O historiador Leandro Karnal foi a atração nesta semana da palestra show anual promovida pela Associação de Pequenas e Médias Empresas (Apeme), em Garibaldi, na serra gaúcha. A plateia de cerca de 1,4 mil pessoas acompanhou a apresentação repleta de críticas, análises e humor ácido.
—Senhores pais, saibam que a receita infalível para formar um imbecil é mimá-lo. Façam tudo por seu filho. Não permitam que ele sofra e ele será um completo idiota ao ponto de que sua única alternativa será se tornar um político — disse, sendo ovacionado.
Em outro momento, elucidou o sentido do esforço com metáfora.
— Esforço é banho. Se você parar, fede. Assim é a reputação. Levamos anos para construí-la e com uma frase preconceituosa ou post infeliz podemos destruí-la em segundos.
Ao longo da última semana, a Apeme solicitou que o público enviasse perguntas ao Karnal. Elas foram respondidas e o resultado está abaixo:
José Antonio Camargo – Karnal, qual o Brasil dos seus sonhos?
Um Brasil que priorize a educação. Se houver ênfase em educação de qualidade na massa pública, talvez a gente consiga pensar claramente quando vamos conseguir uma elite dirigente digna, proporcional ao esforço da população. Nós estamos em um encontro de pequenos e médios empresários que buscam o melhor preço para o cliente. Essa lógica deve entrar na política: buscar uma justiça básica administrativa. Não basta ser honesto, mas também competente. Feito isso não se atinge o paraíso, mas se evita o inferno.
Derly Hastenteufel – Com os candidatos que estão sendo cogitados para as próximas eleições, não seria melhor o Brasil contratar um executivo de sucesso para administrar o nosso país? Até de fora, como o ex-presidente dos Estados Unidos, Barack Obama? Faço esta pergunto pois estou indignado e completamente decepcionado com o quadro que se apresenta.
A indignação eu compartilho. A grande pergunta quando se diz "o Brasil" é quem no Brasil? Ou seja, o Brasil não existe. Só existem as pessoas. O Brasil é uma soma de 207 milhões de pessoas, logo, quem seria o contratante e quem estabeleceria as regras do contrato? Já houve várias vezes essa ideia de solução fora da política, porém não há. A política é, como pensa Aristóteles, administração da felicidade pública, a vida na Pólis, por isso política. Talvez a questão esteja na pergunta do Derly. Por que os bons empresários não entram para a vida política? Por que não temos nenhum empresário competente e ético concorrendo? O Obama agradou muitos norte-americanos e desagradou outros, mas ele tem apenas uma vaga ideia da realidade brasileira. Quem realmente sabe são as pessoas que vivem aqui. A ideia é tentadora pelo mesmo motivo pelo qual a família do vizinho parece ser mais feliz que a minha. Pelo mesmo motivo que uma pessoa sai de Porto Alegre, vem para um hotel fazenda em Garibaldi e acha a vida perfeita e só vê os benefícios do ar puro e não sabe o trabalho duro no campo. A solução virá da política.
Cíntia Borsoi Benedetti – É possível que o povo brasileiro consiga, em algum momento, evoluir e superar esse hábito cultural do jeitinho brasileiro, de sempre pensar mais em si do que no todo e de querer se dar bem a qualquer custo, inclusive passando por cima de regras e leis?
É isto o que está faltando no Brasil: lei dura e também bom senso.
Não existe a possibilidade do historiador prever o futuro. Com alguma sorte o historiador conhece algo do passado. A resposta que dou é que todos os nossos hábitos são culturais e eles mudam. Há 30 anos ninguém usava cinto de segurança. Hoje, mais de 96% da população usa. Há 50 anos o racismo era institucional e não havia punição. Há 60 anos eu não estaria dando uma entrevista a uma profissional repórter mulher e de calças. As mulheres foram à luta, obtiveram seu espaço, impuseram seus pontos de vista e os homens foram aceitando, um pouco contragosto e contra vontade, até que a lei constitucional foi consagrada. É isto o que está faltando no Brasil: lei dura e também bom senso. As coisas mudam, de acordo com uma regra de valores. Nós poderemos estar piores daqui a dez anos ou melhores. A história não é linear e nem progressiva. Havia mais liberdade sexual na década de 1960 que na década de 1970. Havia mais liberdade na década de 1920 que na década de 1940. A história funciona de forma errática. Vivemos um período em que o pensamento conservador está em alta. Isso vai durar? Pode ser que sim ou que não.
Alexandre Antonio Armani – O que você faria, ou nunca faria, se tivesse 30 anos novamente?
Aos 30 anos eu estava às vésperas de fazer um doutorado. Se eu tivesse evitado fazer algumas coisas é possível que hoje eu não tivesse a lucidez que tenho sobre os erros. Uma vida preservada de erros é muito problemática porque ela infantiliza as pessoas. A receita infalível para criar um imbecil é mimá-lo. Aquilo que eu fiz: estudar muito, evitar a todo custo os vícios e sistematicamente trabalhar muito, eu repetiria. Talvez hoje, aos 55 anos de idade, refletindo sobre a minha vida, eu teria me preocupado menos com que os outros pensam. Tudo nasce do aprendizado.
Laídes Rista – Karnal, qual é a sua dica para que possamos compreender a nós mesmos e mantermos o equilíbrio?
É muito mais fácil eu perdoar os outros quando eu me conheço. Por isso é importante desconfiar de toda a argumentação que você faz e que lhe salve.
A questão fundamental da filosofia socrática é "conhece a ti mesmo". Conhecer-se é um desafio muito grande. Nós temos uma imensa capacidade de olhar para fora e perceber os outros. Começo com uma coisa muito banal: eu sou excelente para corrigir os textos dos outros, mas quando eu corrijo os meus, não tenho esse talento. Se eu fosse tão duro com os meus textos quanto sou com os dos outros, eu seria um escritor muito melhor. É muito mais fácil eu perdoar os outros quando eu me conheço. Por isso é importante desconfiar de toda a argumentação que você faz e que lhe salve. Todas as vezes que eu digo que os outros estão errados há uma chance muito grande de eu estar dizendo isso para não perceber o meu erro. É o caso do brasileiro que é duríssimo com as ações dos políticos e condizente com suas próprias ações antiéticas. O brasileiro vive dizendo que o brasileiro é atrasado, como se não fosse brasileiro. A primeira questão é incluir-se, rir das suas convicções, afastar-se e ouvir os críticos que não são tão próximos a mim.
Apeme – Você é ateu, adora estudar sobre religiões e de conversar sobre isso com quem acredita em Deus. Resultado disso foi o livro "Crer ou não Crer", com o padre Fábio de Melo, e o futuro livro "Cultura de Paz", com a Monja Coen. O que um ateu pode aprender com um religioso e o que um religioso pode aprender com um ateu?
Todas as religiões são expressões da realidade. Nós, seres humanos, apalpamos como cegos a um elefante. Um apalpa a tromba e diz que o elefante é uma mangueira. Outro apalpa e diz que ele é uma parede, outro apalpa a pata e diz que ele é uma coluna. Um apalpa o marfim e diz que ele é uma espada. Todos estão certos. Ninguém tem a visão do todo. A tentação da verdade deve ser evitada por ateus e religiosos. Ateus não são melhores que os religiosos e nem o contrário. Ignorar as religiões é ignorar as pirâmides do Egito e a Basílica São Pedro. A humanidade se expressa artisticamente, literariamente e pessoalmente também pelas religiões. Brinco que sou um ginecologista, ou seja, estudo o que não tenho. O fanatismo não é próprio das religiões ou do ateísmo. Dos quatro maiores ditadores do século XX, dois eram ateus: Josef Stalin e Mao Tsé-Tung. E dois eram católicos: Hitler e Mussolini. O caráter independe da religião. A ética é para todos os seres humanos. Precisamos olhar antropocentricamente.