Advogada natural de Parobé, Marta Saft Valli, 36 anos, saiu de um escritório de advocacia para liderar a área legal do braço brasileiro da Thoughtworks, consultoria multinacional de tecnologia sediada em Illinois, EUA. Cinco anos depois, assumiu a área de recrutamento e, passado mais um ano, tornou-se diretora-presidente. Hoje, responde por 1,4 mil brasileiros que atuam na empresa. Tudo isso enquanto mantém casamento e maternidade – é a orgulhosa mãe de Bruno, seis anos, e Benício, três.
Marta, que esteve em Porto Alegre no South Summit para palestrar sobre diversidade nas empresas, está à frente de uma companhia que é o sonho de consumo para profissionais da TI: promove ações internas de diversidade, oferece atuação 100% remota e advoga pelo equilíbrio entre trabalho e vida pessoal. Leia, a seguir, a conversa sobre o tema que ela teve com a reportagem de GZH no evento.
Empresas de tecnologia foram pioneiras em incorporar a bandeira da diversidade. Por que é um ponto que deve ser levado em conta no recrutamento e nas promoções internas?
A indústria de tecnologia tem um contexto que favorece o questionamento. Mas é dominada por homens, herança histórica presente em algumas profissões. E também há menos mulheres em cursos relacionados à tecnologia. Há hoje um questionamento de quais são as questões estruturais que levam a essa realidade e como se pode mudá-la. Como empresa, a gente se propõe a levar soluções para clientes e sociedade. Que tipos de soluções são essas, a quem elas atendem e quais são os times que deveriam estar desenvolvendo essas essas soluções? O mercado é plural e diverso. Nossas funções, então, não deveriam ser nada menos do que plurais e diversas. Sabemos que se atinge esse objetivo com pessoas diversas que possam contribuir com seu conhecimento e suas perspectivas para criar soluções.
Você pode dar exemplos práticos de como a diversidade pode ajudar, em uma reunião ou na elaboração de um produto?
Há um exemplo emblemático de uma solução de dispenser de sabonete que tem um sensor para identificar a mão do usuário. Quando o produto foi colocado em uso, para teste, deu-se conta de que, quando uma pessoa negra colocava a mão embaixo, o sabonete não caía. A pergunta que se faz, e que pode ser extrapolada para diversas outras soluções, é: “Que tipo de time desenvolveu e testou esse produto?”. Será que era um time que tinha uma pessoa negra? E, se tinha, qual foi o papel dessa pessoa? Quando falo em produtos e serviços mais diversos, é isso o que quero dizer. Ao nos abrirmos para colher perspectivas diversas, seguimos um caminho para ter produtos mais completos. Por que não fazer isso já dentro dos nossos times? E não é só ter mulheres, pessoas LGBTQIA+ e pessoas negras dentro das nossas empresas e achar que está tudo resolvido. Sempre faço uma provocação: a gente precisa partir de um lugar de crítica social para entender de onde vêm discriminações e exclusões que a gente enxerga no mundo para criarmos um contraponto dentro das organizações.
A empresa deve diagnosticar o que há de errado no mundo?
Eu advogo por isso, sim. Na Thoughtworks, partimos de um lugar de interação com grupos de pessoas que estão perto das lutas para trazê-los para dentro da empresa e nos educar e para que haja pessoas em grupos de diversidade que também contribuam com as ações. Não podemos construir uma iniciativa para o outro sem ouvir quem está perto das lutas. Mas isso é um movimento complexo, exige investimento. É um processo.
A empresa deve promover encontros? Palestras?
A empresa como um todo deve participar de fato das discussões trazidas pelos grupos de diversidade e ter agendas internas de educação. Precisa se dispor a provocar internamente conversas que se transformem em um movimento coletivo, amplo. É preciso desenvolver estratégias internas para de fato haver uma inclusão real, ou seja, não é apenas colocar pessoas dentro da organização se elas não forem acolhidas, não tiverem uma posição confortável. Por isso, a melhor dica é identificar o que está errado em uma organização e dar o primeiro passo para fazer a diversidade realmente surgir.
É preciso desafiar o movimento natural de ir só na direção da corrente. Porque, na direção da corrente, a gente tem visto muitos preceitos éticos e de privacidade sendo atropelados em nome de mais lucro.
Você é a favor de processos seletivos exclusivos para mulheres ou pessoas negras?
Sim, inclusive temos iniciativas assim na Thoughtworks. Em 2017, fizemos nosso primeiro recrutamento exclusivo para pessoas negras, o Enegrecer a Tecnologia. Foi um recrutamento de pessoas negras por pessoas negras da nossa organização, para criar um ambiente seguro e acolhedor no caminho do fortalecimento da pauta racial. Falamos muito sobre oportunidades iguais, mas oportunidades iguais são efetivas quando há um campo nivelado para todas as pessoas. Do contrário, perpetuamos desigualdades que já existem no sistema. Quando há um histórico de exclusão e discriminação que data de anos, e a gente sabe que as estruturas no sistema excluíram mulheres e pessoas negras do mercado de trabalho e de posições de poder ao longo de muito tempo, precisamos de ações afirmativas que ajudem a nivelar o campo de jogo para que oportunidades possam ser acessadas igualmente por todos.
Nas entrevistas que concede, você costuma abordar a necessidade de uma conduta ética das empresas na vida profissional do dia a dia. Como avalia que esse respeito por valores éticos foi incorporado por empresas diversas nos últimos anos?
Existem incentivos para uma atuação mais ética e responsável por parte das empresas. Quando o mercado começa a falar sobre isso, mesmo quem não estava pensando se obriga a trazer essas reflexões e práticas para o dia a dia. Não podemos negar que, no campo do ESG (sigla em inglês para políticas ambientais, sociais e de governança), há grandes evoluções. Temos trazido para os conselhos de administração e para as análises de mercado essa atuação das empresas como algo que tem valor de negócio porque tem valor para o mundo.
As pessoas estão exigindo essa atuação agora?
Há uma pressão do mercado como um todo e há uma perspectiva de impactos financeiros para empresas que cumprem ou não preceitos éticos. E existe um movimento no mercado de talentos. O mundo é supercompetitivo por talentos, e a indústria de tecnologia especialmente. Não é novidade as pessoas buscarem propósito e quererem ser parte de algo maior dentro do trabalho. Dedicamos muito tempo a nosso trabalho para que isso não tenha significado. Posicionar-se como uma empresa que faz a coisa certa permite que clientes e todo o seu entorno se associem a quem propõe fazer algo de bom para a sociedade.
Ainda sobre a questão ética: como conciliar o respeito à privacidade com a necessidade de usar dados das pessoas?
Isso é extremamente desafiador. Esse equilíbrio ético é muito sutil. Em que pesem os dados serem um combustível incrível para novos modelos de negócio, não podemos esquecer do indivíduo na outra ponta dessa relação. Uma das coisas que a gente busca é entender de que forma produtos e soluções estão sendo construídos e quais consequências são geradas para que nossos clientes possam decidir se querem ir nessa direção ou se querem adotar direção diferente para preservar, por exemplo, a sua privacidade. O uso responsável da tecnologia é uma pauta forte, e a gente a gente gostaria de vê-la se ampliando ainda mais. É preciso desafiar o movimento natural de ir só na direção da corrente. Porque, na direção da corrente, a gente tem visto muitos preceitos éticos e de privacidade sendo atropelados em nome de mais lucro. A gente precisa de uma sociedade saudável amanhã que continue consumindo os produtos do futuro e se desenvolvendo a partir deles. Mas não é a tecnologia que gera discrepâncias: há uma estrutura de sociedade com valores que nem sempre são positivos, a tecnologia os potencializa ou não. A tecnologia pode potencializar efeitos positivos e negativos na sociedade. No tema da privacidade essa é uma verdade.
Como a pandemia impactou a forma como a gente lida com a tecnologia? Haverá uma herança para os próximos anos?
A necessidade de adotar rapidamente algumas soluções tecnológicas, em geral, reduziu nossa crítica com relação ao quão boas são as soluções. Na pandemia, muitas soluções tecnológicas discutíveis ganharam mercado. Agora, neste momento de arrefecimento da pandemia, acredito que talvez haja oportunidade de questionarmos isso.
No que você está pensando mais especificamente?
Começamos a usar muito e-commerce. Talvez tenhamos sido mais displicentes com relação a quem recebe nossas informações pessoais, para quem estamos dando dados de cartão de crédito. Será que essas empresas estão usando as informações de forma adequada? Será que elas têm a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados) devidamente implementada, há evidências de que são empresas que conduzem de forma ética a guarda dos nossos dados? Nós nos tornamos muito menos críticos sobre onde colocamos nossos dados: fizemos cadastro e inserimos nossas informações financeiras porque precisamos comprar algo, só isso.
(Na pandemia) Começamos a usar muito e-commerce. Talvez tenhamos sido mais displicentes com relação a quem recebe nossas informações pessoais, para quem estamos dando dados de cartão de crédito. Será que essas empresas estão usando as informações de forma adequada?
Como está o modelo de trabalho da Thoughtworks hoje?
Por opção, temos dois modelos: híbrido ou 100% remoto. Antes da pandemia, tínhamos como padrão o modelo híbrido, em que as pessoas poderiam trabalhar de fora do escritório 40% do tempo. O remoto era uma exceção. Com a pandemia, repensamos isso e decidimos embarcar de fato na onda do remoto. atualmente, temos mais de 70% das 1,4 mil pessoas optando pelo modelo 100% remoto.
O que motivou a empresa a oferecer isso e não voltar ao que era no pré-pandemia?
Como uma empresa que se propõe à inovação, estamos abertos a nos adaptarmos. Como empresa global, trabalhamos de forma distribuída com times de outros lugares do mundo há bastante tempo, inclusive com nossos clientes. Então tínhamos know-how de como trabalhar estando em localidades diferentes. Mas a pandemia nos trouxe uma abertura ainda maior para fazer esse trabalho a partir de bases diferentes. Buscamos pessoas brilhantes para se juntarem a nós, e, quando se remove a barreira geográfica, um outro mundo se abre.
Ao longo da pandemia, muito se falou sobre como o trabalho remoto havia chegado para ficar. mas agora, com a retomada, parece que só uma minoria de empresas vai conseguir assegurar essa possibilidade de trabalhar de casa. O que aconteceu?
Há cenários diferentes. Não dá para assumir que o remoto é bom para todo mundo e nem que é ruim para todo mundo. Algumas pessoas se beneficiam de não ter que fazer um deslocamento para trabalho tão longo, então ficar em casa é benéfico. Ao mesmo tempo, há pessoas sem estrutura adequada em casa, então voltar para o escritório também é benéfico. Acho importante darmos opções para as pessoas. Negócios diferentes pedem modelos diferentes. O que eu diria é que a experimentação é a chave e precisamos entender se de fato queremos trabalho presencial ou o valor gerado por esse trabalho.
Qual a diferença?
Por exemplo, o departamento financeiro da minha empresa. Preciso que eles entreguem relatórios e demonstrações financeiras ou preciso que eles estejam em uma sala fazendo isso juntos? O que não pode ser feito no cenário remoto? Essa provocação é necessária: entender qual é o valor que se tira do trabalho das pessoas estando reunidas e quanto desse valor se reproduz em um cenário remoto. Para coisas que ainda não possam ser feitas no remoto, a gente vai criar oportunidades de interação pessoal. Sabemos que muitos negócios dependem de estar em alguns lugares, dependem do contato direto com o cliente. Na medida em que isso não é necessário, pode ser saudável criar modelos alternativos.
‘Ter papéis de alta responsabilidade’ precisa deixar de se confundido com ‘não ter descanso’. Temos que pensar em como podemos ser mais efetivos no trabalho sem que isso tenha correlação direta com trabalhar horas exorbitantes.
Você é diretora-presidente de uma empresa de tecnologia, um cargo que demanda bastante energia e tempo. Mas costuma declarar que considera importante conciliar trabalho com vida familiar. É possível fazer isso estando numa posição como a sua?
O trabalho é um construto social. Trabalhamos porque nossa sociedade foi formatada assim e nosso sistema exige isso. É importante reconhecer que o trabalho, do jeito que a gente faz, não é natural para o ser humano. Dependendo da pessoa, o trabalho pode ser um lugar de muito conforto ou de desconforto. É importante ter essas linhas desenhadas para decidir o quanto uma pessoa quer se dedicar para esse ambiente e o quanto quer estar no habitat mais natural de convívio com família e com amigos. Pessoalmente, eu sempre soube que eu não queria um trabalho que me exigisse horas não dormidas recorrentemente, porque sempre quis ter família e sempre tive objetivos pessoais importantes. Acho que “ter papéis de alta responsabilidade” precisa deixar de se confundido com “não ter descanso”. Temos que pensar em como podemos ser mais efetivos no trabalho sem que isso tenha correlação direta com trabalhar horas exorbitantes. Tento fazer a minha gestão e ter na minha performance, no meu papel, um espelho de uma vida possível, porque é isso que espero que as pessoas dentro da organização vejam. Vai ter semanas em que a gente trabalha mais? Vai. Vai ter uma noite que eu preciso finalizar uma apresentação? Vai, acontece. Mas eu sei que, em contraponto, haverá dias em que chego em casa, levo meu filho na natação, faço tema de casa com ele, porque essa é a rotina que deve prevalecer.
O equilíbrio entre a vida profissional e a pessoal é mais difícil ainda para mulheres. Como você equilibra o trabalho com a sua família e os seus filhos. Dá tempo?
As mulheres ainda são vítimas dos construtos sob os quais cresceram. Eu também sinto que eu queria ter mais tempo, queria ser melhor como mãe, como filha, como esposa, como profissional. É sempre um quebra-cabeça onde parece que sobram peças, e o tempo que falta é a peça que a gente não consegue encaixar. O ambiente corporativo é particularmente desafiador para as mulheres. Vivemos uma história em que mulheres se culpam pela vida profissional. Isso não é ok. Entender que a gente vai sentir essa dor porque a gente está nessa sociedade é importante, mas entender que não é justo também é ok. Tenho uma colega que sempre começa discussões como essas dizendo: “Olha, o mundo não é justo, e isso é a primeira coisa que a gente precisa reconhecer”. Isso é bastante acolhedor em alguns momentos. É a partir dessa premissa que entendemos o que precisamos para ser felizes. Precisamos trabalhar, não é realidade da maioria das mulheres poder escolher o trabalho. Mas é injusto colocar nas mulheres o papel de lutar individualmente contra barreiras do mercado que vêm de tão longe. Acho que, em primeiro lugar, quem tem que mudar a realidade são as empresas para as mulheres. É por isso que defendo uma inclusão real.
Conciliar carreira e maternidade é muito diferente conforme o nível educacional das mulheres e conforme o tipo de emprego. Como promover a igualdade nos diferentes níveis de trabalho?
Esta pergunta toca em outro ponto, que é interseccionalidade. Quando se fala de diversidade, evoluímos muito pouco se olhamos para a diversidade de gênero como sendo uma “pauta de mulheres”, sem entender que, entre mulheres, a realidade é diferente, para negras, brancas, mulheres LGBTQIA+, mulheres periféricas. Assumir que existe uma só pauta de gênero é perigoso: há risco de avanço de diversidade para mulheres brancas e de exclusão de mulheres negras, periféricas e trans. Precisamos olhar para diferentes perfis e entender os desafios associados de uma forma interseccional. Tenho muita consciência, hoje, de que a minha realidade como mulher branca, hétero e cis, inclusive no ambiente executivo, é muito diferente da de uma mulher negra. Que dirá de uma mulher negra trans. Se hoje entro em círculos executivos e me vejo praticamente sozinha como mulher, tenho 99% de certeza de que, quando eu enxergar outra mulher nesses círculos, ela será branca. Precisamos criar espaços para todas as mulheres possam ocupar esses locais de trabalho. Isso passa por uma abordagem de temas de diversidade que vão além do gênero. Eu tenho um lugar de fala de uma mulher branca, hétero e cis. Preciso entender com quem mais devo dialogar para falar de diversidade de gênero de uma forma ampla e que abrace todas as pessoas.