Em tom de alerta sobre a necessidade de uma mudança urgente por parte de alunos, professores e escolas de todos os níveis, o filósofo Leandro Karnal, requisitado palestrante que anda por todo o Brasil, abriu o 21º Fórum de Ensino Superior (Fnesp), em São Paulo, na manhã desta quinta-feira (26). Karnal lembrou do seu tempo de estudante, pautado pela rigidez: decorar conteúdos, vestir uniforme obrigatório, ter a mão esquerda amarrada para se forçar a escrever com a direita caso você fosse canhoto.
— Disciplina era central. Quanto mais adaptado à uniformidade, quanto mais disciplinado era esse aluno, melhor. A partir do século 20, a tecnologia implodiu esse modelo. Basta eu dizer uma coisa óbvia, como a data da queda da Bastilha, e o aluno olha no Google e faz assim para mim (sinal de positivo), dizendo que posso continuar, que a afirmação está correta — falou Karnal, provocando o riso da plateia presente em um auditório do World Trade Center, no Brooklin Novo.
— Seus alunos, os meus alunos, pela primeira vez na história, sabem mais do que eu sobre tecnologia. Qualquer aluno de 18 anos sabe mais do que o titular sobre cabos, aparelhos, conexão. Nós estamos com uma inversão inédita. Há, acima de tudo, um individualismo profundo, um profundo vazio das pessoas. Não tem mais sentido a uniformidade, o pertencimento — acrescentou.
O evento, que nesta edição tem o tema Mudança de Mindset: Uma Nova Forma de Pensar a Educação, é promovido pelo Semesp, que reúne mantenedoras de instituições de Ensino Superior de todo o país. Karnal centrou sua apresentação nos diversos perfis e possibilidades de relação que se estabelecem entre os protagonistas do cenário da aprendizagem: aluno, escola e professor — com críticas a todos esses personagens. A uniformização, disse Karnal, deu lugar à customização. Empoderados, os estudantes, nativos digitais que se consideram mais capazes do que seus mestres, se acham no direito de questionar inclusive saberes consolidados através dos séculos.
— Um aluno lê três parágrafos de Kant (Immanuel Kant, filósofo) e diz: "Não concordo". Eu digo que, se ele estudar Kant, em alemão, por 30 anos, ele vai entender. E vai levar mais 30 anos para discordar. "Se eu não concordar, Kant que se dane. Quem é esse Kant comparado a mim?", essa é a regra das redes sociais.
A tradição foi rompida pelo indivíduo. Agora, o indivíduo determina a tradição. Como me adapto se a minha geração fez caligrafia para que todas as letras se parecessem? Como me adapto a um mundo de valores profundamente efêmeros? Como vou ensinar algo que tenha valor daqui a 30 ou 40 anos? É um momento muito crítico. Não é à toa que tantas pessoas estão repensando a escola, afirmou o conferencista.
Mesmo sendo alvo de tantas críticas e dificuldades, o Ensino Superior, segundo Karnal, não morreu, mas está sendo fortemente desafiado. Como ilustração, ele narrou um episódio em que uma pessoa procura um médico para se submeter a uma cirurgia cardíaca porque esse especialista é famoso na internet.
— "Vou deixar você me tratar porque o seu blog tem 1 milhão de seguidores!". Não. Eu jamais entregaria uma ponte ou o meu coração a alguém que tem um blog sobre o tema. A rigor, vamos ter que melhorar, dar uma resposta que achávamos que não precisávamos porque achávamos que bastava o título de professor, de doutor. Isso mudou.
Mudança no modelo de ensino
As mudanças precisam começar por aspectos bem básicos, de acordo com o filósofo. Um modelo que prevê quatro horas seguidas de aula para alunos de graduação não é mais possível — "quatro horas hoje, gente, nem de sexo", brincou Karnal. O aluno da atualidade tem um tempo de atenção de apenas quatro minutos, destacou o palestrante. A partir daí, ele pega o celular e não está mais focado no que está ocorrendo na sala de aula.
— O objetivo da aula não é ser um stand up. O objetivo de uma instituição não precisa ser sempre lúdico, uma aula não precisa ser sempre lúdica, isso é uma fantasia da internet. Mas eu, que sou um professor do século 20, educo alunos do século 21. Tenho que ensinar o que será útil para o momento em que não estarei aqui. Qual será o conhecimento que terá valor daqui a 20 anos? Profissões serão substituídas. Nossa geração ainda verá carro sem motorista para o grande público. Veremos o sumiço de coisas que não têm sentido, como ascensorista. Daqui a 20 anos, só terá ascensorista em Brasília, provavelmente – discorreu Karnal, que frisou um trecho essencial de sua explanação:
— Não confundam modernidade tecnológica com projeto educacional. Achar que uma escola é boa por causa da conexão de internet ou pelo tablet dos alunos é um erro brutal. O que caracteriza um bom projeto é filosofia educacional. Se isso vai ser feito com computadores quânticos, ou com computadores 5G, ou se vai ser feito embaixo de uma árvore, pouco importa. A ferramenta é neutra.
Neste novo contexto, pontuou o palestrante, é necessária uma nova forma de alfabetização: os alunos precisam aprender a ler e compreender outros símbolos.
— O mundo é feito por imagens. É preciso que todas as instituições alfabetizem em imagens. Achar que alguém que está vendo imagens não está lendo é um paradigma ultrapassado de alfabetização.
Karnal destacou que o conceito de "aluno permanente" é fundamental e vale para todos, inclusive para professores e gestores da educação.
— Preciso permanecer aprendendo. Existem três mortes: a física, a intelectual e a de significado social. Tudo está certo quando elas ocorrem ao mesmo tempo. É uma tragédia quando uma ocorre antes do tempo. Quem decidiu parar de aprender decidiu morrer com pelo menos um terço das suas capacidades.
O filósofo pediu que os adultos parem de falar "no meu tempo era assim", evocando práticas ultrapassadas, apesar de ele próprio falar com ironia e certo carinho até mesmo das práticas mais inconcebíveis para os dias de hoje.
— O seu tempo é hoje, setembro de 2019, tenha você 30 ou 80 anos. Eu sou formado em moral e cívica e OSPB (organização social e política brasileira), o que significa algo anterior à extinção dos dinossauros. No meu tempo, as carteiras eram aparafusadas no chão. No meu tempo, era x ou y. Mas hoje o meu tempo é esse. Eu compartilho o mundo com Jojo Todynho (cantora que ficou conhecida pelo hit Que Tiro Foi Esse?) — falou Karnal.
* A repórter viajou a São Paulo a convite do Semesp.