Aos 44 anos, Márcia Foster Mesko já tem uma trajetória de 30 anos dedicados à química. A devoção à pesquisa rendeu à professora da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), na semana passada, um prêmio importante: foi a única latino-americana, entre 12 mulheres, a receber uma distinção da União Internacional de Química Pura e Aplicada, em evento na Holanda. A seleção considerou a excelência em pesquisa básica ou aplicada, realizações em ensino ou educação e demonstração de liderança ou gerência na química. As indicações foram feitas por outros profissionais da área.
Com atuações na Academia Brasileira de Ciências e na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Márcia lidera um grupo de pesquisa que, hoje, desenvolve métodos para determinar halogênios em baixas concentrações, algo pouco estudado no mundo, mas que impacta muitos segmentos, como a alimentação, o meio ambiente, os cosméticos e medicamentos.
Em entrevista a GZH, a pesquisadora revelou que percebe os reconhecimentos que surgem como um trabalho em grupo que ela representa, fruto de um investimento de colegas e da própria instituição. Para o futuro, deseja que, independentemente do gênero ou da raça, todos tenham espaço na ciência.
O que representa ganhar esse tipo de premiação?
Eu acho que representa muito para todos os cientistas, para todas as pessoas do nosso país, porque é um trabalho de muitas pessoas que estão envolvidas em uma premiação. Eu penso que estou indo representar o meu grupo de pesquisa, que envolve meus estudantes, a minha instituição, que está ali me dando respaldo também para poder ser, além de professora, pesquisadora. E tem todo um histórico de como que a gente chega a uma carreira. Começa lá com os pais acreditarem que tu pode ir lá no Interior, estudar, e fazerem um esforço para tu poder te manter estudando. A gente sabe das desigualdades sociais dentro do país. Eu sempre tive uma família que se esforçou muito para eu poder estudar. E, depois, eu tive toda a ajuda dos professores que estiveram durante a minha formação. Toda vez que alguém recebe um prêmio ou uma distinção por um trabalho, isso representa o histórico da vida por onde aquela pessoa passou. Por isso, ela está sempre representando muitas outras pessoas naquele momento. A visibilidade abre muitos caminhos. Levar o nome do meu grupo, da minha universidade, colocar lá a bandeira do meu país num palco de um evento mundial de química é um orgulho. Saber que as pesquisas que a gente faz no país são respeitadas. Quando a gente conversa com cientistas de países europeus, por exemplo, a gente percebe que nossa vida é bastante difícil, principalmente fora dos grandes centros de pesquisa do Brasil, em universidades menores. Então, ser premiado é saber que está dando certo aquele esforço para se consolidar numa região que não é tão tradicional. Pelotas é uma região de fronteira no sul do Rio Grande do Sul. Saber que a química daquela região está se consolidando é uma oportunidade para outras pessoas se interessarem por aquela área, saberem que a área de química é possível de atuar, e que mulheres podem atuar nessa área. Tudo isso o prêmio traz à tona. A gente ter uma equidade de gênero na ciência é importante, e áreas como a da química, da física, têm um número muito menor ainda de mulheres atuando. O prêmio traz muito isso: poder dar visibilidade para as pesquisas do nosso país e mostrar que, mesmo não estando num grande centro, não tendo, talvez, a melhor estrutura de trabalho de pesquisa, ainda assim é possível atuar na área científica e formar novos cientistas. Esse prêmio também valoriza a atuação que a gente tem, por assumir cargos de liderança, de gestão, na parte acadêmica. Ele olha toda a carreira, o perfil da cientista ao longo da vida. Nesta semana, me perguntaram se eu imaginava, neste estágio da carreira, já estar recebendo esse tipo de premiação, porque a maioria das vencedoras era de pesquisadoras mais sênior já, num outro patamar de carreira, e eu realmente fiquei muito surpresa. Mas aí, ao mesmo tempo, eu brinquei que comecei a atuar na área da química muito cedo. Eu tinha 14 anos quando comecei a fazer o curso técnico em química, então, já sou química há bastante tempo.
Como a senhora começou na Química?
No Ensino Médio, quando eu escolhi o curso técnico. Naquela época, eu convenci meus pais a me deixarem a estudar à noite, porque era a possibilidade que tinha de transporte da cidade de Canguçu, que é a cidade em que eu nasci, e eu fui estudar em Pelotas. Então, ali, eu já comecei. Daí eu comecei a fazer estágio, comecei a atuar em laboratório, fazendo análise química e, desde então, venho atuando na área. Aí eu fui fazer graduação, mestrado, doutorado. Já tenho bastante tempo de envolvimento e já fui diretora da divisão de química analítica da Sociedade Brasileira de Química também, já tenho uma atuação mais ativa como química dentro do país.
Como a globalização impacta as pesquisas?
Eu acho que essas questões da globalização e da diversidade são relevantes, porque a gente começa a valorizar coisas que existem em outros lugares. Nos países de terceiro mundo, ou países em desenvolvimento, como alguns gostam de falar, a gente geralmente admira o que está fora e valoriza pouco o que é nosso. Então, eu acho que quando as pessoas de fora valorizam o que é nosso, eu acho que isso também traz uma credibilidade maior. Falando especificamente da parte científica, se países estão tendo um comitê científico com pesquisadores do mundo inteiro e aqueles pesquisadores vão lá e selecionam uma pesquisadora para ser premiada, entre tantas outras que poderiam ser, obviamente que eles estão vendo que o que está sendo feito no país é importante. Nesse processo, às vezes, a gente até começa a valorizar mais o nosso papel como cidadão dentro do país.
Quais as especificidades do Brasil no âmbito da pesquisa? Existe alguma?
Eu acho que não existe uma só, porque nós somos bons em muitas áreas. Eu tenho certeza, e deu para ver muito isso na pandemia, quando havia diversas demandas, que uma das principais qualidades do pesquisador brasileiro é não desistir. É enfrentar, se reinventar, trabalhar muito, muito. Envolve muito trabalho para uma carreira que não é tão atrativa, quando a gente pensa que são muitas horas de trabalho. Quem faz ciência no Brasil faz porque gosta muito, e é uma pena que, às vezes, a gente não tenha governantes que entendam essa importância e não invistam mais em estrutura, porque acho que o desenvolvimento do nosso país seria muito grande com isso. Eu vejo os diretores de órgãos de fomento à pesquisa correndo atrás de recursos para poder abrir editais para pesquisa, para ter mais bolsas, para aumentar as bolsas de estudantes de pós-graduação, mas isso deveria ser o básico. Eu gosto sempre de dizer que eu sou filha de escola pública. Talvez, se eu não tivesse tido uma escola pública que me amparasse, me acolhesse lá no início, eu não tivesse feito uma carreira na área que eu quis fazer. Eu tive sempre a escola pública, depois eu tive bolsa de estudos, numa época tive que estudar e trabalhar, para poder fazer minha pós-graduação, porque eu fiquei um período sem acesso à bolsa. Quantas outras pessoas estariam no país podendo fazer a diferença como pesquisador, se fosse um pouco mais fácil? Se a carreira não passasse por essa parte que a gente viu, de falta de investimento, laboratórios fechando, equipamentos sucateados. Isso tudo, muitas vezes, desestimula.
O que leva um aluno a seguir carreira na pesquisa, sendo que, em áreas como química ou farmácia, há outras trajetórias, talvez, mais rentáveis?
Eu acredito que muito é o gostar, mesmo, e é o quanto o teu grupo gosta e se envolve nessa busca por oportunidades de cooperação com outros grupos de pesquisa, com outros países. Eu acho que muitos dos pesquisadores líderes de grupo, como hoje é o meu caso, vêm de exemplos de grupos que também buscaram lhe dar várias oportunidades. Eu acho que quanto mais tu vê a importância da ciência, quanto mais tu conhece o que pode aprender, mais tu vai gostando. Então, por mais que tenha competitividade com o setor industrial e outras áreas de atuação, quando a gente entende a importância e o papel que a gente tem, a gente acaba se interessando. É uma atuação lá na base, mesmo, de a gente entender as possibilidades em que pode atuar.
O pesquisador precisa ser um pouco sonhador?
É, eu acho que sim. Não desistir nas dificuldades. Acho que precisa estar sonhando com um mundo melhor o tempo todo, sabendo que hoje tá difícil, mas que, talvez, amanhã esteja melhor, e saber da importância daquilo. Nas universidades públicas, em que a gente forma a maior parte dos cientistas do país, e onde 90% da produção científica do país é produzida, eu acho que os líderes de grupos de pesquisa têm que pensar nisso, na importância que tem motivar novos cientistas, pegar os alunos lá da graduação e estimular a, talvez, não que todo mundo atue como cientista, mas que eles entendam a importância nos lugares onde eles forem ser profissionais, pra gente não ter movimentos anticiência no mundo. Então, a gente precisa valorizar essa parte, e eu acho que é um papel hoje também fundamental, dos professores, dar esse esclarecimento e mostrar as possibilidades que existem.
O que a senhora espera para o futuro da área da pesquisa?
Eu espero que cada vez mais as pessoas tenham a possibilidade de atuar, principalmente as mulheres, porque esse prêmio é devotado para as mulheres químicas ou engenheiras químicas do mundo. Espero que cada vez mais as pessoas possam atuar nas áreas que realmente gostem, que tenham essa possibilidade. Independentemente do gênero, da raça, que a gente tenha cada vez mais espaço para todo mundo, mais respeito pela identidade de todo mundo. Eu acho que uma ciência boa é aquela ciência que faz com que a diversidade seja respeitada, né? Isso faz com que a gente evolua mais. Eu espero cada vez ver mais mulheres, principalmente latino-americanas, porque eu era a única representante (do continente) nesse grupo de 12 mulheres. Espero que cada vez a gente tenha mais mulheres estando onde elas quiserem e tendo esses reconhecimentos, para motivar as novas gerações, e que a gente se sinta à vontade em lugares que eram caracteristicamente masculinos.
Por que a diversidade é tão importante na pesquisa?
É aquela questão da maquiagem com a cor da pele, por exemplo. Se a gente só tem pessoas com um tom de pele, como a gente vai fazer cosméticos para outro tom? Ou medicamentos só para um tipo de corpo, sendo que cada corpo funciona de um jeito. A gente precisa ter esses entendimentos, e a diversidade também inclui os continentes. A gente enxergar a ciência, saber as diferenças climáticas que vão afetar o nosso metabolismo, tudo isso está envolvido. A ciência e o mundo têm que ser diversos. Já há comprovações de todos os lugares possíveis mostrando o quanto a diversidade, em várias áreas, é importante.