Lorenzo acorda cedo todos os dias. Mas não vai para o colégio como os amiguinhos do bairro onde mora, em Gravataí, na Região Metropolitana de Porto Alegre. A rotina de estudos se dá no escritório de casa, transformado em uma pequena sala de aula. Foi nesse espaço, com uma lousa na parede e alguns livros em volta, que o garoto aprendeu a ler, fez as primeiras operações matemáticas e agora se aventura em produções textuais e cálculos mais complexos.
O menino de nove anos não tem colegas de classe nem hora do recreio. Não leva maçã para a professora e não chega da aula com tema para o dia seguinte. As lições são ensinadas pela mãe, Daniele Salvador, que é formada em Letras, pelo pai, o gerente de TI e professor universitário Giovani Salvador, e pela irmã, Giovanna, estudante de Arquitetura de 21 anos. Lorenzo faz parte dos 15 mil brasileiros que estudam em casa, segundo estimativa da Associação Nacional da Educação Domiciliar (Aned).
Conhecida como homeschooling, a prática da família Salvador é comum em países como os EUA, onde é regulamentada. Por lá, os dados mais recentes do Departamento de Educação, de 2016, apontam que 1,7 milhão de crianças entre cinco e 17 anos estudam em casa – o que corresponde a 3,3% da população americana nessa faixa etária. Cada Estado tem responsabilidade de criar leis próprias para o modelo. Em alguns, como Nova York, as regras são rígidas e envolvem cadastro prévio dos pais e provas regulares aplicadas aos estudantes. Mas na maioria, a regulamentação é considerada baixa ou inexistente, segundo monitoramento da Associação de Defesa Legal do Ensino Domiciliar (HSLDA, na sigla em inglês).
Foi inspirado no modelo americano que Bolsonaro propôs a regulamentação da prática no Brasil como prioridade dos cem primeiros dias de governo. A ideia era apresentar uma Medida Provisória (MP), com tramitação rápida no Congresso, mas o receio da falta de apoio em um momento conturbado, em que a prioridade é a aprovação da Reforma da Previdência, motivou o envio de um Projeto de Lei em abril.
Entre os argumentos favoráveis ao ensino domiciliar apresentados pela ministra Damares Alves, estão a defesa do ensino religioso e as críticas a uma suposta doutrinação ideológica nas escolas. Para a família de Gravataí, o motivo apontado é a possibilidade de oferecer um aprendizado mais efetivo do que o disponibilizado na educação formal, em um ambiente seguro.
— Sempre tivemos preocupação em oferecer um ensino, principalmente nas idades menores, mais individualizado, mais orientado para as fraquezas e fortalezas da criança — diz Giovani Salvador.
O menino chegou a frequentar uma escola de Educação Infantil, mas os pais optaram pelo ensino domiciliar após conhecerem famílias ligadas à Associação Nacional de Educação Domiciliar. A mãe de Lorenzo é responsável pela maior parte das atividades de formação do filho. Daniele afirma que o método exige organização e acredita que não deve ser uma prática adequada a todos.
— Isso não é para qualquer família. Exige disciplina, organização e tem que saber o que está fazendo. É muita responsabilidade — diz ela.
Educadores argumentam que um dos principais problemas da educação domiciliar é a falta de socialização das crianças, que seriam privadas do contato com pessoas e ideias diferentes. A família de Gravataí reconhece essa como uma preocupação constante e diz que estimula as amizades do filho na vizinhança e no cursinho de inglês frequentado duas vezes por semana. Agora a ideia é matricular o menino em uma atividade esportiva.
— O esporte proporciona uma socialização importante para a criança. Estamos sentindo falta da atividade física e, agora, vamos procurar uma escolinha para o Lorenzo — afirma Giovani.
Proposta de regulamentação
Como o ensino domiciliar não é tratado explicitamente na legislação brasileira, algumas famílias recorreram à Justiça para garantir que os filhos possam continuar estudando em casa. Em setembro de 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou que o homeschooling não poderia ser admitido enquanto não houvesse uma lei que regulamentasse o modelo. Na prática, porém, o julgamento não mudou o entendimento das famílias, já que não houve decisão sobre a inconstitucionalidade. Segundo o STF, cabe ao Congresso criar leis para regulamentar o ensino domiciliar.
Foi com esse argumento que a ministra Damares apresentou o Projeto de Lei, que agora tramita em comissão especial da Câmara dos Deputados. Pela proposta do governo, pais ou responsáveis devem apresentar um plano pedagógico e estudantes precisam passar por avaliações anuais. Um projeto semelhante, de autoria do deputado Fábio Ostermann (Novo), também tramita na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul.
Com base na experiência dos EUA, o professor do Teachers College, da Universidade de Columbia, Jeffrey R. Henig, argumenta que há dificuldade de controlar a eficácia da formação domiciliar. E demonstra preocupação com a possível utilização da prática para fins religiosos.
— Há muitos perfis diferentes de famílias que utilizam do homeschooling na educação dos seus filhos nos EUA. Tem um grupo que consegue proporcionar uma formação de qualidade, que gasta dinheiro para garantir muitas oportunidades para os filhos fora da escola. Mas também tem outro, dos fundamentalistas religiosos. Temos muito pouca informação sobre o que acontece com as crianças dessas famílias, já que a regulação é pequena. Muitas, provavelmente, têm uma educação muito pobre.
Ensino domiciliar
O que é
Consiste na possibilidade de os pais deixarem de matricular seus filhos na escola e educá-los em casa.
Como funciona nos EUA
O chamado homeschooling é permitido, com regras que variam em cada Estado – que têm autonomia para criar leis próprias. Segundo a Associação de Defesa Legal do Ensino Domiciliar (HSLDA, na sigla em inglês), dos 50 Estados norte-americanos, seis possuem alta regulamentação, ou seja, são exigidas provas regulares para avaliar o aprendizado e a qualificação dos pais para ensinar e até visitas nas residências. Em 19 deles, a regulamentação é considerada moderada e, em 25, há poucas regras, ou nenhuma.
Propostas no Brasil
O governo Bolsonaro apresentou, em abril, Projeto de Lei para regulamentar o ensino domiciliar. A proposta prevê que pais ou responsáveis apresentem plano pedagógico e que estudantes façam avaliações anuais. Um projeto também tramita na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul.
Prós
Defensores afirmam que o modelo garante mais segurança às crianças e aos jovens e que é uma forma de os pais controlarem a qualidade do aprendizado, além de evitar casos de bullying.
Contras
Críticos argumentam que a educação domiciliar limita a socialização das crianças, que seriam privadas da diversidade de pessoas e de ideias, e que favoreceria casos de violência infantil.
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*A repórter, que também é diretora da Associação dos Jornalistas de Educação do Brasil (Jeduca), esteve no 71º Seminário Anual da Education Writers Association representando a entidade brasileira .