Não há dia fácil no exercício do jornalismo. Em 2021, a Federação Nacional dos Jornalistas registrou 430 ataques à categoria. Os casos de violência grave cresceram 69% nos primeiros sete meses de 2022, segundo a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo. A hostilidade cresce também nos tribunais, com o aumento dos processos judiciais. Em grande parte dos casos, os alvos são comunicadores e pequenas empresas jornalísticas com recursos limitados. Foi para custear a defesa de quem não consegue arcar com as despesas de processos tão complexos que a advogada Taís Gasparian, 64 anos, fundou em 2021 o Instituto Tornavoz. Com 30 anos de atuação, ela identifica uma tentativa de censura e intimidação à imprensa em curso hoje. Sua obstinação foi reconhecida com o Prêmio Liberdade de Imprensa 2022 da Associação Nacional de Jornais, a ser entregue nesta quinta-feira (1º/12), em São Paulo. A seguir, Taís comenta esse cerco à imprensa e defende um debate amplo sobre a diferença entre opinião, crime e ofensa à honra.
O que motivou a criação de um instituto para ajudar jornalistas que são alvo de processos judiciais?
Advogo na área cível, defendendo veículos de mídia e jornalistas há mais de três décadas, e, nessa prática, percebi um aumento no número de processos contra jornalistas e principalmente veículos de mídia digital que surgiram de 2016 para cá. Em geral, são empresas jovens, pequenas, sem estrutura nem recursos, que precisam ter a defesa financiada. Existem diversas organizações dessas no mundo, mas no Brasil não havia nenhuma entidade que custeasse a defesa judicial desses comunicadores.
Como são os processos com os quais trabalha?
São processos que constrangem e ameaçam a liberdade de expressão. Muitas vezes os veículos ou os jornalistas ficam sabendo dos processos quando já existe ordem a ser cumprida, os prazos são muito curtos. Quando chega a intimação, uma liminar ou prazo de publicação de resposta, eles têm 24 ou 48 horas para cumprimento. Muitas vezes, até terem uma reação, o prazo se esgotou. Agora mesmo houve um caso de um jornalista do Maranhão que foi citado em 10 processos, cinco cíveis e cinco criminais, todos do mesmo autor e com providências a serem tomadas dois dias depois de ter recebido a citação. Ora, 10 processos é uma quantidade grande para qualquer um, imagine para um jornalista. É óbvio que o autor quer constranger, inibir o jornalista.
Com pedido de indenização também?
Sim, para atacar financeiramente. Jornalistas não são homens de negócios, não recebem boladas. Nesse caso do Maranhão, se o pedido de todos os processos for somado, o valor fica em torno de R$ 250 mil. Duvido que o patrimônio do jornalista possa suportar um risco desses. Ainda mais se considerarmos que terá de contratar advogados e arcar com os custos dos processos. É para fazer frente a esse tipo de situação que o Instituto Tornavoz foi criado.
Qual o perfil dos comunicadores perseguidos?
As mulheres foram muito atacadas nos últimos anos, e isso se refletiu no número de processos. Mas a maioria são jornalistas de veículos locais, que divulgam notícias da região. Há diversos recortes desses veículos. Alguns têm perfil geográfico, outros tratam de gênero, outros, de meio ambiente. Muitos são compostos por uma, duas, três pessoas, são pequenos, e a grande maioria sofreria para pagar uma defesa judicial. É muito importante que eles tenham uma defesa robusta, que possa dar sossego para que façam bem a sua atividade.
Por que vocês fazem questão de pagar a defesa e não prestar um serviço pro bono (voluntário, “pelo bem” público)?
Porque essa área da advocacia também precisa ser empoderada, precisa despertar o interesse dos advogados, para que não fiquem apenas na área trabalhista, criminal, civil, mas também se interessem pela liberdade de expressão de modo a terem o domínio dos argumentos. Trata-se de um estímulo à formação na área. Estamos formando uma rede de colaboradores que indicamos para o cliente, mas se ele já tiver um advogado nós o acolhemos e trabalhamos juntos, orientando e discutindo a estratégia de defesa.
E como o Judiciário tem reagido?
Vejo uma instrumentalização do Judiciário, mediante uso dos Juizados Especiais Cíveis. Esse tipo de procedimento tem características próprias, é mais ágil, verbal, tem poucos recursos e decisões rápidas. Contudo, não foi concebido para ações de indenização por danos morais decorrentes de reportagens, que em geral é a alegação dos autores. Foi concebido para facilitar o acesso ao Judiciário de consumidores que lutam contra grandes corporações. E, para tanto, há peculiaridades que tem por objetivo proteger o hipossuficiente, que seriam os consumidores. Quando aqueles que se sentiram ofendidos por reportagens usam esse procedimento, há uma total inversão dos papéis, porque no caso é o jornalista que é a parte fraca do processo, os hipossuficientes.
O Judiciário não é a melhor instância para discutir a liberdade de expressão. O Brasil deveria fazer uma ampla discussão com a participação da sociedade civil e de diversos outros setores sobre quais são as expressões que o país entende que devam ser permitidas.
Uma estratégia recorrente de intimidação de jornalistas é a abertura de processos por um mesmo motivo, às vezes nos mesmos termos, em diferentes cidades do país, para que o profissional gaste tempo e dinheiro na defesa. Isso ainda acontece muito?
Em menor grau agora, mas ocorre. Eu atuei num caso assim, movido por fiéis da Igreja Universal contra a jornalista Elvira Lobato. Ganhamos todas as ações. Mas, como eu disse, é uma inversão da finalidade do Juizado Especial Cível, porque nesse caso tivemos uma grande e poderosa organização, a Igreja Universal, instrumentalizando o judiciário, convocando fiéis a processar a jornalista. Também já aconteceu de CACs (caçadores, atiradores e colecionadores de armas) entrarem com processos contra um jornalista em diversas cidades espalhadas pelo país.
Como alterar esse cenário?
Nós entendemos que o Judiciário não é a melhor instância para discutir a liberdade de expressão. O Brasil deveria fazer uma ampla discussão com a participação da sociedade civil e de diversos outros setores sobre o que entendemos por liberdade de expressão, quais são as expressões que o país entende que devam ser permitidas. Isso seria útil. Mas o processo judicial não é a melhor forma de se resolver a questão.
Por quê?
Porque o Judiciário reproduz a sociedade, com pessoas de todos os matizes culturais, sociais e ideológicos. Como nunca tivemos por aqui uma ampla discussão sobre o assunto, as decisões judiciais são contraditórias. Nos Estados Unidos e na Europa, há um maior debate sobre o que entendem por liberdade de expressão. No Brasil ocorreu o contrário: a censura foi inaugurada antes da imprensa. Nosso histórico de censura é maior do que o de liberdade e temos uma jurisprudência oscilante. Mesmo nos Estados Unidos, onde as decisões também oscilam, é praticamente proibido um servidor público entrar com ação de indenização contra jornalista ou veículo de mídia. Não que seja proibido, mas é desencorajado, porque sempre perde, porque é consolidado o entendimento de que o funcionário público precisa dar satisfação à sociedade. Aqui, no Brasil, aqueles que mais processam jornalistas ou veículos são políticos e partidos, justamente aqueles que deveriam ter seus atos mais expostos.
Há quem diga que a melhor lei de imprensa é não ter lei de imprensa. É preciso aprimorar a legislação?
A legislação cível já dá conta de praticamente todas as questões. Por outro lado, entendo que calúnia, injúria e difamação deveriam deixar de ser crimes. Questões contra a honra deveriam ser resolvidas tão somente na esfera civil. Veja esse caso do Maranhão: são cinco processos criminais por ofensa contra a honra, partindo de uma pessoa pública, candidata a prefeito de uma cidade. Como um advogado poderia cuidar, pro bono, de cinco processos criminais?
Há muitos jornalistas gabaritados atuando de forma independente, com blogs ou canais em redes sociais, mas também há muitos aventureiros se dizendo jornalistas. A dispensa da formação em Jornalismo precarizou a atividade?
Não entendo que tenha sido isso. Quando caiu a exigência do diploma no Brasil, há mais de 10 anos, em muitos países já era assim. O que contribuiu para a precarização foi a desinformação, que nos pegou de assalto. É bom deixar claro: as pessoas podem expressar sua opinião. O que não podem é noticiar fatos falsos, falar de mamadeira em forma de pênis ou que a é Terra plana. Isso é falso, é mentira. Não se trata de jornalismo nem está abarcado pela liberdade de expressão.
Nessa profusão de comunicadores fazendo barulho em redes sociais, como o público pode filtrar os jornalistas sérios dos aventureiros que só fazem proselitismo político?
As pessoas devem buscar a fonte original de uma informação, sempre checar o que foi dito, ainda mais aquelas notícias que têm características de falsidade. O importante é ter fontes confiáveis. É complicado, mas o mundo está tendo de lidar com isso, não somente o Brasil.
O termo “liberdade de expressão” tem sido usado como escudo em ataques à Constituição, à democracia, às instituições e até mesmo para justificar declarações racistas, homofóbicas e de apologia ao nazismo. Qual o limite entre liberdade de expressão, ofensa e crime?
Vou dar minha opinião pessoal: entendo que todos têm direito a expressar sua opinião. Isso é liberdade de expressão. Mas toda declaração que constitua crime não está abarcada pela liberdade de expressão. Racismo é crime. Defesa do nazismo é crime. Há lei sobre isso. Você pode não gostar da lei, mas é o que temos.
É bom deixar claro: as pessoas podem expressar sua opinião. O que não podem é noticiar fatos falsos, falar de mamadeira em forma de pênis ou que a Terra plana. Isso é falso, é mentira. Não se trata de jornalismo, nem está abarcado pela liberdade de expressão.
Essa falta de clareza sobre o que é uma opinião, mesmo que polêmica, e o que é crime não confunde o público?
Sim, provoca confusão. Até porque a expressão “liberdade de expressão” foi sequestrada, foi capturada por quem não tem o menor interesse nem em liberdade, nem em expressão. Por isso eu digo que o país deveria discutir mais sobre esse tema. Não sei se o novo governo terá interesse, mas essa poderia ser uma boa pauta. Não necessariamente para produzir mais uma lei, mas para discutir, para que os cidadãos entendam melhor os conceitos e possam entender o que pode e o que que não pode ser dito, quais expressões são permitidas. Por exemplo: você pode criticar e atacar com palavras o Congresso, mas não pode jogar um avião no Congresso.
Há jornalista defendendo que o Exército prenda os ministros do Supremo Tribunal Federal.
Se essa for uma opinião ou uma reflexão, pode ser manifestada. Mas é necessário avaliar se a verbalização dessa reflexão pode gerar uma violência contra os ministros do Supremo, se tem o poder de catalisar perigo real e iminente aos ministros ou à quebra da ordem democrática. Se a manifestação da expressão não gerar esse risco e consistir em um ato isolado, a meu ver não há problema. No entanto, se tratar-se de um incitamento à quebra da ordem democrática, me parece que a verbalização não deve ser permitida. De modo geral, não é permitido o cometimento de crimes como misoginia, racismo, apologia ao nazismo ou quebra da ordem democrática.
Cresceu o número de processos contra jornalistas ou cresceu o número de jornalistas sem condições de custear a própria defesa?
Não sei dizer. O número de processos contra jornalistas cresceu muito. Agora, se os jornalistas ficaram mais pobres no decorrer do tempo, não sei. A internet democratizou a comunicação, isso é fato. Cresceu o número de veículos digitais, que não precisam imprimir papel. É mais barato montar um jornal digital do que um jornal impresso.
Há um aumento dos erros jornalísticos, falhas de apuração ou má conduta que justifique os processos contra os jornalistas?
Não me parece que essa seja a causa. Penso tratar-se de uma intimidação realmente, uma falta de compreensão do que é liberdade de expressão e do que o jornalismo se propõe. Jornalismo é crítica. Não tenha dúvida de que o Lula foi eleito e logo as críticas vão surgir. Aliás, já surgiram. O primeiro editorial no dia seguinte à eleição já trazia diversas críticas, e é esse o papel do jornalismo. É essa a vida democrática.
A informação é um instrumento de controle da cidadania. Quando a imprensa é apagada, quando é restringida de algum modo ou quando ela se autocensura, a sociedade perde a possibilidade de exercer o controle. Você elege os governantes e depois você tem que exercer o controle sobre o que está sendo feito. O silenciamento da imprensa deixa o cidadão sem esse poder.
Esses processos são um fenômeno brasileiro ou global?
É global. Nos Estados Unidos há um outro nome, strategic lawsuit against public participation, ou “processo estratégico contra a participação pública”. Ele forma a sigla Slapp, que não por acaso soa como a palavra slap, “bofetada”, “tapa” na cara. A Europa também está muito preocupada com isso. Mas lá é um perfil diferente do Brasil, mas voltado contra ambientalistas e ativistas sociais.
Como é que o jornalista pode reagir aos processos? Há uma forma de reagir?
A Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e a Associação Brasileira de Imprensa entraram com ações diretas de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal para que o Juizado Especial Cível não seja usado para assediar jornalistas.
Os processos acabam levando os jornalistas à autocensura?
Sim. Inibe, constrange e censura. Muitos jornalistas abandonam a profissão em função disso. As pessoas ficam com medo, inclusive de perder a própria vida, não só de produzir matérias jornalísticas.
O quanto a virulência do debate político verificada nos últimos anos contribui para esse ambiente de hostilidade ao trabalho da imprensa?
Não sei dizer o quanto, mas contribui bastante. Ser jornalista se tornou profissão de risco no Brasil e em muitos outros países.
Essas investidas contra a liberdade de imprensa fragilizam nossa democracia?
A imprensa traz à tona esses atos. A imprensa traz luz, isto é, ilumina atos que não são praticados às claras e os transforma em notícia. Ou seja, as pessoas têm informação. A informação é um instrumento de controle da cidadania. Não é o único, mas é um dos modos pelo qual os cidadãos têm controle sobre seus governantes. Quando a imprensa é apagada, quando é restringida de algum modo ou quando ela se autocensura, a sociedade perde a possibilidade de exercer o controle. E é essencial exercer o controle. Você elege os governantes e depois você tem que exercer o controle sobre o que está sendo feito. O silenciamento da imprensa deixa o cidadão sem esse poder.