Não havia desemprego nem miséria em Muçum, município de 4,6 mil habitantes cuja economia foi soterrada de lama na enchente de 4 de setembro. Puxados pelo turismo, os negócios prosperavam, gerando um produto interno bruto (PIB) per capita de R$ 57,3 mil, e ocupando 53,5% da população, oitavo maior índice do Rio Grande do Sul. O orçamento municipal saltaria de R$ 24,6 milhões em 2021 para R$ 34,9 milhões este ano, um incremento de 42%.
Tal qual fotografias resgatadas da água barrenta, esses indicadores agora são memórias de um tempo bom. Um levantamento preliminar da prefeitura registra que 70% das 255 empresas da cidade foram destruídas pelas cheias do Rio Taquari.
— As perdas são inestimáveis. Os estabelecimentos que estavam na região central, toda ela alagada, se foram. A economia do município foi por água abaixo — afirma Tiago Strieski, 38 anos, secretário municipal de Administração, Fazenda e Planejamento.
Em fúria, a correnteza não poupou ninguém, dos microempreendedores à maior indústria. Quem restou ileso tem medo de uma nova enchente e quem sobreviveu não sabe se pretende continuar morando no município, que dirá investindo. Multiplicam-se os pedidos de renegociação dos aluguéis comerciais e aos poucos começam a surgir pedidos de demissão, com funcionários querendo mudar de cidade.
Preocupada com uma evasão dos empresários, a prefeitura de Muçum busca suporte nos governos estadual e federal, bem como nos bancos públicos. O objetivo é reduzir a burocracia na concessão de linhas de crédito, com juros baixos e prazo longo, estimulando uma retomada nos investimentos. Informalmente, o cálculo para uma reconstrução da cidade projeta a necessidade de R$ 1 bilhão.
— Estamos trabalhando para convencer as pessoas a continuarem acreditando. Que não desistam e reabram suas empresas. Nosso maior desafio é manter a autoestima, precisamos continuar acreditando na cidade — conclama Strieski.
A correnteza levou embora o sonho da costureira
Quando começou a costurar, na adolescência, Lidiane Cerutti Viegas sonhava em ter uma confecção própria. Na segunda-feira da enchente, 4 de setembro, ela e o marido Fernando limparam com afinco os 130 metros quadrados da Lidi Moda e Costura, e foram para casa, se abrigar da chuva que apertava.
— Olha como ficou bonito — disse Fernando, mirando pelos vidros da fachada o brilho do piso branco em contraste com a manequim de lingerie vermelha exposta na vitrine.
No dia seguinte, quando retornou ao local, a enxurrada tinha revirado prateleiras, derrubado balcões, encharcado máquinas de costura e enterrado o acervo da loja numa camada de 30 centímetros de barro. Havia recém quatro meses que Lidiane montara a empresa dos seus sonhos. Investiu R$ 15 mil em mobiliário, formou corredores com araras repletas de roupas, instalou painéis com peças íntimas nas paredes e, nos fundos, montou o ateliê com cinco diferentes máquinas de costura.
Aos 35 anos e desde 2019 morando em Muçum, Lidiane era a mais renomada costureira da cidade. Granjeara uma clientela fiel cerzindo com destreza e rapidez numa pequena sala comercial da Rua Barão de Rio Branco, principal via do município. O movimento crescente dos últimos anos impulsionou a expansão do negócio.
Trabalhando sozinha, Lidiane chegava às 6h45min para adiantar o serviço, abria as portas às 8h30min e ficava até o anoitecer, sem fechar ao meio-dia. A clientela dobrou e, faturando R$ 8 mil por mês, ela recém comprara um computador e uma impressora para emitir boletos, ampliando o sistema de cobrança da loja. Tudo acabou destruído pela cheia do Taquari, cuja marca de 1m70cm alcançada dentro da loja tingiu de lama o alvará preso à parede.
— Eu tinha muita roupa, nossa. Tinha chegado um monte de calças jeans. São 15 anos trabalhando, comprando, pagando, para chegar aqui e olhar tudo assim… — lamenta Lidiane, numa frase interrompida por lágrimas.
Com o negócio arrasado pela correnteza e a própria casa também invadida pelo Rio Taquari, Lidiane demorou uma semana para limpar a loja. Enquanto recolhia moldes e peças de roupa do meio do barro, pensava nas dívidas acumuladas e no medo de uma nova enchente. Sem ânimo para persistir, ela pretende voltar a viver em Guaporé, onde o marido mantém um lava-jato e para onde os pais rumaram tão logo a água baixou.
— Aqui, não mais. Vou embora para Guaporé e, depois, só Deus sabe — resigna-se.
Curtume invadido pela enchente tenta retomar produção
Com 359 funcionários, o Curtume Bom Retiro (CBR) é a maior empresa de Muçum. Sozinha, a unidade emprega 7,8% da população e responde por 9,14% da arrecadação municipal de ICMS. Nas duas últimas semanas, porém, a empresa contabiliza apenas prejuízos.
Instalado num terreno de 20 mil metros quadrados à margem do Taquari, o curtume começou a ser acossado pela enchente no começo da tarde de segunda-feira (4). Acostumada com cheias na região, a direção liberou primeiro os trabalhadores que moram em regiões ribeirinhas, para que pudessem proteger suas casas e retirar familiares.
Até então, em 20 anos de operação em Muçum, a fábrica jamais havia sido inundada. Mas desta vez o Taquari não parava de subir. Às 16h, foi decretada debandada geral. Ficaram no local apenas quatro supervisores, encarregados de fazer o desligamento da unidade.
Encurralados pela enxurrada, eles acabaram se refugiando na torre da caixa d'água, a 30 metros do chão e de onde só seriam resgatados na manhã do dia seguinte. Quando a água baixou, uma vistoria inicial revelou o alcance da destruição. Todos os setores foram atingidos, com dezenas de máquinas avariadas nos mais de 20 pavilhões.
Uma das primeiras medidas adotadas foi consertar as bombas d'água para acionar os poços artesianos. Nos primeiros dias pós-desastre, mais de 50 caminhões usaram água do curtume na limpeza das ruas e das casas atingidas pelo barro.
Na sequência, a empresa recuperou o refeitório, oferecendo viandas e um local limpo para os funcionários se alimentarem enquanto arrumavam as próprias casas avariadas. Três deles, porém, não pretendem voltar mais. Pediram demissão na última terça-feira, dispostos a morar em outra cidade.
Aos poucos, a empresa tenta recuperar o parque fabril. Com faturamento anual de R$ 60 milhões, o curtume tem capacidade para beneficiar 10 mil couros por dia. Além de fornecer matéria-prima para a indústria calçadista e de vestuário da região, exporta para quase toda a Europa, países da América do Norte, da América Latina e do Sul e parte da Oceania. Procurada, a direção diz que está empenhada na retomada das atividades e não pretende se manifestar.
Água pelo teto na esquina mais disputada da cidade
Instalado num casarão de esquina, diante da praça central de Muçum, o Mercado da Sandra era o negócio mais bem localizado do município. Todos os dias, cerca de 150 clientes faziam compras no estabelecimento, colaborando com o faturamento mensal de R$ 80 mil. Na última semana, enquanto recolhia garrafas e produtos de limpeza do meio do barro trazido pela enchente, um freguês chegou querendo comprar um energético.
— Imagina, estava tudo jogado pelos cantos, eu não conseguia nem limpar o que sobrou —lembra Sandra Bagnar, deixando escapar um pedaço de sorriso em meio à desolação de quem perdeu a empresa de 20 anos.
Desde 2003, Sandra e o marido Iraldo Marcolin mantêm o minimercado na esquina das ruas Barão de Rio Branco com Isidoro Slongo. A localização estratégica, ao lado da Rua Coberta e em diagonal à Igreja Nossa Senhora da Purificação, sedimentou uma clientela fiel. Não tardou para a loja dobrar de tamanho, passando dos 70 metros quadrados iniciais para os 140 de agora. Com um funcionário e as vendas em expansão, tudo corria bem até o dia da enxurrada.
Alertados por fornecedores da região que havia muita água descendo serra abaixo em direção a Muçum, o casal tentou salvar mercadorias e equipamentos. O Taquari chegou antes. Sandra, Iraldo e o filho Matheus saíram com água pela cintura e se abrigaram na Casa Canônica, ao lado da igreja.
Ao abrir a loja no dia seguinte, havia mercadorias enterradas na lama, gôndolas deformadas pela correnteza, vidros quebrados e um freezer espetando o forro, a quatro metros de altura. Parte dos produtos estava espalhada no meio da rua.
— Quando entramos, deu um desânimo total. Se não fosse pelos vizinhos e amigos que ajudaram a limpar, eu fechava as portas e ia embora — comenta Sandra.
Uma estimativa inicial projeta R$ 500 mil em prejuízos. Para voltar a operar, seriam necessários no mínimo R$ 250 mil. Sem recursos para dar início à retomada e com mais R$ 30 mil em dívidas de curto prazo com fornecedores, Sandra pensa em desistir.
Antes de qualquer decisão, o casal quer conversar com o proprietário do imóvel. Negociar uma redução no aluguel e providenciar uma reforma que melhore a estrutura do prédio são prioridades para um eventual recomeço.
— Sinceramente, não sei o que fazer — afirma Sandra, enquanto uma andorinha perdida sobrevoava os entulhos espalhados pelo mercado.
A piscina de lama no restaurante mais concorrido
Após três décadas de dedicação ao trabalho, Mauro e Marília Cipriani se aposentaram em 2021. A tranquila rotina doméstica, porém, começou a incomodar o casal, e o que era inquietude se tornou empolgação quando souberam que o principal clube de Muçum havia perdido seu ecônomo.
Em novembro daquele ano, eles assumiram a cozinha da Sociedade Cultural José Garibaldi. De imediato, o tempero e a boa mão de Marília para a culinária italiana seduziram os clientes. Já na primeira semana, serviam 80 almoços por dia, o dobro da meta inicial. Para o feriadão do 7 de Setembro, esperavam receber 600 pessoas, 400 com reserva agendada.
— Na segunda-feira, dia da enchente, eu servi 85 almoços e fui cozinhar 30 quilos de frango, para fazer lasanhas no feriado. Saí quando um vizinho veio alertar que o rio estava transbordando — conta Marília.
O casal correu para casa, mas o pouco dos móveis que conseguiu levar até os vizinhos foi levado pela enchente. A correnteza varreu toda uma faixa à margem do Taquari, deixando apenas os alicerces do imóvel de 140 metros quadrados.
Não bastasse a perda da casa, os Cipriani ficaram também sem o negócio. Quando voltaram ao restaurante, a água tinha atingido o segundo piso do clube, mergulhando o bufê, a fritadeira, o liquidificador e demais equipamentos numa imensa piscina de lama. Uma cadeira foi parar sobre a coifa, na cozinha. Havia comida e talheres espalhados por tudo.
No início das operações, em novembro de 2021, Mauro e Marília contrataram apenas um funcionário para ajudar no preparo dos pratos. Investiram R$ 100 mil e projetaram trabalhar por quatro ou cinco anos, ao cabo dos quais esperavam comprar uma casa na praia.
Agora, o restaurante gerava oito empregos e faturava entre R$ 15 mil e R$ 20 mil líquidos por mês. O crescimento do turismo religioso na região atraía centenas de visitantes aos finais de semana e havia 3 mil reservas até o final do ano. Mês passado, eles adquiriram uma residência em Capão da Canoa, que começaram a mobiliar.
— A gente tinha muito movimento, estava bombando o restaurante — lembra Mauro.
O casal ainda não parou para contabilizar os prejuízos. Só em mercadorias, o prejuízo estimado é de R$ 80 mil. Para a retomada emergencial das operações, ele calcula que serão necessários R$ 100 mil.
— Não tenho muito dinheiro, mas vou tentar caminhar com minhas próprias pernas. Não vou fechar, não vou desistir e não vou embora de Muçum. Nasci aqui e vou morrer aqui — afirma, resoluto, Mauro.