A tecnologia tornou as carreiras mais difusas. A variedade de opções de formação superior ficou maior, e as oportunidades de acesso a esse nível de ensino, também. O mundo apresenta problemas mais complexos, cujas soluções nem sempre dependem de uma área só. Os processos seletivos estão menos atrelados à formação de base e mais focados nas competências necessárias à função. A inserção profissional é menos dependente do emprego formal: na era das startups, as pessoas inventam o trabalho. As “profissões do futuro” não cabem num diploma.
Indicadores do maior vestibular do Estado, cujas provas começam no próximo sábado (23), ajudam a desenhar esse quadro de transformação. Dentre os 20 cursos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) que mais cresceram em concorrência proporcional na última década, oito são carreiras de humanas, sendo quatro delas do escopo das artes: Artes Visuais (bacharelado e licenciatura), Teatro e Música. Dos 20 cursos com maior variação negativa na relação candidato/vaga de 2010 para 2020, 10 são graduações de Engenharia.
Por trás desses números, há múltiplos fatores. Dez anos atrás, o Brasil apostava no crescimento da Petrobras, impulsionado pela exploração do pré-sal. Os escândalos de corrupção revelados pela Operação Lava-Jato mudaram o cenário, as empreiteiras perderam capacidade de investimento, o mercado imobiliário e as obras de infraestrutura desaceleraram.
Ao longo da última década, o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) se consolidou como instrumento de acesso ao Ensino Superior. Com uma plataforma nacional unificada, já não é mais preciso disputar vários vestibulares em diferentes instituições.
— Pode ter um impacto da política de ingressos, que pode aumentar a procura em áreas que não eram tão visadas pela possibilidade de acesso. Mas os valores também estão mudando. Se outras gerações priorizavam o trabalho, mesmo que não estivessem felizes na vida profissional, agora temos uma geração pouco tolerante à frustração — pontua o professor de Psicologia da UFRGS Marco Antônio Pereira Teixeira, que coordena o Núcleo de Apoio ao Estudante e o Serviço de Orientação Profissional da universidade.
A psicóloga Maria da Graça Costi, diretora da Associação Brasileira de Recursos Humanos no Rio Grande do Sul (ABRH-RS), que atua no setor de estágios da associação, concorda que os jovens estão menos dispostos a manter um emprego apenas para pagar as contas.
— Poder e autoridade eram coisas que não se questionava, a gente lidava com isso e podia ficar anos frustrado no trabalho, mas mantinha o emprego. A geração atual é diferente: quer, mais do que um emprego, ser feliz no trabalho — analisa.
Em busca de propósito, os jovens que acabaram de ingressar ou estão prestes a entrar na faculdade estariam mais à vontade para optar por carreiras de artes e humanidades, pois se sentem menos expostos a julgamentos sociais de outrora, segundo a psicóloga Manoela Ziebell, que coordena um Grupo de Estudos sobre Desenvolvimento de Carreira na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS):
— Era mais difícil assumir essa escolha anos atrás. A gente ouvia coisas do tipo “vai viver de amor”. A cobrança social por sucesso financeiro era mais pesada.
Ao mesmo tempo, o mercado de trabalho está mais complexo. No início deste ano, GaúchaZH listou 10 áreas promissoras para 2019, segundo consultorias de carreira e especialistas em recursos humanos. Várias delas passam por competências em big data e programação, como cientista ou engenheiro de dados, analista de SEO e desenvolvedor mobile.
Olhando para formações específicas da área de tecnologia da informação, o curso de Ciência da Computação, por exemplo, é apenas a 13ª da lista na comparação 2010/2020, com aumento de 33% na relação candidato/vaga, mas vem ganhando posições entre os cursos mais procurados (com maior número de inscritos) da UFRGS – subiu de nono para sexto colocado no período. O avanço, assim como o de Engenharia da Computação, que também figura entre os 20 com maior crescimento na concorrência na comparação 2010/2020, indica que o interesse por essas áreas está aumentando, ainda que lentamente.
Nem sempre, no entanto, as habilidades atribuídas por consultores ao “profissional do futuro” coincidem com uma formação superior específica – há competências transdisciplinares, que atravessam todas as carreiras. Para ilustrar, a pesquisadora da PUCRS Manoela Ziebell cita os Desafios do Desenvolvimento Sustentável elencados pela Organização das Nações Unidas (ONU), que trazem questões como fome, violência, igualdade de gênero e qualidade da água: todos exigem ações transversais, que podem ser lideradas por profissionais de qualquer especialidade.
— Há uma complexificação nas profissões. Os problemas do mundo do trabalho são mais difíceis do que uma só área é capaz de resolver, então é mais produtivo pensar que competências eu preciso ter para resolver problemas do que qual profissão eu devo escolher — diz Manoela.
Foi diante de um problema que Miriã Antunes deu um novo rumo para a carreira. Aos 25 anos, recém-formada em Relações Públicas pela UniRitter, ela abriu mão de um emprego formal e recusou propostas de trabalho em empresas de renome em São Paulo para se dedicar a projetos em que encontra maior realização pessoal. Ela é uma das criadoras do Minas de Propósito, evento focado em chamar mulheres para ouvir umas às outras e fortalecer iniciativas femininas.
Em um ano e meio, já foram oito edições, algumas com quase 200 participantes.
— A escolha do nome tem a ver com o sentido da palavra na mineração. Quando uma mina explode, ela coloca para fora tudo que estava no interior. Nós também temos muito mais para mostrar ao mundo — explica.
Os problemas do mundo do trabalho são mais difíceis do que uma só área é capaz de resolver, então é mais produtivo pensar que competências eu preciso ter para resolver problemas do que qual profissão eu devo escolher
MANOELA ZIEBELL
Pesquisadora da PUCRS
Durante a graduação, Miriã não podia deixar o emprego, pois dependia do salário para pagar a faculdade. Com a ambição de trabalhar em uma multinacional, começou a construir as próprias experiências na área de formação em atividades voluntárias. Deu a primeira palestra sobre networking em 2016. De repente, estava falando para 80 advogadas em um auditório.
Algumas situações durante uma dinâmica proposta na palestra fizeram a jovem perceber que havia mais competição do que colaboração entre as mulheres. Ela então decidiu atuar para mudar essa realidade.
— Meu propósito mudou meu destino. O poder de impactar pessoas é muito mais recompensador do que qualquer cargo em uma multinacional — resume a jovem, que agora se dedica ao próprio empreendimento.
10 profissões em alta em 2019
- Gerente de planejamento financeiro
- Tecnólogo do agronegócio
- Advogado de compliance
- Profissional de marketing digital
- Analista de SEO
- Gerente, fiscal ou analista contábil
- Desenvolvedor mobile
- Gerente de qualidade na área da saúde
- Cientista ou engenheiro de dados
- Especialista tributário
Fontes: Page Group, portal Trabalha Brasil, Daniela Boucinha (coordenadora no PUCRS Carreiras), Simone Kramer (presidente do conselho da Associação Brasileira de Recursos Humanos - ABRH/RS) e consultoria Robert Half, para GaúchaZH
Habilidades em crescimento
- Pensamento analítico e inovativo
- Aprendizagem ativa e estratégias de aprendizagem
- Criatividade, originalidade e iniciativa
- Design de tecnologia e programação
- Pensamento crítico
- Resolução de problemas complexos
- Liderança e influência social
- Inteligência emocional
- Raciocínio, solução de problemas e ideação
- Análise de sistemas e evaluation
Habilidades em declínio
- Destreza manual, resistência e precisão
- Habilidade espacial, verbal e boa capacidade de memorização
- Gestão financeira e de recursos materiais
- Instalação de tecnologias e manutenção
- Gestão de pessoal
- Leitura, escrita, matemática e escuta ativa
- Controle de qualidade e de segurança
- Gestão do tempo
- Habilidades visuais, auditivas e de fala
- Uso de tecnologia, monitoramento e controle
Fonte: The Future of Jobs, 2018 – WEF
A queda das engenharias
A variação da concorrência nos cursos da UFRGS de 2010 para 2020 não implica necessariamente uma inversão na procura – em muitos casos, o número de interessados se mantém estável, porém, há menos vagas disponíveis. Há outras situações em que houve aumento na oferta de cursos, mas não no número de interessados, como ocorre com o Direito, que deixou de figurar entre os 10 mais concorridos em 2020 e teve a 14ª maior variação negativa em relação a 2010 (-46,64%), mas segue como o segundo curso com maior número de inscritos. A oferta de vagas aumentou de 140 para 245 no período, enquanto a quantidade de candidatos segue estável na faixa dos 2 mil.
O caso das engenharias é diferente. Até mesmo a Engenharia Civil, uma das mais tradicionais, teve queda de quase 40% na relação candidato/vaga na mesma universidade, mas não houve aumento da oferta: em 2010, o curso teve 1.047 inscritos, contra 476 em 2020, menos da metade, enquanto as vagas foram reduzidas de 150 para 112. A maior queda na relação candidato/vaga na UFRGS foi na Engenharia de Materiais, com -74,07%. Na sequência, vêm Geologia, com queda de 73,02%, Engenharia de Minas (-70,68%) e Engenharia Hídrica (-68,54%). Em todas, houve redução brusca no interesse dos estudantes pelas carreiras.
— A Engenharia Civil é um termômetro da economia. No início dos anos 2000, houve crescimento, tanto que fomentamos um aumento no número de vagas nesse curso face à grande procura. Agora, estamos em sucessivos anos de recessão, tanto na construção quanto na infraestrutura, o que pode ter arrefecido a demanda de alunos — analisa o reitor da UFRGS, Rui Vicente Oppermann.
Com graduação e mestrado em Engenharia Química, Leonardo Hüffner, 28 anos, é um exemplo de como as perspectivas mudaram nessa carreira. Em 2009, quando saiu do município de Casca, no norte gaúcho, para estudar na PUCRS, via na escolha do curso uma possibilidade de trabalhar na indústria petroquímica, diante da expectativa com o pré-sal e as projeções de crescimento da Petrobras – que não se concretizaram.
Já no período da graduação, viu que a colocação profissional nessa área era limitada. Mesmo na indústria, quando fez estágios no Polo Petroquímico de Triunfo, teve mais oportunidades na área de processos do que na engenharia química propriamente dita.
Para se diferenciar, em paralelo à graduação, fez um curso técnico em informática. Logo depois de formado, em 2015, emendou o mestrado, onde se aprofundou em técnicas de machine learning e algoritmos. Aprendeu a desenvolver modelos de análise de dados que o levaram até a atividade atual, como analista de dados no mercado financeiro, depois de uma passagem pelo ramo da educação, na mesma função.
— Nas entrevistas de emprego, sempre me perguntam o que um engenheiro químico faz ali. Como há um entendimento de quem vê de fora que esse é um curso difícil, então posso dizer que levo uma vantagem competitiva, apesar de não haver uma correlação direta entre o que aprendi na faculdade e a minha atuação profissional — analisa Hüffner.
Como analista de dados, o cotidiano do engenheiro diplomado está distante da rotina que ele imaginava nos tempos de faculdade, com o manuseio de reagentes e testes em laboratório. O expediente no mercado financeiro é dedicado a aplicar modelos analíticos para criar relatórios que ajudem a planejar estratégias para atrair novos clientes para os produtos e serviços da instituição financeira.
— Por ser engenheiro, vejo vantagem em relação a outras áreas no raciocínio lógico e no gerenciamento de projetos. A gente desenvolve a capacidade de aprender rápido sobre o contexto e tocar um projeto — diz o jovem profissional.
A ascensão da psicologia
Com a reserva de vagas para cotas e acesso com a nota do Enem, houve uma redução de cerca de 30% nas vagas ofertadas por acesso universal via vestibular em boa parte dos cursos da UFRGS. Como observado pelo professor Marco Antônio Teixeira, coordenador do Serviço de Orientação Profissional da universidade, essas mudanças podem ter impactado na procura de alguns cursos com menos interessados no vestibular, já que agora é possível ingressar por outros meios.
Ainda assim, o crescimento proporcional das ciências humanas chama atenção no comparativo entre 2010 e 2020. A Psicologia é a que mais se destaca: terceira mais procurada em número absoluto de inscritos em 2020 – era a sexta em 2010. Em concorrência (candidato/vaga), é a segunda da lista, só perdendo para Medicina. Dentre os 20 cursos que mais cresceram em concorrência, Artes Visuais está no topo, com aumento de 177% na densidade (candidato/vaga) no bacharelado e 129,48% na licenciatura. Na sequência, vem o Teatro, com +106,77%. Música é a quinta da lista, com 87,80% de aumento na concorrência.
— Minha expectativa com relação ao futuro das profissões é de que aquelas que vão resgatar a humanidade dos humanos são as que mais vão crescer. Isso inclui as artes e também Psicologia. Afazeres técnicos poderão ser desempenhados por inteligência artificial, mas a sensibilidade e a criatividade, não — diz Oppermann.
Na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), o diretor adjunto da Unidade Acadêmica de Graduação, Guilherme Trez, identifica um movimento similar ao que apontam os dados da UFRGS, com baixa na procura por engenharias e alta em cursos da área de humanas e, principalmente, da chamada “indústria criativa”. Na Unisinos, o fenômeno é impulsionado não só por jovens, mas também por pessoas em busca de uma segunda formação, sendo um dos exemplos o curso de Fotografia.
Minha expectativa com relação ao futuro das profissões é de que aquelas que vão resgatar a humanidade dos humanos são as que mais vão crescer. Isso inclui as artes e também Psicologia. Afazeres técnicos poderão ser desempenhados por inteligência artificial, mas a sensibilidade e a criatividade, não.
RUI VICENTE OPPERMANN
Reitor da UFRGS
Recentemente, a universidade reformulou os currículos de todos os seus cursos, com base no mapeamento de competências dos “profissionais do futuro”. No novo formato, chamado de Graduação Pro, além das aulas técnicas, os estudantes têm disciplinas que possibilitam desenvolver 10 competências, que atravessam todas as carreiras: atitude empreendedora, autonomia e autogestão do conhecimento, colaboração, comunicação, formação cultural, liderança, pensamento computacional, pensamento projetual, responsabilidade socioambiental, senso crítico reflexivo e de resolução de problemas.
— São todas competências ligadas a humanidades. As máquinas não vão conseguir nos superar nessas habilidades, mesmo que assumam mais tarefas técnicas conforme avança a tecnologia — destaca Trez.
Com esse arranjo, além de colaborar com o desenvolvimento das competências do futuro, o aluno pode fazer um percurso mais fluido na vida acadêmica, inclusive com facilidade para trocar de curso, já que há mais grades comuns. Mesmo sem ter vínculo com a universidade, é possível desenvolver as competências com ajuda da plataforma Unisinos Lab, que oferece palestras e cursos, muitos desses gratuitos e realizados online.
É uma forma de profissionais que já estão no mercado aprenderem sobre essas competências e também de preparar o jovem que está se decidindo por um curso universitário. Como observa Marco Antônio Teixeira, do Serviço de Orientação Profissional da UFRGS, não está em questão o que a universidade oferece enquanto conhecimento técnico da área específica, mas as habilidades transversais para a construção da própria carreira.
— Pensar a carreira, hoje, é pensar como desenvolver as habilidades para transitar no cenário cada vez mais incerto do mundo do trabalho. Assim, a formação precisaria ser mais ampla desde a infância. Apesar de todas as mudanças, o jovem ainda pensa em fazer um curso, ter um diploma e conseguir um emprego — afirma.
O reitor da UFRGS considera necessário desburocratizar o sistema de ensino para possibilitar a atualização técnica, sem a contrapartida de um diploma ou certificado. Na universidade, destaca Opperman, estão sendo feitas experiências nas faculdades de Psicologia, Fonoaudiologia e Educação Física, com profissionais diplomados cursando disciplinas isoladas, apenas com o propósito de atualização.
— O modelo formal de ensino universitário não atende mais à realidade. O diploma já não é a medida do conhecimento nem a garantia de uma colocação no mercado — avalia o reitor.
A diretora da ABRH-RS Maria da Graça Costi sintetiza:
— A mudança também afeta quem está no mercado de trabalho há mais tempo. Não é que o jovem está em outro momento: o mundo está em outro momento.
O sobe e desce dos cursos na UFRGS
Os mais procurados na UFRGS em 2010 e em 2020
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Sobre os dados do vestibular da UFRGS
- Os rankings apresentados nesta reportagem diferem dos divulgados pela UFRGS porque os cursos que ofertam vagas em diurno e noturno foram contabilizados em conjunto, por representarem a mesma carreira. Assim, nesta reportagem, optamos por somar as vagas e os candidatos de ambos e dividi-los na proporção para calcular a relação entre oferta e procura por aquela formação.
- O curso de Saúde Coletiva, aberto em 2018, ficou fora da amostra por ter uma série histórica muito curta.
- Letras _ Bacharelado: Formação Tradutor e Intérprete de Libras, criado em 2016, foi somado com o bacharelado em Letras.
- O curso Ciências Biológicas não entrou no levantamento porque foi dividido em bacharelado e licenciatura em 2019, faltando um parâmetro anterior seguro para fins de comparação.
- A graduação Interdisciplinar em Ciência e Tecnologia, oferecida no Campus Litoral desde 2015, também foi excluída pois a variação percentual criaria uma distorção na amostra, já que há um número alto de vagas para poucos inscritos: o curso passou de 0,22 candidato por vaga em 2015 para 0,67 em 2020, um aumento de 204,54%.
- Para os cursos de Engenharia Hídrica e Zootecnia, criados em 2012, o que mudou foi o parâmetro inicial: de 2012 a 2020, e não desde 2010.