Muitos dos secretários do Ministério da Economia têm formação liberal, como Geanluca Lorenzon, 30 anos, que deixou há poucos dias a Secretaria de Acompanhamento Econômico, Advocacia da Concorrência e Competitividade. Formado em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Lorenzon tem pós-graduação em Competitividade Global pela Georgetown University, de Washington DC (EUA). Antes, havia atuado como diretor de desburocratização da Secretaria Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital. Antes de entrar no governo, foi consultor de estratégia da Mckinsey, de 2017 a 2019.
Com passagem pelo instituto Mises Brasil como COO (chief operating officer, ou diretor de operações), referência ao economista liberal da chamada "escola austríaca", Lorenzon foi um dos autores da Lei da Liberdade Econômica. Atuou também na formulação da reforma administrativa, que avançou até ser travada para não criar conflito com os servidores federais. Nesta entrevista para o caderno DOC, Lorenzon pontua que o ideário liberal só pode ser aplicado em governos conforme "o apetite político de cada momento".
Quando assumiu, Guedes brincou que estava levando "Chicago Olds" para o governo, mas também tinha uma turma de jovens liberais, da qual você fez parte. Qual é o alcance e qual é o limite de um liberal no governo?
Liberais de verdade em Brasília mudaram o jogo do que era possível no Brasil. Ainda que tenhamos sido poucos, conseguimos ver o alcance com as maiores reformas microeconômicas desde 1988, resultados fiscais muito melhores que o esperado e um projeto de país de longo prazo, com investimentos já contratados para a próxima década. Já o limite, como em toda democracia, é o apetite político de cada momento.
A área de concorrência e competitividade é extremamente sensível, porque o mercado ainda tem muitas distorções. Qual é o grande desafio do Brasil neste tema?
Liberalizar os setores onde as empresas já estabelecidas ganham com a regulação atual que fecha a concorrência. O Brasil tem a maior carga regulatória do mundo e a penúltima posição em qualidade, conforme rankings internacionais. O resultado disso é que, em cada setor, somente grandes empresas conseguem arcar com os custos e restrições colocadas em leis e normas. Precisamos revogar essas normas, ao máximo possível, para permitir um verdadeiro mercado capitalista com novos competidores. Somente assim teremos bens e serviços acessíveis à maior parte da população, diminuindo a desigualdade e promovendo inclusão.
Às vezes, revogar só um pequeno trecho de uma lei já causa um ganho enorme ao país. Por exemplo, com a Lei de Liberdade Econômica conseguimos extinguir 10,3 milhões de alvarás e licenças para estabelecimentos de baixo risco.
Quais normas já saíram de cenário, com projetos como o "revogaço" e a Lei da Liberdade Econômica, e quais deveriam ser revogadas em futuro breve?
Pela primeira vez, executamos algo previsto em lei desde 1995: que todas as normas abaixo de decreto, como portarias, instruções normativas, resoluções - que realmente definem as questões econômicas - deveriam ser revisadas e consolidadas. Aliás, existem muitas leis de desburocratização que simplesmente não são implementadas, seria interessante se o Ministério Público também desse uma atenção a isso, especialmente em âmbito municipal, pois a burocracia dá margem para arbitrariedade e corrupção. Em nível federal, foram milhares de revogações até agora. Mas algumas são muito mais significativas que outras. Às vezes, revogar só um pequeno trecho de uma lei já causa um ganho enorme ao país. Por exemplo, com a Lei de Liberdade Econômica conseguimos extinguir 10,3 milhões de alvarás e licenças para estabelecimentos de baixo risco. Hoje você consegue consultar em seu cartão CNPJ se tem essa dispensa. Revogamos a limitação que impedia acessar serviços online, como declaração de imposto de renda pré-preenchida, transferência de veículos, assinatura digital de contratos, entre outras, que antes demandavam registros ou o caro certificado digital. Hoje, tudo está cada vez mais fácil. Leva tempo, mas estamos pela primeira vez avançando com passos largos.
Um fator crítico nessa área é a questão da competição global, que foi abordada pelo ministro Paulo Guedes em sua recente passagem pelo Rio Grande do Sul. Ele insistiu que é preciso abrir a economia sem expor em excesso a indústria nacional. Como deve ser graduada essa abertura?
Calibrando cada diminuição das tarifas de importação com redução do custo Brasil. Esse é um trabalho de décadas, mas demos o passo inicial. Por exemplo, é o primeiro governo da história que transformou o custo Brasil em um indicador de performance, sob o qual temos uma listagem do que deve ser feito e o exato valor que cada uma dessas ações reduz. Assim, conseguimos ir acompanhando o avanço e calibrando a abertura comercial, ainda que tenhamos oposição da Argentina.
Um dos temas em que você vinha atuando é igualmente sensível, o de regulação de jogos. Qual é exatamente o alcance dessa etapa, é apenas para apostas esportivas ou inclui os famosos 'jogos de azar', com liberação de cassinos?
Somente apostas esportivas virtuais. O Congresso definiu que esse mercado fosse regulado como um todo, e agora cabe ao governo executar essa diretiva.
Do ponto de vista liberal, qual o sentido dessa regulação?
Do ponto de vista liberal, quase nenhum. Mas a diretiva veio do Congresso, e deve ser cumprida rigorosamente.
Se regulações restritivas ajudassem as pessoas a tomar decisões melhores para si mesmas, o Brasil - com a maior carga regulatória do mundo - seria o paraíso da civilidade e respeito.
Como responde às críticas de que jogos e apostas podem ser um risco para os orçamentos familiares?
Essa é uma preocupação válida que levamos muito a sério, especialmente o impacto sobre as famílias. Mas os dados sugerem algo curioso. Se regulações restritivas ajudassem as pessoas a tomar decisões melhores para si mesmas, o Brasil - com a maior carga regulatória do mundo - seria o paraíso da civilidade e respeito.
Ainda há críticas pela forma como várias plataformas de apostas esportivas já atuam no Brasil, sem regulação, mas por uma brecha de legislação. Isso faz parte do processo ou houve falha regulatória?
O padrão mundial de ouro da regulação é aquela sempre baseada no que chamamos de uma falha real: primeiro você tem um problema, depois você o estuda, e somente após você regula - ainda que o problema seja meramente o risco de algo ruim acontecer. Óbvio que sempre existem exceções, mas no geral os países desenvolvidos seguem isso como princípio. Acredito que estamos, como Brasil, seguindo o caminho certo nesse sentido em relação a esse setor. Historicamente, foi sempre o contrário: primeiro regulávamos e engessávamos tudo, e depois tínhamos que voltar atrás, porque matávamos setores inteiros ou criávamos burocracias sufocantes que serviam pra criar oligopólios.
Existem estudos da indústria que sugerem que dezenas de medicamentos a que americanos e europeus têm acesso não são vendidos ao Brasil porque a maneira como tabelamos medicamentos é muito ruim. Estamos debruçados sobre uma proposta tratando disso, e talvez tenhamos novidades ainda neste ano.
Para não falar em situações específicas, quantas vezes iniciativas de algum tipo de controle de preços passaram por suas mãos?
Graças a Deus, aprendemos nos anos 1980 que controle de preços não funciona. Mas heranças anticientíficas de governos anteriores, neste caso do FHC, persistem com controles de preço na área de medicamentos, do qual temos que por lei definir o preço máximo de cada substância. No mais, toda vez que essa discussão surge, normalmente vinda do Congresso ou Judiciário, rapidamente agimos para impedir um retrocesso do tamanho dos fiscais do Sarney.
Existe alguma perspectiva de mudança no controle de preços de medicamentos?
Existem estudos da indústria que sugerem que dezenas de medicamentos a que americanos e europeus têm acesso não são vendidos ao Brasil porque a maneira como tabelamos medicamentos é muito ruim. Estamos debruçados sobre uma proposta tratando disso, e talvez tenhamos novidades ainda neste ano. Estamos falando de medicações que salvam vidas.
Qual é a sua posição sobre a venda de medicamentos isentos de prescrição (MIPs) em supermercados?
Nosso parecer oficial é 100% a favor que os MIPs estejam mais acessíveis a toda população. Vender MIPs em supermercado inclusive é um dos 1.008 quesitos objetivos de boa qualidade regulatória da OCDE. Quando algo é tão consolidado a ponto de ser uma recomendação explícita nesse nível, é porque tu sabes que as evidências estão muito bem fundamentadas. Além disso, em nossa breve experiência com a liberação no Brasil nos anos 1990, não foi vislumbrado nos dados o terrorismo que alguns fazem se as pessoas pudessem comprar aspirina no mercado da esquina. Venda de medicamentos online também é uma prática mundial que deve ser tendência e tem potencial enorme de redução de custos.
Estar na OCDE é isso: um reconhecimento de que o país é sério, que trabalha com dados e não ideologias.
A propósito, em que fase está o processo de adesão do Brasil à OCDE? O que já está bem encaminhado e quais os maiores desafios?
O Brasil é o país mais avançado quanto à implementação das recomendações da OCDE entre os países convidados a fazer parte da organização. Nosso desafio agora é continuar a implementação das demais recomendações. Temos mais algumas dezenas pela frente.
Qual é a vantagem da entrada do Brasil na OCDE?
Gosto de comparar a OCDE com um selo do ISO, ABNT ou Inmetro. Você não é obrigado, na maioria das vezes, a ter essas credenciais em seu negócio, produto ou serviço. Mas ter o reconhecimento desses selos demonstra que você faz aquilo com qualidade e profissionalismo. Estar na OCDE é isso: um reconhecimento de que o país é sério, que trabalha com dados e não ideologias.
Você tem formação liberal, com passagem inclusive pelo Instituto Mises. Qual é sua visão do liberalismo aplicado em países como o Brasil?
Quanto mais pobre um país, mais ele precisa do liberalismo, porque não pode se dar ao luxo de fazer intervenções custosas que deixam mais caro produzir e gerar emprego. É por isso que não podemos ficar copiando leis europeias para realidades brasileiras. Precisamos do liberalismo no Brasil hoje, mais do que nunca, para não termos a inflação argentina e a indústria venezuelana.
Se desejamos ajudar os mais necessitados, é muito melhor entregar valores diretamente a eles, em vez de o Estado tentar produzir e distribuir bens.
Desse ponto de vista, como se busca referência para aplicar ideias liberais no Brasil?
O Brasil é uma economia intervencionista tão anti-mercado que praticamente tudo de liberal que propomos é algo muito básico e difundido em outros países. Isso torna o trabalho de buscar referências muito mais fácil. O oposto também funciona: é só estudar a Argentina e fazer exatamente o contrário (risos).
Alguns liberais estão engajados, por exemplo, com o debate de uma renda mínima universal, inclusive por projetar um futuro de emprego declinante pela substituição de mão de obra humana por automação. Qual sua posição sobre o tema?
Antes das teorias liberais de Milton Friedman, talvez o maior dos chicaguistas, as políticas sociais deveriam ser o Estado tendo fábricas e produzindo comida, por exemplo. Após sua revolucionária teoria econômica, entendeu-se que, se desejamos ajudar os mais necessitados, é muito melhor entregar valores diretamente a eles, em vez de o Estado tentar produzir e distribuir bens. Foi assim que surgiram os vales do governo FHC, que depois viraram Bolsa Família e agora são o Auxílio Brasil. Nosso lema é que cada real para política social é melhor investido nesse tipo de programa do que em qualquer outro tipo de política. Mas não acredito que isso deva ir ao ponto de substituir empregos. De fato, estamos muito longe de a automação retirar empregos. Tendo trabalhado em consultoria de estratégia por alguns anos, lembro-me que os projetos que envolviam inteligência artificial eram os que mais geravam demanda por mão de obra, e não menos.
Mas essa mão de obra precisa de mais educação e mais treinamento. Como é possível preencher essa necessidade do Brasil atual?
Precisamos com urgência redefinir a forma como gastamos em Educação. O Brasil tem gasto com Educação de "primeiro mundo", mas quando vamos ver a realidade, é um dos que menos investe no ensino básico, ou seja, nas crianças. Uma fatia muito grande de dinheiro público vai para universidades que, em todo o mundo, atende somente a uma fatia da população. Se redirecionarmos nossa atenção ao básico, e darmos um enfoque especial aos cursos de ciência, tecnologia, engenharia e matemática, conhecidos internacionalmente como Stem, conseguiremos mudar o rumo desse barco.
As emendas de relator lembram as chamadas "omnibus bills": cada lei sai com, literalmente, milhares de páginas, contendo bondades para cada distrito do deputado ou senador que votou a favor de pacotão.
De todas as posições do liberalismo, qual a mais cara a você? E qual seria fundamental para o futuro do Brasil?
Como advogado, acredito que seja o controle do tamanho do Estado, especialmente para não virarmos uma Argentina já em 2023. De fato, precisamos amadurecer sobre o que significa tamanho do Estado. Quando, nas eleições, discutimos política econômica, só se fala de temas macro: responsabilidade fiscal, orçamento, emendas. Precisamos entender que outra grande parte da política econômica é o micro: normas que fazem o custo Brasil ser tão destruidor. Tenho orgulho de trabalhar no primeiro governo que tratou esse problema de maneira séria, e pela primeira vez quantificou o custo Brasil e traçou um processo com metas e projetos reais para a redução.
Como você vê as restrições fiscais do Brasil, dentro dessa perspectiva? E como encara, já que menciona orçamento e emendas, o atual formato das emendas de relator?
As restrições são dadas pelo modelo de gastança que herdamos de três décadas de social-democracia. Mas, aos poucos, estamos conseguindo estabelecer técnicas como gatilhos, metas e melhores práticas que estão mudando a realidade fiscal do país muito mais rápido do que se esperava. Os números estão aí. Quanto às emendas de relator, o Brasil sempre teve ferramentas para tentar harmonizar políticas públicas do executivo e do legislativo. Durante muito tempo, isso foi internalizado por meio da indicação política de ministérios - algo que este governo rompeu. Com isso, estamos vivendo um processo diferente: temos um Congresso mais autônomo e independente, muito similar ao presidencialismo americano, e que assim tem pauta própria, pois - ao contrário do parlamentarismo - Congresso e governo não são formados pelo mesmo voto. Falando nos americanos, notamos que as emendas de relator lembram as chamadas "omnibus bills": cada lei sai com, literalmente, milhares de páginas, contendo bondades para cada distrito do deputado ou senador que votou a favor de pacotão. Parece ser um efeito do presidencialismo. O Brasil não é o único nisso.