Com índice de abandono escolar que cresceu mais do que a média nacional desde a pandemia no Rio Grande do Sul, autoridades e especialistas em educação alertam que a enchente pode ter complexificado esse cenário. Desafios como deslocamento, infrequência e localização de alunos preocupam e motivam políticas públicas para conter a evasão, entre elas o investimento na formação de redes intersetoriais para apoiar as escolas na busca ativa dos estudantes.
Nos últimos oito meses, uma ferramenta de comunicação de infrequência de alunos elaborada pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul (MPRS) registrou 47 mil casos de estudantes que tiveram cinco faltas seguidas ou estiveram ausentes em 20% de um mês. O motivo de quase metade era algum problema ligado ao ensino-aprendizagem. A enchente havia motivado a ausência de 1,9 mil.
Em resposta à crise, o Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul (TCE-RS) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) enviaram questionários a 29 municípios afetados para avaliar como as redes de ensino têm lidado com o impacto da tragédia.
Entre as cidades consultadas, 58,6% afirmaram fazer busca ativa para localizar estudantes ausentes, 31% o fizeram sem uma política estruturada e 10,3% não tomaram qualquer atitude. Quanto aos objetivos, 88,3% das ações miram a prevenção do abandono e a exclusão escolar; 11,5% focam apenas no risco de abandono.
Além disso, 65,4% das prefeituras disseram ter mapeado a situação escolar de crianças em abrigos, e 53,8% confirmaram o retorno delas às aulas após deixarem os locais. Contudo, 46,2% indicaram que alguns alunos acolhidos não frequentavam a escola.
Questionados sobre o impacto da enchente na violência contra crianças e adolescentes, a maioria (65,5%) afirmou não ter observado aumento, enquanto 10,3% notaram crescimento e 10,3% registraram diminuição nos casos. Para 79,3% dos gestores, os municípios estão preparados para lidar com possíveis aumentos de violência devido à crise, e 20,7% acreditam não estar suficientemente preparados.
Segundo Renato Lauris, coordenador do Centro de Políticas Públicas do TCE-RS, as regionais que envolvem as cidades mais afetadas passaram a ir in loco a esses municípios para averiguar o acolhimento das pessoas. Agora, a equipe realiza uma análise qualitativa das respostas do questionário.
— Nos surpreendeu positivamente que não haja uma impressão de aumento de violência nesse contexto de crise, mas vimos, por exemplo, que há espaço para melhorar as formas de comunicação dos casos de violência para a rede de proteção, como o Ministério Público, o Conselho Tutelar. É um ponto de atenção para além do contexto de enchente que precisa ser melhorado — observa Lauris.
Em uma medida futura, Lauris considera incluir nos relatórios de contas anuais questões sobre a infrequência escolar, buscando entender o gargalo de evasão entre o 8º, 9º ano do Ensino Fundamental e o 1º do Médio, especialmente durante a transição entre redes de ensino.
Para o coordenador, os índices elevados de repetência e a falta de reforço escolar nas redes são fatores que ampliam o abandono. Defasagens agravadas desde a pandemia configuram outro aspecto.
Após a enchente, outra dificuldade mencionada foi a falta de integração entre os sistemas de matrícula: quando alunos fazem transferência de redes municipais para estaduais ou entre cidades, as atualizações no sistema nem sempre acompanham, gerando o "desaparecimento" de alunos.
Ações das redes
A Secretaria Estadual da Educação (Seduc) tem tomado medidas para enfrentar os efeitos da enchente. Uma delas – a mais emergencial – foi a junção de escolas para atender alunos de instituições muito atingidas. No início de outubro, havia 16 escolas funcionando em sete prédios.
Se o aluno sentir que voltou para a escola e tem chance de aprender e ter sucesso, ele fica.
RAQUEL TEIXEIRA
Secretária estadual de Educação
O acompanhamento da frequência dos estudantes tem sido monitorado por meio do Centro de Educação Baseada em Evidências. De acordo com a secretária estadual de Educação, Raquel Teixeira, nem todo o professor tinha o hábito de registrar a presença dos alunos diariamente, fazendo isso, por exemplo, uma vez por semana.
Com programas como o Todo Jovem na Escola – que concede bolsas para alunos do Ensino Médio pertencentes a famílias de baixa renda, em que o benefício é suspenso caso a frequência não esteja no sistema – essa cultura tem mudado aos poucos. A expectativa da gestora é de que o sistema de monitoramento se torne mais eficaz.
Em paralelo, a Seduc aderiu a uma estratégia de busca ativa elaborada pelo Unicef e está em fase de finalização a criação de um aplicativo que utiliza inteligência artificial para predizer quando um aluno abandonará os estudos. A ferramenta, elaborada com o apoio do IBM e do Banco Mundial, será utilizada a partir do ano que vem.
— Cruzando milhões de algoritmos, a gente já pode, a partir de março, abril, ter um indicativo de alunos que têm uma tendência a abandonar, pelo histórico, pelo desempenho, pela família, uma série de índices que vão ser analisados — descreve a secretária.
Na área pedagógica, uma iniciativa que têm buscado combater a defasagem de aprendizagem são os Estudos de Aprendizagem Contínua, que oferecem reforço para os alunos com dificuldade.
— Se o aluno sentir que voltou para a escola e tem chance de aprender e ter sucesso, ele fica — garante Raquel.
Para dar conta do movimento migratório gerado pela enchente, a Seduc estuda a expansão e a construção de novas escolas onde foi registrada maior chegada de alunos. Em torno de 8 mil estudantes a mais foram identificados em Caxias do Sul, Capão da Canoa e Litoral Norte como um todo. Em Capão, há dois projetos de construção de escolas. Em Gravataí, na Região Metropolitana, outro projeto de uma nova instituição já tem previsão de ser posto em prática. A previsão é de uso do modelo off-site, que utiliza a construção em módulos, o que gera agilidade para fazer os novos prédios.
Em Porto Alegre, a busca ativa é acionada a partir do momento em que o aluno tem cinco faltas consecutivas ou intercaladas dentro de um único mês. Os orientadores preenchem uma planilha compartilhada com a Comissão de Enfrentamento à Infrequência da Secretaria Municipal de Educação (Smed) e podem contar com a ajuda de uma assessora que entra em contato com as famílias. Se o estudante não voltar ao ambiente escolar, é aberta a Ficha de Comunicação de Aluno Infrequente (Ficai) 4.0, do Ministério Público do RS.
— O acompanhamento dos nossos alunos da rede municipal foi uma das nossas prioridades desde o princípio da problemática da enchente. Na retomada das atividades escolares, mantivemos o cuidado: priorizando a transferência dos atingidos, locando espaços temporários para que pudéssemos realizar as aulas, fretando ônibus para o transporte diário e gratuito e ampliando políticas como o Vou à Escola (que oferece gratuidade no transporte público a uma parcela dos estudantes e seus acompanhantes) — afirma Maurício Cunha, secretário de Educação de Porto Alegre.
Em Canoas, uma força-tarefa envolvendo MPRS, Conselho Tutelar e as secretarias de Educação, Assistência Social, Saúde e Segurança tem feito busca ativa como base o Ficai 4.0. Com isso, 656 alunos voltaram a frequentar a escola em setembro e outros 200 até a metade de outubro. No mês passado, em torno de 1,1 mil alunos seguiam em busca ativa. Uma das medidas para facilitar a ida à escola é a oferta de transporte para 66 estudantes da rede municipal que seguem abrigados.
A fim de mapear os estudantes, a prefeitura antecipou o período de rematrícula. A família precisa ir à escola atualizar os seus dados.
— O que a gente busca muito é novamente trazer essa família para dentro da rede e que a gente não perca esse contato. Mas estamos muito otimistas — garante Erida do Amaral, secretária-adjunta de Educação de Canoas.
Ficai 4.0
A Ficha de Comunicação de Aluno Infrequente, conhecida como Ficai, foi criada pelo MPRS em 1997. De início, era uma folha A4 impressa preenchida pelas escolas. Em 2012, passou a ser um sistema online. Após a pandemia, houve a compreensão de que seu fluxo era insuficiente para as demandas da sociedade naquele momento.
— Verificamos que, depois que a escola não consegue o retorno do aluno, era preciso que outras políticas públicas também estivessem próximas da educação para garantir direitos, porque a Ficai não garante apenas o direito à educação: se bem utilizada, pode nos indicar até situações urgentes e graves de violação de outros direitos — enfatiza a promotora Cristiane Corrales, coordenadora do Centro de Apoio Operacional da Educação.
Foi assim que surgiu o grupo intersetorial Rede de Apoio à Escola (RAE), citado por escolas visitadas pela reportagem. Nele, estão não apenas órgãos vinculados à educação, mas também à saúde, assistência social e habitação e o Conselho Tutelar.
A atualização, chamada de Ficai 4.0 e implementada em março de 2024, prevê que, quando a direção não consegue contato com o estudante em uma semana, toda a rede seja notificada, não apenas o Conselho Tutelar, como antigamente. Em oito meses foram mais de 47 mil fichas registradas sobre alunos infrequentes e mais de 13 mil fichas arquivadas, após os estudantes serem encontrados.
Mais da metade das fichas (26 mil) é sobre adolescentes de 14 a 17 anos. A infrequência daqueles com 18 anos ou mais não gera notificação, pois sua presença na escola não é obrigatória.
O Ficai auxilia, por exemplo, nos casos de transferência do estudante para uma escola de outra rede – ainda que as centrais de matrícula não sejam integradas, com a rede acionada, o encontro do estudante é facilitado. A ferramenta permite também maior detalhamento sobre os motivos do abandono ou evasão de cada aluno.
Quase metade (47,2%) dos casos envolveu questões de ensino-aprendizagem, como dificuldade para aprender ou reprovação/perspectiva de reprovação. Em seguida, vêm aspectos estruturais (28,7%), como trabalho, falta de transporte escolar e transtornos após terem sido atingidos por calamidade pública, e situações de saúde física/mental (16,9%).
Especificamente sobre estudantes afetados pela enchente, 1,9 mil fichas de infrequência foram preenchidas. Mais da metade (55,7%) era de matrículas nas redes municipais, seguida pela rede estadual (41,6%). As ausências registradas na rede privada abrangeram apenas 2,7% do total.
Busca ativa
A metodologia mais difundida de busca ativa no país é a desenvolvida pelo Unicef, em parceria com a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime). A Busca Ativa Escolar está implementada em dois terços dos 5.770 municípios brasileiros. No RS, sua presença ainda é pequena, mas a rede estadual iniciou o processo de adoção da estratégia em agosto.
— Nossa ideia é apoiar os governos a enfrentar esses dois fenômenos: o abandono e a exclusão escolar. Diferentemente de outros processos de busca ativa, entendemos que não adianta só identificar que o menino saiu e tomar uma providência, sem entender o que está levando ele a essa situação. É no motivo pelo qual ele está faltando que entra a nossa metodologia — explica Daniella Magalhães, oficial de Educação do Unicef.
Daniella diz que o abandono e a exclusão envolvem questões ligadas à educação, com projetos pedagógicos que podem estar distantes do desejo do aluno, e a situações de vulnerabilidade. Entre as principais causas do abandono identificadas pelo Unicef estão:
- desinteresse pela escola
- falta de vagas ou transporte
- mudança de domicílio
- violências sexual, familiar e na instituição de ensino
— Só o trabalho dos equipamentos públicos no território vai dar uma solução melhor para esse menino ficar na escola, porque o fenômeno que temos hoje é que o estudante entra e sai da escola com uma frequência muito irregular. Ele vai uma semana, depois fica 15 dias fora, abandona naquele ano, no outro volta. Fica nesse vai e vem porque essas questões de fundo não estão endereçadas e nem resolvidas — ressalta Daniella.
O processo de evasão, muitas vezes iniciado na infância, se agrava ao longo dos anos, fazendo com que adolescentes cheguem ao Ensino Médio com defasagem significativa no aprendizado. A metodologia combate esse ciclo, ajudando a identificar as causas do abandono escolar e oferece soluções. A adesão ao programa é gratuita, permitindo que Estados e municípios acessem plataforma de recursos para implementação.
Na pandemia, o Unicef reconheceu o risco elevado de evasão e adaptou sua abordagem a contextos emergenciais. Este mês, a metodologia foi atualizada para sua terceira versão, incluindo diretrizes para situações como o acolhimento de crianças em abrigos durante crises ambientais, que por vezes ficam sem acesso à educação.
A equipe de Daniella visitou alguns municípios gaúchos durante a enchente e identificou problemas no registro dos acolhidos:
— Quando as famílias iam para os abrigos e eles faziam o levantamento demográfico dessas famílias, quem são, qual a idade dos filhos, essas coisas, ninguém levantava a idade educacional, qual era a escola em que a criança estava estudando, qual era a série. Quando visitamos abrigos, perguntávamos onde aqueles meninos estavam estudando, se a escola deles ainda existia, se já havia sido feito contato com a escola para avisar, e vimos que essa parte estava mais apartada desse momento de manejo de crise ali — pontua a oficial do Unicef.
Para ajudar a identificar os estudantes que não frequentam a escola, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) produz anualmente a planilha de não localizados. Na prática, é feito o cruzamento de dados do Censo Escolar de um ano e do ano seguinte que resulta na lista dos nomes que não foram encontrados em nenhuma instituição, seja pública ou privada.
Essa informação é disponibilizada somente para o coordenador operacional cadastrado daquela rede de ensino, que utiliza a listagem para iniciar a investigação do paradeiro daquela criança ou adolescente.
*A pauta desta reportagem foi selecionada pelo 6º Edital de Jornalismo de Educação, da Jeduca e da Fundação Itaú