Antropólogo reconhecido e premiado por obras de referência sobre a sociedade brasileira, Roberto DaMatta considera que chegou aos 86 anos “mais lúcido do que muito garotão”. E é verdade. Em mais de uma hora de entrevista, o carioca de Niterói intercalou ponderação e contundência ao abordar temas centrais como a disputa renhida entre Lula e Bolsonaro e suas consequências na sociedade, o passado brasileiro mal resolvido da escravidão, a ascensão da mulher e o estouro de feminicídios. Também citou o início de uma nova era, com mais possibilidade de escolhas e cuidado do ser humano com o planeta. Professor da PUC-Rio e autor, entre outros, de Carnavais, Malandros e Heróis (1979) e O que Faz o Brasil, Brasil? (1984), DaMatta esteve em Porto Alegre no dia 30 para a inauguração da exposição Caminhos de Proust, na Biblioteca Pública do Estado (BPE). Na ocasião, recebeu uma medalha da associação dos amigos da instituição (AABPE) como reconhecimento ao seu trabalho pela cultura. No dia seguinte, declarando-se orgulhoso com a láurea, DaMatta conversou com GZH em um hotel da capital gaúcha.
Lula venceu a eleição por margem apertada e apoiadores de Jair Bolsonaro promovem atos antidemocráticos em frente a quartéis. O quão grave é o desprezo pela democracia?
É gravíssimo. A eleição se realizou, acabou. A Copa do Mundo é um bom exemplo. Se você concorda em participar, mas acha que tem alguma coisa errada, você não participa. No caso, houve uma participação. Houve uma série de dúvidas que o presidente Bolsonaro colocou em relação às urnas e tudo foi ultrapassado. É discrepante você encontrar pessoas que não aceitam o resultado. E grande parte dessas pessoas não têm consciência plena das implicações dos movimentos. Tem casais que estão se separando por causa disso. O marido toma uma posição, a mulher toma outra e a situação doméstica fica difícil de ser rotinizada novamente. Quando termina um campeonato, uma eleição, o que esperamos é que se retorne à rotina, que vai se caracterizar com um novo governo. Eu vivi o golpe militar, a renúncia do Jânio Quadros. Eu imaginei que o Brasil, politicamente, iria se ajustar. Isso mostra a dificuldade que nós temos de aceitar vitórias e derrotas, que são legítimas, baseadas em processos democráticos que conhecemos. São processos liberais. É uma situação desagradável e, até certo ponto, um abuso da liberdade. Você assume uma atitude que contraria a vontade da maioria dos eleitores, que deram a vitória ao outro candidato. As razões dessa vitória já são outra discussão.
O brasileiro recebia o carimbo de povo pacífico e conformado. Em que ponto essa chave virou para que o país passasse a observar populações muito engajadas, extremamente militantes e até propensas a conflitos?
Nunca engoli essa história de que o Brasil é pacífico. A renúncia do Jânio Quadros foi uma confusão. Os militares não aceitavam o vice-presidente, que era o João Goulart. Logo depois veio o golpe militar. Para começar, é uma sociedade que teve escravos. Toda a economia brasileira durante séculos foi baseada no trabalho do negro africano que chegava aqui escravizado. É uma sociedade em que a hierarquia e a ideia de superioridade social é visível em todos os campos. Essa é a grande violência brasileira. É o grande estupro que fazemos com alguns cidadãos. Cadê a escola primária? É o cerne de uma sociedade equilibrada e democrática. Quem trabalhava nas charqueadas aqui no Rio Grande do Sul? Todos escravos. Eles tinham direito de reivindicar alguma coisa? Tinham direito a nada. Isso nunca foi realmente discutido no Brasil do ponto de vista social e cultural com a profundidade que merece. Poucos autores fizeram isso. Não há nada no mundo, na vida social, que tenha só um lado. Sempre tem o outro lado. A discussão interessante é essa matriz aristocrática, hierarquizada e familística. Tem partido? Sim, mas o partido não vale nada. Vale muito mais o nome de família e suas relações de compadrio. Bolsonaro entrou para mudar tudo. Com os quatro filhos. Isso foi novidade? Não. Tivemos o Império. Dom João VI era o pai de dom Pedro I. E depois teve o Pedro II. Tivemos uma continuidade familística. Esse é um problema social, político e psicológico. A aceitação da frustração. A derrota frustra. A vitória une os vencedores, teoricamente. E a derrota exige um culpado, um Judas.
O brasileiro tinha outro carimbo, o de povo alegre. Ainda é?
Essas classificações não são ilegítimas. Elas fotografam determinados momentos. Não tem nenhum outro país no mundo que tenha um Carnaval que seja nacional. O Brasil é um país continental. O catolicismo é o que explica o Carnaval: o momento de liberdade, de libertinagem. É o momento em que as pessoas vão para a rua. E a rua se torna um lugar de brinquedo. Não é mais um lugar perigoso, passa a ser agradável. E o Carnaval não tem ênfase em comida. Em geral, nossas festas têm ênfase grande na comida. E o Carnaval é uma festa do espírito, da sensualidade. Se um estrangeiro, um cara que vem da Escandinávia, chega aqui na época do Carnaval, ele pensa que nunca viu uma sociedade tão alegre. Nós usamos o riso para ridicularizar. Temos capacidade grande de autocrítica. A gente ri da gente mesmo. Isso é ruim? Depende. Pode ser uma expressão de uma autoconsciência muito grande e que tem de ser reeducada. E como reeduca? Primeiro escolhendo o que a gente quer. Se queremos continuar autoritários, na esquerda e na direita, ou se queremos uma sociedade efetivamente liberal. Concordar em discordar é a chave. Isso ainda não entrou na cabeça do brasileiro. Eu posso discordar de você de maneira cordial e democrática. Bater de frente com você não significa te derrotar. E há uma escolha, em termos de política, que acho que devemos fazer e não fizemos: uma sociedade igualitária, em que você tem uma diferença econômica e educacional entre os seus cidadãos que seja razoável. É impossível acabar com as diferenças, a menos que entre um regime absolutamente totalitário. E para trabalhar isso tem de ser em um sistema muito forte de ensino primário e secundário. E menos focado em criar doutores. A escola primária é o primeiro lugar público que a gente experimenta na vida. Não tem mãe. Tem a professora. Os colegas não são irmãos. São colegas. Isso é fundamental para você criar uma sociedade minimamente igualitária. Um papel que tem de ser valorizado é o do professor. Professor no Brasil e merda é a mesma coisa. Uma das transformações que a Coreia do Sul e a Noruega fizeram foi valorizar o papel do professor primário, com salários altos. Não é o caso brasileiro. Não é fácil uma transformação desse tipo. Você precisa de um nível de conscientização das pessoas muito alto em relação à escola. Quando se fala em educação, o que prefeitos e governadores fazem é construir uma escola. Isso não significa que você transformou o ensino. O ensino não tem nada a ver com prédio. É outra coisa. É uma transmissão de conhecimento que tem compromissos com o tipo de futuro que você quer para aquela criança. E, consequentemente, para aquela sociedade.
Toda a economia brasileira durante séculos foi baseada no trabalho do negro africano que chegava aqui escravizado. É uma sociedade em que a hierarquia e a ideia de superioridade social é visível em todos os campos. Isso nunca foi realmente discutido no Brasil do ponto de vista social e cultural com a profundidade que merece.
Já houve diversos episódios de violência política em 2022. Acredita que o Brasil caminha para o momento em que pessoas radicalizadas irão justificar a violência como método de atuação política?
É um risco. Uma sociedade individualizada, onde a parte é mais importante do que o todo, é o que caracteriza a modernidade. Essa é uma sociedade que corre o risco do conflito. E, se você tem conflito, e tolerância pelo conflito, você chega à violência. Aqui estamos falando de violência física. Uma coisa que está tirando de foco essa polarização extremada e dogmática é a Copa do Mundo, que, obviamente, une. Se você pegar a história da Inglaterra e da França, e no mundo oriental o caso chinês, houve momentos em que a violência foi institucionalizada. No caso americano, no século 19, houve uma guerra civil entre escravocratas e não escravocratas. Esse é o eixo do caso brasileiro. Lá (EUA) eles tiveram guerra civil, e os escravocratas perderam. No Brasil não teve guerra civil nenhuma, e os escravocratas sempre ganharam. Somos uma sociedade com elementos de estabilidade extremamente fortes, a começar pela língua. Nós falamos a mesma língua, nos entendemos perfeitamente bem, não é como a Alemanha, que tem dialetos. Nossa sociedade foi fortemente disciplinada para ser uma coisa. São esses estereótipos: nós somos alegres, somos pacíficos, somos generosos e somos bonitos (risos). E somos mais brancos do que pretos, o que é um grande problema, porque não é verdade. A partir desses protestos em frente a quartéis pedindo golpe militar, que é um pedido contraditório para quem se diz democrata, é revelada a nossa dificuldade de aceitação das diferenças. E isso dentro de uma mentalidade que chamamos de democracia. Alguns dizem que a democracia está morrendo. Eu não concordo. Existem transformações da democracia. E não propriamente da democracia, mas do sistema capitalista como modo de produção. Esse modo de produção talvez tenha chegado ao seu limite. Ele está promovendo uma mudança que tem elementos extremamente positivos, como a tecnologia. Na área médica, da pesquisa, foi um progresso extraordinário que está nos permitindo viver mais e bem. Tudo isso é progresso. Talvez isso tudo sejam sintomas, ainda não percebidos de maneira completa, de uma nova era. Uma era com mais cuidado e consciência da fragilidade das nossas vidas.
O problema do Brasil é que a gente acha que ganhando uma eleição vai mudar o sistema político. Isso é muito grande. Ganhar a eleição não te facultou mudar tudo. Faculta a mudar determinados aspectos da política e da economia, mas não legitima o pensamento utópico de fazer uma transformação geral da sociedade.
O senhor aborda em seus textos, estabelecendo equivalências, a política e o futebol. A polarização é um produto comum das vertentes? Lula e Bolsonaro, ao polarizarem, alimentam as paixões dos seus adeptos, assim como os torcedores de Grêmio e Inter, por exemplo?
Acho que não. Não tem a mesma capacidade de aglutinação. Os planos são diferentes. O futebol tem uma coisa bacana que é o “acabou”. Por isso que a estabilidade econômica e educacional são importantes. Daqui a quatro anos você pode mudar o governante. Você não muda todo o sistema de governo. O problema brasileiro é que você tem a ideia de que vai mudar a sociedade inteira. Não vai. Você vai mudar o estilo de fazer. No futebol, quando um time perde, o que os jogadores fazem? Eles trocam as camisas. São profissionais. O problema do Brasil é que a gente acha que ganhando uma eleição vai mudar o sistema político. Isso é muito grande. Ganhar a eleição não te facultou mudar tudo. Faculta a mudar determinados aspectos da política e da economia, mas não legitima o pensamento utópico de fazer uma transformação geral da sociedade.
O senhor diz que podemos estar ingressando em uma nova era. Isso devido à revolução digital?
Sem dúvida. A maior revolução da minha vida foi o computador. E a oportunidade de manifestação de todos os tipos é absolutamente fundamental para essa nova era. Eu menciono a educação. O que é isso? Um mínimo de contrato em que você aprende nas escolas sobre o que é razoável transmitir. Uma espécie de contrato de limites. O que eu posso dizer anonimamente numa coisa que se chama Facebook ou Instagram? Quais mensagens posso colocar, até em função das posições que ocupo? Se sou um professor universitário, o que posso me permitir colocar como mensagem que vai atingir uma série de pessoas? Tem uma coisa interessante nos seres humanos que os antropólogos sabem: diferentemente dos animais, nós não temos instinto. Nós podemos ser tudo. Eu posso achar que sou um cara de 20 anos, pintar o cabelo e sair dando pinote. Posso virar um assassino violento, como tem acontecido em vários países. O que significa o “nós somos condenados à liberdade”? Nós não temos instinto. Um tigre não come capim. Nós podemos comer capim, carne, peixe. Nós comemos de tudo. Por isso nós ocupamos o planeta inteiro. A nossa responsabilidade como espécie é imensa. Quando você tem em mãos um instrumento que permite a você distribuir mensagens falsas, ideias erradas, de propósito, para confundir, é um risco enorme de destruir a própria humanidade. A sua humanidade em primeiro lugar e, depois, a dos outros, daqueles que estão à sua volta. A nova era é uma consciência maior da própria consciência, que nos permite ser qualquer coisa. Nós, humanos, não podemos viver num mundo fake. Como nós vivemos em um mundo em que a fantasia é tão importante quanto a realidade, temos de criar fantasias razoáveis. Esse é o ponto. Na política, o que é uma fantasia razoável? Se eu sou o governador do Estado, tem coisas que sonho fazer, mas muitas delas não poderei fazer. Não posso mudar a realidade totalmente. A nova era é a de um mundo mais integrado, mas ele precisa ser mais igualitário. A integração de uma sociedade, e isso os brasileiros não entenderam ainda, tem um elemento fundamental para se realizar que é o mínimo de diferenças. As diferenças vão continuar existindo, é óbvio. Nesse novo horizonte, vamos ter de pensar em solidariedade, em um pressuposto de mais igualdade material entre as pessoas e com ideia de limite. Imagina se houver um conflito atômico. Acaba o planeta. Isso é muito interessante: se você fizer tudo o que você quer, você morre. Se você for capaz de realizar todos os seus desejos, você morre. Se um país militarmente poderoso quiser tomar conta do mundo, ele acaba com o mundo.
A nova era é a de um mundo mais integrado, mas ele precisa ser mais igualitário. A integração de uma sociedade, e isso os brasileiros não entenderam ainda, tem um elemento fundamental para se realizar que é o mínimo de diferenças.
Isso que o senhor está abordando é a questão dos nossos limites?
Sim, os limites. Os limites ficam muito claros hoje e não são apenas de país ou de partido. São limites do próprio planeta. O planeta está falando. Não se pode queimar a Amazônia inteira. Essa atitude de leniência em relação às queimadas, dizer “não está queimando muito”... Você tem de encarar isso e ver o que está acontecendo. Nós temos responsabilidade com relação ao planeta. Essa consciência é nova. Estamos vivendo num mundo em que todas as sociedades humanas são atores. E precisamos da experiência de todas elas.
Tivemos em 2022 o bicentenário da Independência do Brasil. Em quais aspectos a sociedade evoluiu? E o que parece estagnado desde dom Pedro I?
Até hoje não discutimos o problema da escravidão no Brasil. Que sociedade é essa? Você era dono de gente que trabalhava na sua casa. Eu tenho empregada doméstica até hoje. Ninguém vive sem empregada. E o que são as empregadas domésticas? Tem semelhança com a escravidão? Essas discussões não são banais. São absolutamente fundamentais. É estilo de vida. Quem serve quem. Quem cuida de quem. Temos de confrontar isso. Nunca tivemos tanta consciência no Brasil de cor, de diferenças sociais, e ao mesmo tempo de acomodação.
Há uma crise de elevação nos casos de feminicídio. Ao mesmo tempo, a mulher conquista e amplia seus espaços na sociedade. Como a equação será resolvida?
É a questão da desigualdade. Quando entrei na faculdade, a desigualdade que aprendi era só a de classe. Mas não é só isso. É muito mais complicado. Tem desigualdade de gênero, de escolhas sexuais. A nova era, a configuração de um sistema que permite mais escolhas, tem consequências. As mulheres ganharam a possibilidade de trabalhar fora de casa. Ou seja, deixaram de fazer o trabalho que complementava o trabalho da escravidão, que era servir a mesa. A mãe servia a todos. Eu tinha uma família de seis irmãos. Mamãe fazia o prato de cada um, o do meu pai primeiro. Isso começou a mudar: cada um se serve. As mulheres começaram a fazer aquilo que os homens sempre fizeram. O que é o machismo brasileiro? Você tem de comer todas as mulheres do mundo. Isso está acabando. Mal você come uma. Se você está comendo uma, seja feliz. Há uma igualdade. As mulheres também estão comendo os homens. É isso que está levando a essas reações criminosas, bárbaras, do cara que esfaqueia a mulher na frente dos filhos. Porque ela está exercendo a liberdade dela.
Pesquisa recente mostrou que os evangélicos são 31% e os católicos, 50%. A tendência é os evangélicos crescerem e há uma inclinação mais fervorosa nesse segmento. A laicidade pode sofrer alguma transformação no país?
Os evangélicos têm obrigação de seguir de maneira mais consistente o sistema de crenças do que os católicos. Eu fui criado no catolicismo e não piso numa igreja tem um tempão. Nós já estamos sentindo o peso dos evangélicos. O catolicismo perdeu a hegemonia. Isso me parece claro. E tem outro elemento que é o mundo oriental. Tem uma coisa chamada China, Japão, Coreia do Norte e do Sul. E tem a Rússia. Cada um desses sistemas difunde valores e práticas sociais, como o evangelismo no Brasil. Um ensinamento radicalmente diferente do da Igreja Católica. Os desafios de entendimento são enormes. No caso brasileiro, não há a menor dúvida de que há uma ligação muito forte entre essas mudanças políticas, que chamamos de bolsonaristas, e o evangelismo. Não é que tenha relação direta, mas tem uma relação grande. Há muitas mensagens que caducaram. Uma delas é essa de que “vou conquistar o poder para mudar a sociedade”. Isso não existe. A ideia de mudança é muito mais complicada do que pensa nossa vã filosofia. São vários poderes e micropoderes. O que você viu nessa entrevista é um conjunto de incertezas. O momento é de enfrentar incertezas. E ter mais incertezas do que certezas é o certo.