Sem uma agenda legislativa marcante e sob desconfiança do mercado, o governo Lula precisa dizer o mais breve possível quais suas diretrizes econômicas. Para o jornalista e consultor político Thomas Traumann, essa deve ser a prioridade de Luiz Inácio Lula da Silva no início de seu mandato. Aos 55 anos, Traumann é um observador privilegiado dos bastidores do poder. Teve passagens pelos principais veículos de imprensa do país, atuou no governo Dilma Rousseff como porta-voz da Presidência e ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Social, é pesquisador da Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getúlio Vargas e autor do livro O Pior Emprego do Mundo (Planeta, 2018), no qual disseca as vicissitudes enfrentadas por 14 ex-ministros da Fazenda. Nesta entrevista, Traumann minimiza tropeços iniciais do governo, mas cobra clareza e foco, sobretudo de Lula e do ministro da Fazenda Fernando Haddad.
O senhor tem dito que o Lula de 2023 é mais centralizador do que o de 2003, decide mais sozinho e ouve menos pessoas. O que essa postura projeta para o novo governo?
A diferença está nas pessoas que acompanharam os primeiros governos Lula com as de agora. Em função dos processos da Lava-Jato, da prisão e do isolamento político, Lula hoje é uma pessoa mais centralizadora. O núcleo duro desse governo tem três pessoas apenas tomando decisões. Lula vai continuar ouvindo muita gente, fazendo muita reunião, mas, na hora de decidir alguma coisa, será 0uvindo os ministros Fernando Haddad (Fazenda), Rui Costa (Casa Civil) e Alexandre Padilha (Articulação Política). Numa segunda fase, entram (o vice Geraldo) Alckmin e Flávio Dino (Justiça).
Em 2003 havia um núcleo duro também, com José Dirceu, Antonio Palocci, Luiz Dulci e Luiz Gushiken. Qual a diferença?
O núcleo do primeiro governo era de pessoas que tinham quase o mesmo tamanho. Lula era presidente do Sindicato dos Metalúrgicos, mas Gushiken havia presidido o sindicato dos bancários, os dois cresceram juntos no PT. Dulci era do sindicato dos professores de Minas Gerais e Dirceu, um dos líderes da luta armada ao governo militar. Óbvio que Lula era maior, mas a distância não era tão grande. Equivaliam-se, e todo mundo se chamava de você. Agora, não. Lula é muito maior do que Haddad, Rui Costa e Padilha. Você tem uma pessoa que, pela idade e pela experiência, está acima dos outros.
Com três dias de governo foi preciso um freio de arrumação diante das vozes dissonantes. Num ministério tão grande quando diverso, que vai do União Brasil ao PSOL, como ter um discurso homogêneo?
É preciso separar o que é problema do que é só ruído. Quando o Carlos Lupi (Previdência) fala em rever a reforma da Previdência, é ruído, euforia de palanque logo desmentida pelo núcleo duro. Isso é natural num governo que recém assumiu e não havia feito reunião ministerial. O que tem de ficar claro desde o início do governo é que de economia quem fala é o ministro da Fazenda. Não dá para brincar com isso porque o Brasil está numa circunstância difícil. O Fernando Henrique Cardoso dizia que quem mandava era o (Pedro) Malan, o Lula fez isso com Palocci, Temer também, com Henrique Meirelles, e o Bolsonaro, com Paulo Guedes. Então Lula tem de deixar claro que quem fala de economia é o Haddad, e ele precisa dizer o que está fazendo.
O senhor definiu “terraplanismo previdenciário” a afirmação de Lupi de que não há déficit na Previdência. Teremos a volta desses anacronismos populistas?
É a grande dúvida. Numa campanha é natural que haja esses exageros. Agora a campanha passou e se trata de um governo, esse discurso não faz mais sentido. Não faz sentido falar “o mercado não sente fome”, “o mercado são 60 famílias”. O mercado brasileiro é um dos mais sofisticados do mundo. Lógico que tem muita gente no mercado que votou no Bolsonaro e tem má vontade com o PT, mas isso não é novidade. O mercado é assim mesmo e sempre vai cobrar. A questão toda é ter definição. Se você fala que vai ter uma âncora fiscal, precisa dizer que âncora será essa, de que jeito será cumprida. O mercado pode até ficar brabo com a nova âncora, mas isso dura dois dias e depois ele quer saber se será cumprido. O que falta nesse governo é começar a definir as coisas. Esse é o custo das circunstâncias.
Haddad foi a primeira vítima desse descompasso inicial ao perder a briga em torno da desoneração dos combustíveis. Isso não aumenta a desconfiança?
Haddad tinha acertado com Paulo Guedes a prorrogação da isenção de PIS/Cofins sobre combustíveis por mais 30 dias até que o novo governo decidisse o que fazer. Lula não aceitou acordo com a equipe do Guedes e Haddad foi a público dizer que a cobrança do imposto voltaria dia 1º de janeiro. O mercado reagiu bem, viu um sinal de que o governo quer arrecadar mais e diminuir déficit. No final, a isenção foi prorrogada, prevalecendo a posição política do PT de que um aumento no primeiro dia do governo prejudicaria a popularidade do presidente. O mercado virou e reagiu mal. Depois, várias pessoas falaram de coisas que afetam a economia, como reforma da Previdência, trabalhista, sem ter combinado antes com Haddad. No momento em que existe um clima de expectativa, isso cria um ambiente ruim. As pessoas se perguntam se Haddad manda ou não na economia. Isso só se resolve com o pulso do presidente, ele falando que quem manda é o ministro da Fazenda. Se ele disser, resolve essa crise na hora. Se não disser, teremos um problema.
Não faz sentido falar ‘o mercado não sente fome’, ‘o mercado são 60 famílias’. O mercado brasileiro é um dos mais sofisticados do mundo.
Nos primeiros mandatos, Lula estimulava conflitos internos para depois arbitrar. Essa disputa entre ala econômica e ala política tende a perdurar?
Essa é a grande decisão. No primeiro governo, Lula inflava essas vozes dissonantes. Havia Palocci contra Dirceu, Palocci contra Dilma, e o Lula pairava acima de todos, arbitrando para qual lado as coisas iam. O problema é que, neste momento específico de largada do governo, é importante que se tenha uma direção. Lula já fez uma coisa excepcional que é negociar um orçamento novo antes de tomar posse. Mas é natural as pessoas ficarem desconfiadas, afinal o déficit vai subir. O mercado não é malvado, ele simplesmente olha para um déficit que estava em RS 60 bilhões e passou para mais de R$ 200 bilhões. É natural querer saber para onde vai esse dinheiro. O governo precisa mostrar onde vai gastar, por que vai gastar, se vai economizar aqui ou ali. Não é hora de discussão, mas de ter uma linha reta e dizer claramente qual é afinal essa linha.
Assim como em 2003, Lula colocou um político no comando da economia. Os desafios de Haddad são equivalentes ao de Palocci?
O PT não tem de provar nada na área social. Rapidinho resolve o Bolsa Família, faz o dinheiro chegar nos mais pobres e corrige eventuais fraudes. Também ninguém tem dúvida de que a nova ministra da Saúde, Nísia Trindade, vai ajustar o programa nacional de vacinação. Ela foi presidente da Fiocruz, produziu a vacina que grande parte dos brasileiros tomou e estará à frente do SUS. Mas na economia não é assim. Na economia, o PT tem que provar duas vezes mais do que se fosse um Paulo Guedes, um Meirelles. Isso é fato e não adianta o PT ficar brabo. A desconfiança em relação a um ministro do PT é maior do que em relação a um ministro liberal. Se o ministro fosse um Pérsio Arida, um Armínio Fraga, o mercado estaria tranquilo. Como é um petista, o mercado quer fatos, não discurso. No primeiro ano do governo Lula, em 2003, essa desconfiança fez com que o Palocci produzisse um superávit primário de 4,75%, superior à meta de 4,25%. Não adianta reclamar, um petista sofre mais do que os outros, já faz parte do emprego.
Haddad está disposto a isso? O que que se pode se esperar dele à frente do Ministério da Fazenda?
Haddad tem um problema sério: terá de comprar essa credibilidade todo fim do dia. Até agora, as entrevistas que deu são muito tranquilas, moderadas, sempre deixando claro que há o que fazer. Mas ele tem que começar a mostrar coisas. Qual é e quando que vai ser apresentada a âncora fiscal? Vai ser em abril? Quanto mais cedo, melhor. Qual será a reforma tributária? É a que já está no Senado ou haverá mudanças? Ele disse que haverá redução de isenções. Quais são? Por enquanto está muito no genérico. Tem de começar a ser mais específico para reduzir as desconfianças. Estamos tendo agora uma situação anômala, com juros a 13,75% e inflação de 5%. Não faz sentido, mas só vai reduzir os juros quando as coisas ficarem mais claras.
O senhor escreveu um livro dizendo que o cargo de ministro da Fazenda do Brasil é o pior emprego do mundo. Por quê?
Entre 2017 e 2018, entrevistei 14 ex-ministros da Fazenda. Eu queria mostrar que a dinâmica das pressões sofridas pelo governo são muito parecidas, seja governo do PT, do PSDB ou militar. Lógico que em alguns momentos o Congresso tem mais força, em outros o mercado é mais forte. Mas, uma vez eleito, o presidente tem uma série de promessas que precisa entregar. Tem ainda interesses do Congresso, do mercado, da Justiça, questões do cenário internacional. Então as roldanas que mexem o relógio do poder são muito similares. Mas o presidente tem uma grande vantagem, ele chega ao Palácio do Planalto com 60 milhões de votos. Tem a credibilidade que lhe foi dada pelo povo. Ele pega um pedaço dessa credibilidade e passa a um auxiliar para tentar resolver os problemas. Esse auxiliar não tem voto, é só um preposto e está ali como um grande fusível do presidente. Sofre pressões e pode ser demitido a qualquer hora. Como no país as pessoas julgam o governo pela economia, esse é o pior emprego do mundo.
Seu livro mostra isso. Fernando Collor e Dilma Rousseff sofreram impeachment mais por questões econômicas do que jurídicas, enquanto Lula e Michel Temer sobreviveram às turbulências graças à economia.
Acho que o Haddad tem muito claro que está entrando num projeto do qual é muito difícil sair com popularidade. Esse é um cargo feito para falar não. No fundo, ele é o cara mau da história. O ministro da Saúde vai querer colocar mais hospitais e contratar mais médicos. Aí o ministro da Educação fala em contratar mais professores e aumentar o valor da merenda. É natural querer gastar mais, e o Haddad é quem vai dizer que não tem para todos. Você não vai ser popular com o Congresso, não vai ser popular nem entre seus colegas.
A dobradinha de Haddad com Simone Tebet no Planejamento pode prosperar? As pretensões presidenciais de ambos não tende a complicar a relação e, por consequência, a gestão?
Acho que tanto Simone quanto Alckmin serão os menores problemas do Haddad. Os problemas dele não estão na direita, mas na esquerda. No fundo, Haddad é um fiscalista. Quem o acompanhou como prefeito de São Paulo sabe. Ele terá mais problemas com o PT do que com os opositores.
Tanto Simone Tebet quanto Geraldo Alckmin serão os menores problemas de Fernando Haddad. Os problemas de Haddad não estão na direita, mas na esquerda.
Haddad colocou como prioridade a reforma tributária. O senhor vê espaço para o debate prosperar?
Sim. Já poderia ter sido aprovada se o Paulo Guedes quisesse. Havia apoio dos 27 governadores, o que é fundamental, porque a reforma faz uma grande fusão nos impostos estaduais e municipais. Resolve uma pendência histórica em torno da cobrança na origem do produto ou onde ele é vendido. A proposta conseguiu um formato em que os Estados serão compensados pelo que perdem e cria um uma coisa única que você não vai ter de pagar ISS, ICMS. Ela já está meio que madura, simplifica e facilita. Vai aumentar o imposto sobre serviços, portanto parte da classe média vai reclamar, mas não existe reforma em que todo mundo fique contente.
Esse será um governo reformista?
O governo não tem uma agenda legislativa muito forte. Estão falando muito mais em reconstrução, voltar às circunstâncias legais do que o Brasil era antes do governo Bolsonaro, especialmente no funcionamento dos ministérios da Saúde, do Meio Ambiente e da Educação, Não vi até agora nenhum projeto inovador. O único que ensaiou algo foi o ministro da Educação, Camilo Santana, falando sobre o Ensino Médio, mas não teve nada mais específico.
Lula não tem votos suficientes para aprovar emendas à Constituição. Há espaços para ampliar a base no Congresso?
Não precisa. O governo não tem agenda legislativa que precise de PECs. Como disse, não é um governo reformista; é um governo de retorno. Com exceção da reforma tributária, que será complicada de qualquer forma, não há necessidade de se ter 308 deputados. Óbvio que precisa uma maioria suficiente para aprovar projetos, mas nada muito maior do que já tem hoje.
Qual a importância de Arthur Lira e como o governo vai tratá-lo? Não há risco de se repetir o erro que o governo Dilma cometeu com Eduardo Cunha?
Não. Padilha é um ministro bem vacinado em relação a isso. Lira é o mais poderoso presidente da Câmara em muito tempo, tem controle total sobre a agenda legislativa e sobre como os deputados estão votando. É impressionante. Não vale a pena para o governo entrar numa briga com Lira, assim como não vale a pena para o Lira entrar numa briga com o governo. É bem diferente da relação do Eduardo Cunha com a Dilma, onde havia uma aversão pessoal entre eles e Cunha tinha uma agenda paralela à do governo.
Centro, centro-direita, centro-esquerda liberal, essas pessoas têm de entender que erraram e portanto precisam aprender com seus erros para conquistar um eleitorado que não é do Lula nem do Bolsonaro.
Em geral, novos governos têm um período inicial em que as cobranças são menos rigorosas, uma lua de mel com a sociedade, a imprensa e o Congresso. A vitória de Lula num ambiente tão polarizado permite essa tolerância?
Não tem lua de mel alguma. Vivemos numa circunstância muito inusitada, porque na prática Bolsonaro deixou de governar no momento em que perdeu a eleição. Quem negociou o orçamento já foi Lula, mesmo sem ter a caneta na mão. Então esse período já passou.
Lula buscou distensionar o ambiente, atraindo MDB, União Brasil e PSD. Também quer conversar com o Republicanos e uma ala do PL. Mas os discursos ressaltando uma herança maldita que teria sido recebida não reforçam a percepção de revanchismo?
Esses discursos são normais, coisa de posse, primeiras entrevistas. É um tom que se dissipa naturalmente em fevereiro, quando o Congresso voltar ao trabalho e tiver sua própria agenda. A gente tem de se preocupar com coisas reais. Essa foi a eleição mais acirrada da história, e o governo começa com apenas 50% das pessoas apoiando. É o menor índice da história e mostra a dificuldade que Lula vai passar. Ele vai governar para esses 50%? Para os 50% mais 10%, mais 20? Vai tentar que parte das pessoas que votaram no Bolsonaro comece a achar o governo, se não bom, pelo menos regular, para evitar uma oposição raivosa dessas pessoas? Por isso é importante que Simone Tebet esteja no governo e seja escutada. É importante que Alckmin reabra canais com o empresariado.
A pressão por punição a Bolsonaro e seus ministros, com os gritos de “sem anistia”, não pode manter esse ambiente beligerante?
É natural que tenha esse grito, mas em seis meses as pessoas estarão preocupadas com o preço da gasolina, do pãozinho, com o dia a dia e se o governo está conseguindo pagar o Bolsa Família.
Na impossibilidade de Bolsonaro disputar a eleição de 2026, há no horizonte um herdeiro político do bolsonarismo?
É muito cedo para isso. No Brasil, não se consegue fazer previsão para daqui a 15 dias. Imagina para quatro anos. Quando Lula saiu da prisão, em 2019, em seguida o PT teve seu pior resultado na história em eleições municipais, teve 5% dos votos em São Paulo. Prefiro não fazer projeções.
E no centro, quem desponta para 2026? Tebet e Alckmin, podem assumir esse papel? Como o senhor vê Eduardo Leite?
Esse centro, centro-direita, centro-esquerda liberal, essas pessoas têm de entender que erraram e portanto precisam aprender com seus erros para conquistar um eleitorado que não é do Lula nem do Bolsonaro. Na campanha, as pesquisas mostraram que havia 20%, 25% dos eleitores que não queriam votar em nenhum dos dois, mas quando você apresentava outros nomes, nenhum conseguia seduzi-los. Para abrir espaço fora do bolsonarismo e do lulismo, essa turma precisa criar uma agenda diferente. Isso vale para Simone, Leite, (o governador de MG, Romeu) Zema. E não adianta chegar no último ano e achar que vai ser candidato, é preciso uma agenda nacional alternativa de quatro anos. Até porque a oposição radical ao governo Lula será feita por Bolsonaro. Esse papel já está tomado.