Com uma apresentação encadernada em espiral, o norte-americano Jon Hage apresentou ao governador Eduardo Leite o trabalho da Charter School USA (CSUSA), empresa criada há mais de 20 anos para gerenciar escolas públicas nos Estados Unidos. A reunião no Palácio Piratini, em uma segunda-feira de maio, foi agendada pelo presidente do Instituto Floresta, Leonardo Fração, que conheceu Hage durante viagens a trabalho. O empresário gaúcho, que liderou movimento para a compra de viaturas e equipamentos para as forças de segurança, decidiu levar ao governador uma nova ideia: utilizar parte do fundo criado a partir da Lei de Incentivo à Segurança para a construção de uma escola charter experimental na periferia da Capital.
A proposta foi recebida com entusiasmo por Leite. O interesse foi confirmado pelo secretário de Parcerias, Bruno Vanuzzi. Em entrevista recente a GaúchaZH, ele confirmou que o governo gaúcho estuda, dentro do pacote de parcerias público-privadas, a implementação de escolas charter na rede estadual.
Os primeiros colégios do modelo foram criados no começo dos anos 1990 e a oferta tem crescido desde então. Dados do Departamento de Educação do governo americano apontam que 6% dos alunos daquele país estudam nesse tipo de instituição. Funciona assim nos EUA: uma empresa privada recebe recursos do governo para administrar uma escola pública. É responsável pela construção da estrutura, pela contratação de professores e funcionários e pela definição do currículo. Os estudantes não pagam mensalidade e não há provas para ingresso. Os distritos escolares e os governos estaduais são responsáveis pelas regras de funcionamento e pelo controle da qualidade – assim como no homeschooling, existem diferenças entre os Estados.
O professor do Insper Fernando Schüler defende a sua implementação no Brasil. Para ele, um dos grandes problemas para se avançar na qualidade da educação é que o poder de atuação dos gestores públicos é limitado, já que não podem demitir profissionais que não apresentam bons resultados e descontratar serviços ineficientes. Soma-se a isso a burocracia estatal.
A crise que enfrentamos não é da educação, e sim do Estado, da burocracia. E quem paga a conta são os mais pobres, porque eles estudam na escola de baixa qualidade.
FERNANDO SCHÜLER
Professor do Insper
— A crise que enfrentamos não é da educação, e sim do Estado, da burocracia. E quem paga a conta são os mais pobres, porque eles estudam na escola de baixa qualidade — afirma.
O modelo, no entanto, está longe de ser consenso. O professor aposentado da Universidade de Campinas (Unicamp) Luiz Carlos Freitas argumenta que as pesquisas feitas ao longo das últimas décadas não conseguiram comprovar os efeitos dessas escolas para a melhoria da qualidade da educação nos EUA. Ele cita, ainda, alguns "efeitos colaterais", como a segregação escolar por renda e por raça.
— Cresce no Brasil a tentativa de resolver problemas complexos com soluções simples. Mas isso não é possível. Transferir recursos à iniciativa privada acaba por retirar financiamento das escolas públicas — argumenta Freitas.
Schüler concorda que não existe uma solução simples, mas afirma que, em alguns Estados americanos – como Nova Orleans e Nova York –, as pesquisas apontaram para uma tendência de melhora na qualidade do ensino, já que há maior controle dos serviços que são prestados.
Cresce no Brasil a tentativa de resolver problemas complexos com soluções simples. Mas isso não é possível. Transferir recursos à iniciativa privada acaba por retirar financiamento das escolas públicas.
FERNANDO SCHÜLER
Professor do Insper
— Ainda é algo muito incipiente. Esse modelo existe há 28 anos nos EUA. No Brasil, é preciso experimentar, testar, dar aos pais a opção de escolher a escola dos filhos — diz Schüler.
Para o professor Teachers College, da Universidade de Columbia, Jeffrey R. Henig, é preciso ter cuidado com a promessa de que a gestão privada vai resolver todos os problemas educacionais.
— As charter schools têm crescido substancialmente nos EUA, principalmente em locais nos quais o tradicional sistema de escolas públicas não está indo tão bem. Mas o alerta que eu faço é de que elas não conseguiram melhorar os resultados educacionais nos testes, como seus defensores alegam. Isso porque, enquanto parte desses colégios faz um ótimo trabalho, outros tentam melhorar. E algumas são, de fato, muito ruins — diz.
A experiência das escolas comunitárias de Porto Alegre
As obras ainda estão em andamento, mas cartazes coloridos e murais com desenhos feitos pelos alunos já decoram as paredes brancas da Escola Aldeia Lumiar, no bairro Tristeza, zona sul de Porto Alegre. Inaugurada no fim de abril, essa é a terceira instituição de ensino com gestão privada a oferecer aulas do Ensino Fundamental para alunos da rede municipal da Capital. É uma espécie de escola charter adaptada para a realidade da capital gaúcha.
A prefeitura paga R$ 970 mensais por aluno – por enquanto, são 73 crianças de seis a oito anos, mas a ideia é expandir gradativamente. A construção do prédio, a contratação de professores e a gestão escolar são de responsabilidade da Aldeia da Fraternidade, ONG que atua há 55 anos com programas de educação e assistência social. Já a proposta pedagógica segue a metodologia do Instituto Lumiar, que mantém uma rede de colégios privados no Brasil e no Exterior.
Na sala de aula, alunos que tradicionalmente estariam em classes separadas do 1º, 2º e 3º anos do Fundamental, estudam juntos. A ideia é que todos se ajudem e que o aprendizado ocorra de forma natural, a partir das experiências e necessidades de cada um – é o que a metodologia da Lumiar chama de ensino personalizado. As aulas começam às 7h30min e vão até o fim do dia, com intervalos para café, lanche e almoço. O único critério de seleção é o nível socioeconômico – quando mais baixa a renda familiar, mais fácil estudar na Aldeia Lumiar.
— Temos a oportunidade de oferecer uma educação de qualidade, com metodologia diferenciada, para alunos em situação de vulnerabilidade — afirma a diretora, a administradora Claudia Nahra.
Para o secretário de Educação de Porto Alegre, Adriano Naves de Brito, o modelo de escolas comunitárias adotado na cidade segue experiência já consolidada na Capital, a partir dos convênios com entidades privadas na Educação Infantil. Os contratos foram revistos, os repasses da prefeitura aumentaram e as exigências de qualidade também.
Algumas receberam prazo até o fim de 2019 para fazer adequações. Caso não cumpram as exigências, serão substituídas. Já as parcerias no Ensino Fundamental são mais recentes e seguem a ideia das escolas charter americanas, de dar opção aos pais de uma escola pública, com gestão privada.
— Não vamos conseguir melhorar o sistema público-estatal se não tivermos um sistema plural, que permita a comparação entre os diferentes modelos — afirma o secretário, que pretende ampliar para mais três escolas comunitárias até o fim do ano que vem.
Atrasos em repasses
Apesar dos planos de crescimento, a prefeitura de Porto Alegre enfrenta alguns problemas de implementação do modelo. Na Pequena Casa da Criança, a primeira instituição privada a oferecer o Ensino Fundamental em Porto Alegre, os atrasos nos repasses da prefeitura têm sido frequentes desde a assinatura do contrato. A instituição sem fins lucrativos ligada à congregação católica Missionárias de Jesus Crucificado aguardava para fevereiro deste ano o repasse da verba complementar para atender às crianças em tempo integral. Até esta sexta-feira, três meses depois, o repasse ainda não havia sido efetivado.
— Nós cumprimos a nossa parte, oferecemos um ensino de qualidade para as crianças. Mas temos dificuldade nessa parte financeira da prefeitura — diz a diretora-presidente da instituição, irmã Pierina Lorenzoni.
De acordo com Adriano Naves de Brito, alguns problemas pontuais ocorrem em função dos trâmites burocráticos. No caso da Pequena Casa da Criança, será necessário fazer um novo contrato, já que o inicialmente firmado não previa aulas em tempo integral.
O secretário de Porto Alegre e outros apoiadores do modelo defendem mudanças no fundo que financia a Educação Básica no país, o Fundeb, que expira no ano que vem e precisa ser renovado. A ideia é permitir que os governos estaduais e municipais recebam recursos do fundo para financiar vagas nas instituições conveniadas, o que hoje só é permitido na Educação Infantil (para crianças de zero a cinco anos de idade). Contrários à proposta argumentam que a mudança no Fundeb retiraria ainda mais recursos da escola pública – já carente de verbas. A alteração depende de aval do Congresso Nacional.
Escolas conveniadas (charter)
O que é
Um modelo de escola gerida pela iniciativa privada, que recebe recursos públicos.
Como funciona nos EUA
Instituições privadas recebem recursos do governo para administrar escolas públicas. São responsáveis pela construção da estrutura, pela contratação de professores e funcionários e pela definição do currículo. Os estudantes não pagam mensalidade.
Propostas no Brasil
Há políticas isoladas no país, com algumas semelhanças com o modelo dos EUA. É o caso das escolas conveniadas com a prefeitura de Porto Alegre. São três no Ensino Fundamental. O governo gaúcho também avalia uma proposta de escola charter para a rede estadual, apresentada pelo Instituto Floresta. A ideia é construir um colégio experimental na periferia da Capital, com recursos do fundo de segurança pública.
Prós
Defensores argumentam que a gestão privada reduz a burocracia e permite que o governo descredencie instituições que não atingirem as metas estabelecidas em contrato, o que favoreceria a qualidade.
Contras
Críticos afirmam que o modelo dos EUA favorece a concentração de alunos de classe média em algumas escolas (sem diversidade), que há dificuldade por parte dos governos em controlar a qualidade e que o repasse de verbas para a iniciativa privada retira dinheiro da escola pública.
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*A repórter, que também é diretora da Associação dos Jornalistas de Educação do Brasil (Jeduca), esteve no 71º Seminário Anual da Education Writers Association representando a entidade brasileira .