Luiz Antonio Simas, 55 anos, tem olhos na rua. O professor, escritor e compositor carioca é um entusiasta da cultura popular nas suas mais distintas manifestações: samba, Carnaval, terreiro, botequim, jogo do bicho, futebol. Assíduo no Bode Cheiroso, bar que frequenta no Rio de Janeiro, colhe elementos para sua intensa produção. É autor, entre quase três dezenas de livros, de Coisas Nossas, Maracanã — Quando a Cidade Era Terreiro e Almanaque Brasilidades — Um Inventário do Brasil Popular. Define-se como um historiador das miudezas da vida urbana cotidiana.
Em entrevista a GZH, Simas falou de quase tudo um pouco, mas faltou tempo para tantas áreas de interesse.
— O que me interessa é entender como as culturas de rua vão construindo mecanismos de sociabilidade e sentidos coletivos de vida diante de circunstâncias muito precárias. E acho que isso está sob ameaça. Cada vez mais, a rua é encarada como um ponto de passagem, de circulação de mercadorias e de corpos adequados e apressados. A vida, cada vez mais, está sendo levada para ambientes fechados. As pessoas vivem em caixotes: o colégio é um caixote, o condomínio é um caixote, o shopping é um caixote, o carro é um caixote. A gente está encaixotado — observa.
Você se dedica a diversos temas ligado à cultura popular brasileira. Quem é o Brasil, qual a identidade do nosso país? Imagino que não seja uma resposta simples.
Essa é uma indagação que o Brasil está tentando fazer há, pelo menos, uns cem anos. Viemos de um processo colonial, de quatro séculos de escravidão, de genocídio indígena... Definir algum tipo de identidade a partir de uma história com essas particularidades é muito complicado. Só vamos conseguir pensar a identidade nacional brasileira, paradoxalmente, a partir do reconhecimento das nossas pluralidades. O Brasil é complexo demais. Se pensamos o Brasil como um projeto de Estado-nação, esse Brasil oficial, durante a maior parte do tempo, foi projetado para excluir. É um projeto de exclusão bem-sucedido porque fomos projetados dentro de uma perspectiva de exclusão mesmo: concentradora de propriedade e renda, domesticadora e aniquiladora de corpos. Ao mesmo tempo, nas frestas desse projeto de horror, você vai construindo sentidos de vida, o que chamo de brasilidades. Entendo o Brasil como projeto de Estado-nação, e as brasilidades, como criações incessantes de sentido de vida nas brechas desse muro de exclusão. O Brasil tem essas contradições latentes em sua história. Somos um país capaz de adubar a flor e afiar a faca. A madeira que bate no corpo e, ao mesmo tempo, que bate no couro do tambor para recriar a vida como samba. Temos essa complexidade toda que faz parte da nossa formação. De toda maneira, a impressão que tenho é que só vamos conseguir, rigorosamente, refletir sobre identidade nacional brasileira nos colocando em uma posição de desconforto. Somos esse processo de pluralidade, de extremíssima violência. Houve gerações de intelectuais que acreditaram que poderíamos pensar a identidade nacional a partir de um certo campo comum da cultura que redimiria a violência da nossa história, mas não. Então, primeiro é pensar que não teremos respostas definitivas. Segundo, toda ideia de identidade fixa é uma ilusão.
Tivemos uma eleição sem precedentes, sob diversos aspectos, neste ano. Os últimos tempos foram extremamente conflituosos. Isso mudou, de alguma forma, sua percepção sobre o povo brasileiro?
Alterar, acho um pouco demais. Somos um país com uma história profundamente marcada pela violência. A ideia de que somos um projeto afável que, de repente, foi se brutalizando é, mais uma vez, buscar uma certa identidade que nos redima, e a coisa é muito mais complexa. Somos um país fundado em quatro séculos de cativeiro. O Brasil não é só de belezas, de samba, que joga bola, que canta e dança — é isso também. Mas o Brasil é dos capitães do mato, dos bandeirantes que saíam para apresar e escravizar indígenas. É um projeto de horror, forjado também na senzala, no pelourinho, no chicote. Tudo isso faz parte do nosso processo de formação. O que acontece agora é que esse pus jorrou, é uma ferida aberta. Tem uma extrema-direita que já está aí há muito tempo, um sentimento latente marcado pela violência, pela ideia de exclusão, por intolerância. Esse pus bolsonarista que jorrou, em larga medida, é resultado também de um processo de afirmação de um Brasil divergente do Brasil oficial: um Brasil da diversidade sexual, que contesta o patriarcado a partir do protagonismo das mulheres, em que indígenas e negros são agentes da sua história. Por um lado, isso é muito forte, e me parece um processo irreversível. Por outro, gera reações das mais pesadas de certos segmentos que não sabem, não querem, não toleram conviver com esse tipo de coisa. Passo longe de achar que havia um Brasil de tranquilidade, que tinha chegado a um certo consenso e parece que tudo desandou. Não. Tivemos momentos positivos, de avanço, mas, fundamentalmente, estamos enraizados em um esteio violento. E reconhecer isso não é propor um reconhecimento que imobilize, mas um reconhecimento que seja agente da luta e da mudança.
O Brasil não é só de belezas, de samba, que joga bola, canta e dança. É um projeto de horror, forjado também na senzala, no pelourinho, no chicote. Tudo isso faz parte do nosso processo de formação. O que acontece agora é que esse pus jorrou. É uma ferida aberta.
Como surgiu esse interesse pela cultura "da rua": o samba, o futebol, o jogo do bicho, o boteco?
Venho de uma família predominantemente nordestina muito ligada à cultura das ruas, que gostava muito de samba. Minha avó era mãe de santo e tinha um terreiro. A rua era considerada um lugar de construção de sociabilidade muito intenso. Como historiador e escritor, o que me instiga é tentar entender como você vai construindo sentido comunitário de vida, sociabilidade, redes de proteção social numa dimensão de vida muito precarizada. Se você para para pensar no papel do botequim, da escola de samba, da barraquinha de comida de rua, da quitanda, do pequeno comércio... Aí tem construção de sentido comunitário de vida. Gosto muito da festa de rua. Ao contrário do discurso do senso comum de que a festa é alienante, vejo-a como instância de construção do sentido coletivo diante de um mundo que nos individualiza cada vez mais. Somos escravizados pelo tempo do relógio, pela adequação dos corpos, pelo ambiente do trabalho...
Pelas imagens...
Sim. Somos capturados por uma dimensão da vida que é desumanizadora. Isso me assombra muito. Cresci num ambiente em que o Carnaval era aquela festa do "não me encontre". Você se entregava às paixões da rua para sumir. Hoje a gente vive o Carnaval do "onde me encontrar": o cara diz onde está, de que maneira está fantasiado. São elementos que nos arremessam em um processo de diluição do laço comunitário. Esses laços são fragmentados, estão estilhaçados por essa dimensão da vida. E, ao mesmo tempo, a cultura de festa opera no sentido de reconstrução de um sentido de pertencimento coletivo que, no cotidiano, parece, o tempo todo, estar sendo perdido. As pessoas ficam um pouco espantadas porque não sou um boêmio, você não vai me encontrar virando noite em um botequim. Gosto de tomar minha cerveja de dia. O que me interessa é entender como as culturas de rua vão construindo mecanismos de sociabilidade e sentidos coletivos de vida diante de circunstâncias muito precárias. E acho que isso está sob ameaça. Cada vez mais, a rua é encarada como um ponto de passagem, de circulação de mercadorias e de corpos adequados e apressados. A vida, cada vez mais, está sendo levada para ambientes fechados. As pessoas vivem em caixotes: o colégio é um caixote, o condomínio é um caixote, o shopping é um caixote, o carro é um caixote. A gente está encaixotado.
Muitas das suas histórias e inspirações saem do Bode Cheiroso, botequim que você frequenta no Maracanã, no Rio. Apresente o lugar e seus frequentadores para quem não o conhece, por favor.
Costumo dizer o seguinte: acho que, na vida, o sujeito vai acabar conhecendo profundamente um ou dois botequins. Não sou especialista, conheço dois e olhe lá. Você pode ir a 500 botequins na sua vida e não conhecer nenhum. Quando frequenta sempre ou bastante os mesmos, lança um olhar que não é um olhar só de quem está apaixonado e gosta de estar no botequim, mas é o olhar também de quem estuda. É um sujeito do meu conhecimento. Sou um estudioso da vida urbana. O botequim tem uma lógica de funcionamento cotidiana. Você vê quem entra, vai reparar que tem aquela pessoa que chega sempre na mesma hora, para uns minutos, toma uma cachaça ou uma cerveja no balcão. Uma mudança extremamente saudável hoje é, cada vez mais, a presença da mulher. O botequim foi construído como um ambiente da classe trabalhadora muito machista. Hoje não. De certa forma, o botequim é um sintoma da cidade. É um microcosmo dos problemas da cidade. O bom botequim é o que fica perto de você. Conheço todo mundo, o garçom, sei como eles servem, conheço os melhores petiscos, qual o horário interessante para uma cerveja gelada. Para conhecer um botequim, temos que ter um certo tempo da paciência. Estamos vivendo uma vida muito corrida. É um processo de amadurecimento. Você vai, começa a reparar, vai conhecendo... O Bode Cheiroso é um bar frequentado pela classe trabalhadora, sobretudo durante a semana, você consegue comer um prato feito e toma a sua bebida. Gosto dessas miudezas. Não sou um historiador do grande evento, do grande personagem, do grande espetáculo.
Seus seguidores nas redes sociais interagem bastante. Há pouco um queria aproveitar teu "profundo" conhecimento de Brasil para que lhe passasse o contato de um agiota. Que outras interações curiosas costumam aparecer?
Acho que a rede social pode ter uma dimensão interessante. Uso rede social para divulgar trabalho, ainda que tenha escrito no Twitter "para fins recreativos". Tenho um trabalho como compositor, sou parceiro de um montão de gente, tenho bastante música gravada, e o Instagram eu uso para divulgar esse trabalho também. Não sou um guerrilheiro virtual. Ainda que o Brasil nos tenha levado a combates duríssimos, e eu também me envolvi nesses combates, a pegada ali é outra. Então acontecem coisas inusitadas. Gente que diz que comprou livro meu, quer um autógrafo e me encontra no botequim. Já me perguntaram sobre um bom terreiro de macumba para frequentar. Digo que estudo cultura de rua, mas estou longe de ser um "botecólogo" com dicas extraordinárias (risos).
Hoje, a grande indagação é a respeito do que pensamos para o Brasil como projeto viável de país. Isso passa pela Seleção Brasileira, por mais que as pessoas achem que não.
Depois da eliminação do Brasil na Copa, você escreve um texto questionando se "o elo que vinculou a seleção aos afetos mais profundos da alma brasileira se quebrou" e se "a camisa que representou a identidade possível (...) estaria começando a ser um símbolo de divisão". Finalizou também com perguntas: "Somos um país viável? É possível reinventar um projeto de identidade que defina o povo brasileiro como uma comunidade de afetos compartilhados? A seleção brasileira ainda faz sentido como um sintoma de nossas emoções, esperanças de vitórias, lamento de infortúnios, mazelas e belezas?". Pode falar mais sobre isso?
No processo de construção da República, proclamada muito perto da abolição da escravidão, não tem nenhum projeto consistente de inclusão social. Pelo contrário. O projeto da República é de exclusão: do exercício formal da cidadania, do mercado formal de trabalho. A monarquia exclui, ancorada na escravidão, e a república mantém o projeto de exclusão com outras dimensões. E aí os excluídos vão construindo os seus sentidos de vida às margens do poder institucional. Quando falamos da popularização do futebol, da importância da música popular brasileira, da relevância dessas culturas de rua, estamos falando da construção de sentidos. Aqueles excluídos das vias institucionais vão construindo seus modos de vida. Em um certo momento da nossa história, pareceu que a Seleção seria a encarnação de uma identidade possível, um país que, em meio a tantas diferenças, tanta violência, encontraria um signo de unidade. Quando o Brasil ganha a Copa de 1958, três jogadores têm destaque absoluto: Didi, que era negro e apelidado de Príncipe Etíope, Pelé, certamente descendente de pessoas que chegaram ao Brasil escravizadas, e Mané Garrincha, um indígena. Então, começou a ser construído um certo mito identitário em torno da Seleção, do futebol, e viabilizaria o país possível diante de um processo histórico tão violento. A amarelinha, portanto, nos colocava em uma dimensão identitária. A Seleção foi criando essa relação simbólica com o povo, que foi esmaecendo porque talvez a própria relação que temos com o Brasil vai entrando numa dinâmica de problematização intensa. Sempre tivemos uma tendência de mascarar os fundamentos de um processo muito desigual e violento. Hoje, a grande indagação é a respeito do que pensamos para o Brasil como projeto viável de país. Isso passa pela Seleção Brasileira, por mais que as pessoas achem que não. Temos a captura da camisa pela extrema-direita, mas esse processo de desapego é anterior à ascensão do bolsonarismo. Identifico desde, pelo menos, a Copa de 2006. Não temos mais jogadores que jogam prioritariamente aqui, saem muito novos, tivemos uma elitização. Há uma geração que se relaciona com o futebol inglês de uma maneira mais intensa do que com o brasileiro. Cada vez mais, vai se perdendo o espaço para brincar na rua. A relação que o brasileiro tinha com o futebol passava, prioritariamente, pelo caráter lúdico do jogo. Você jogava pelada na rua, numa praça. Hoje, para a criança jogar futebol, muito provavelmente, terá que buscar um clube ou uma escolinha.
Não será num areião no bairro.
Não. Isso vai fazendo com que a própria característica inventiva do futebol brasileiro vá se perdendo. Na escolinha, o técnico vai querer começar com os primeiros fundamentos táticos. Essa perda de afetividade está muito ligada ao fato de que estamos nos desconectando da brincadeira, da rua. E o Brasil está neste momento crucial em que precisamos fazer essa pergunta. Não é uma pergunta que a gente vá responder, mas que precisamos fazer. Não fazemos perguntas porque existem respostas. Fazemos perguntas porque são necessárias. O Brasil continua fazendo sentido? O futebol brasileiro faz sentido? A Seleção faz sentido? Se é para fazer sentido, quais são os caminhos da reconstrução? Acho que a reconstrução do país vai passar também pela reconstrução da Seleção e vice-versa. O Brasil é essa ferida exposta e a gente está tendo que lidar com ela.
Acho importante que a gente tenha a dimensão de que cultura é uma coisa e evento é outra. A cultura está acontecendo a qualquer hora, em qualquer lugar.
A área da cultura, de modo geral, sofreu muito com a pandemia e a falta de interesse e investimento do governo que agora se despede. Como recuperar esse prejuízo? E qual a sua expectativa com o mandato de Margareth Menezes à frente do Ministério da Cultura?
Acho importante que a gente tenha a dimensão de que cultura é uma coisa e evento é outra. Propus, num texto, que façamos uma distinção entra a cultura do evento e o evento da cultura. A cultura do evento é aquela muito mobilizada pelo eventual mesmo, como fazer um show. Mas o evento da cultura é outra coisa, é orgânico. A cultura está acontecendo a qualquer hora, em qualquer lugar. Cultura é um show? É um show também, mas é a maneira como a gente come, dança, celebra o nascimento, lamenta a morte, reza, brinca, veste-se. O que o Estado tem que fazer é reconhecer a pluralidade, a dinâmica, e que a cultura está acontecendo toda hora, em todos os campos. No botequim onde o cara está tomando uma cerveja e também em um baile funk debaixo de um viaduto. O poder público precisa interagir com os agentes culturais, pessoas que são o tempo todo fomentadoras dessas culturas. Estou animado com a perspectiva da Margareth. Estamos vindo de uma gestão bem-sucedida. Por que digo isso? O projeto dessa gestão foi destruir. Temos que encarar isso de frente. "Ah, deu tudo errado!" Daria errado se eles quisessem fomentar a cultura e a coisa não saísse do papel. Temos que assumir: foi um projeto de destruição. A figura da Margareth é muito simbólica. Acho que ela virá numa perspectiva similar à do (Gilberto) Gil, de reconhecer os agentes culturais e dar condições para que possam ser protagonistas.
Você entende muito de religiões de matriz africana. Acha possível que um dia o preconceito acabe?
Provavelmente não. É um preconceito fundamentado no racismo. Ao longo da nossa história, sempre foi muito permanente. Momentos um pouco melhores, mas, em geral, é perseguição mesmo. Acho que temos que, definitivamente, estabelecer que não se trata de intolerância. É mais profundo: é racismo religioso. O racismo não opera só numa desqualificação fenotípica, observada na impressão cor da pele. O racismo opera também na desqualificação de bens simbólicos. Quando você estabelece perseguição, demonização, ataque, desqualificação a todo o complexo de saberes brasileiros que são afro-indígenas, está operando na dimensão do racismo religioso. Os povos de terreiro têm se mobilizado, e essa mobilização é necessária como estratégia de sobrevivência mesmo. Isso é decorrente de um processo de formação histórica ancorado na dimensão do racismo. É impossível lutar contra o racismo se essa luta não incluir também a luta para que os bens simbólicos não brancos não sejam objeto de perseguição e desqualificação.