de uma escola que transmita a todos os mesmos saberes.
A palavra dos especialistas
Simon Schwartzman, pesquisador do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade:
"A escola influencia até certo ponto, mas a condição socioeconômica, que é muito relacionada com a educação do pai e da mãe, é o fator mais forte. Os alunos que fazem o Enem estão numa disputa desigual. Metade talvez nem chegue ao mínimo de pontos necessários. O Enem elitiza o acesso ao Ensino Superior e impede que as universidades tenham uma política regional. Elas não conseguem selecionar alunos da região, que podem não ser os melhores em termos nacionais, mas têm outras qualidades, estão mais interessados nas questões locais."
Renato Janine Ribeiro, ex-ministro da Educação:
"No Enem, você tem mais de 600 pontos em média quando a escola é de nível social e econômico muito alto e de 400 pontos em média quando é de nível muito baixo. O presidente do Inep até me disse: "Me diga o nome da escola, que eu já digo a nota do aluno". Isso é terrível. Mas há iniciativas didáticas que vão reduzindo isso: se você tem um professor bem formado, se o professor dá aula só naquela escola, se ele está naquela escola há vários anos, isso melhora a nota da escola."
Antônio Augusto Batista, coordenador da área de pesquisa do Cenpec:
"Na única pesquisa longitudinal feita no Brasil, acompanhando crianças de escolas públicas e privadas, percebe-se que, no início da escolarização, o valor agregado pela escola pública é muito maior. No sistema privado, os alunos já entram com um nível muito alto, e a escola agrega pouco. Então, há mais escolas públicas fazendo diferença, colocando os alunos para cima. Mas eles não conseguem chegar ao mesmo patamar dos de escola particular, porque partiram de um ponto muito mais baixo."
Flavio Comim, professor da Faculdade de Economia da UFRGS:
"O sistema é brutalmente injusto. É o grande reprodutor de desigualdade. Nas escolas públicas de áreas vulneráveis, vamos encontrar um alto grau de disfuncionalidade. É o império da bagunça, das faltas, do aluno voltando às 10h para casa porque não tem professor. O ensino da escola privada também não é bom no Brasil, mas esse nível de disfuncionalidade ela não tem, o que facilita para as crianças. Então você acumula diferenciais, você reforça desigualdades."