Na Porto Alegre dos anos 1970, um grupo de jovens confabulava para criar um dia destinado aos negros no Brasil. Eles não queriam o 13 de maio, data em que a Lei Áurea pôs fim à escravidão sem prever qualquer política pública que garantisse educação e trabalho aos recém-libertados. Queriam um dia para a sociedade refletir sobre a situação a que os africanos haviam sido submetidos ao serem retirados de sua terra para servirem aos brancos nas Américas – e as decorrências na vida de seus descendentes. Inspiraram-se na morte de Zumbi dos Palmares, líder quilombola e símbolo de resistência, e o 20 de novembro passou a ser nacionalmente conhecido como o Dia da Consciência Negra.
Esse grupo chamava-se Palmares. Antônio Carlos Côrtes era um aluno de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) que usava black power e lia sobre outros negros que entraram para a história. Aos 73 anos, é um dos únicos integrantes vivos do grupo e ainda espera que os negros possam ter a mesma qualidade de vida dos brancos. Ele concedeu a seguinte entrevista a GZH, lembrando da atuação do Palmares e refletindo sobre a condição de vida de negros e negras no Rio Grande do Sul e no Brasil.
O senhor tinha 23 anos quando se juntou a outros jovens negros para defender o 20 de novembro no lugar do 13 de maio como data comemorativa do movimento negro. Como se sentia? O que pensava?
Eu era um estudante de Direito da UFRGS e descobri que a Lei Áurea tinha dois artigos. Artigo 1: está abolida a escravidão no Brasil. Artigo 2: revogam-se as disposições em contrário. E a justificativa, que toda lei tem que ter? Não havia nenhuma. O que seria feito com aquele contingente imenso de escravizados? Seriam jogados na rua da amargura? Foi o que aconteceu. Era uma lei vazia. Levei isso para o grupo e nós debatemos. Me pediram para pesquisar a data de nascimento do Zumbi dos Palmares. No livro do Edison Carneiro (escritor baiano), O Quilombo dos Palmares (1958), encontrei a data da morte do Zumbi. Então falei: “’Vamos usar essa data como um marco”. Queríamos uma data escolhida por nós, e não pela historiografia oficial, que a gente sabia que nunca seria a nosso favor. A primeira reunião do grupo Palmares foi na casa do sogro do Oliveira Silveira, na Rua Tomaz Flores, mas também fazíamos reuniões na Rua da Praia, esquina com a Borges de Medeiros. Não sabíamos que, de certa forma, estávamos criando a Esquina Democrática.
Quem integrava o Grupo Palmares?
Eu, Oliveira Silveira, Ilmo Silva, Vilmar Nunes, Jorge Antônio dos Santos e Luiz Paulo Assis Santos. Nossa estratégia da época foi a seguinte: quatro botariam a cara para bater: eu, Oliveira, Ilmo e Vilmar. O Jorge e o Luiz Paulo ficariam ocultos. Se os quatro fossem eliminados pela ditadura, os outros dois dariam continuidade ao trabalho. Era um pacto que nós tínhamos. Dos quatro que botaram a cara, eu sou o único que está vivo. Mas também estão vivos o Luiz Paulo, com mais de 80 anos, e o Jorge, com 70 e poucos anos, e que agora mora em Salvador (BA). Tínhamos medo da ditadura, tanto que o Oliveira e eu fomos convidados a prestar depoimento. Queriam que a gente explicasse o que era o Grupo Palmares. Fizeram ligação com o Var-Palmares (grupo armado que se opunha à ditadura militar). Explicamos que estávamos fazendo pesquisas para reescrever a história do Brasil. Continuamos sendo vigiados, tanto que o Oliveira Silveira nunca conseguiu editora para seus livros. Ele mesmo se bancava.
Que situações de racismo o senhor já tinha vivido?
Todas. O meu pai, Egydio Ribeiro Côrtes, era muito culto, mas não teve oportunidades de evoluir. Era contínuo do departamento da loteria do Estado. Concomitantemente, trabalhava no porto como estivador. Três filhos pobres, negros. Ele tinha uma excelente formação no português, alguma coisa do inglês, tinha curso de datilografia. Ele se preparou, mas não tinha oportunidades. Sempre dizia para mim e para meus irmãos: “Levem os documentos. Para a polícia, todo negro é sempre suspeito”. Quando abria o jornal, ficava furioso com a parcialidade da mídia. Por exemplo, um assalto a banco: botavam lá que “quatro elementos e um negro”... Não davam a cor dos outros. Isso marcou muito a nossa infância e adolescência. Depois, fomos estudar no Colégio Nossa Senhora das Dores, uma escola de elite em Porto Alegre, mas nós estudamos com bolsa. Foi minha mãe, a Isolina dos Santos Côrtes, analfabeta, mas muito guerreira, que conseguiu a bolsa. Só que a escola não admitia dar três bolsas para uma mesma família, então propuseram que eu e meus irmãos chegássemos uma hora mais cedo para varrer o chão das salas de aula. Se a aula começava às 8h da manhã, a gente chegava às 7h e varria as salas de aula. Para nós, isso era uma diversão, éramos crianças. Mas alguns colegas brancos se sensibilizaram com aquilo e chegavam um pouco mais cedo para varrer. Entre eles, o teu colega de profissão, o jornalista Cláudio Brito. Foi solidariedade. Mais tarde, quando me candidatei para um emprego de redator em uma agência de publicidade, mandei uma carta de inscrição pelo correio e fui selecionado. Cheguei lá, havia cerca de 15 candidatos, e eu era o único negro. Pediram que fizéssemos uma redação e senti que me saí muito bem. Na outra semana, saiu o mesmo anúncio para a vaga de redator nessa agência, mas aí pediam fotografia do candidato. Ou seja, se um negro se inscrevesse, não iriam nem chamar. E também houve episódios lá na Faculdade de Direito da UFRGS. Éramos apenas dois negros. Meu colega negro acabou abandonando os estudos, porque não aguentou o que hoje se chama de bullying. Falavam que o negro era preguiçoso, que o negro atravancou o avanço do Brasil, essas coisas.
Foi em 1971 que vocês foram ao clube Marcílio Dias, no Menino Deus, para fazer a defesa do 20 de novembro. Até o jornalista Alexandre Garcia escreveu uma notinha no Jornal do Brasil. Como essa ideia se alastrou pelo país?
Essa notinha de três ou quatro linhas do Alexandre Garcia para o Jornal do Brasil chamou atenção. Dizia: “Negros do Sul dizem não ao 13 de maio e sim ao 20 de novembro de Zumbi”. Aqui, na imprensa local, nós não tínhamos espaço. Não saiu nada. Mas a notinha no jornal do Brasil foi o estopim. Nos anos 1980, o Movimento Negro Unificado (MNU) fez um grande evento em São Paulo no dia 20 de novembro, e depois em Salvador, na Bahia, que é nossa pequena África. Passou a ser a data do movimento negro. Tanto que hoje é feriado em mais de 1,5 mil cidades brasileiras – mas não em Porto Alegre.
O Hino Rio-Grandense precisa urgentemente ser alterado. Por que um povo escravizado não tem nenhuma virtude? O hino já sofreu quatro alterações, por que não pode sofrer uma quinta?
Existe resistência no Rio Grande do Sul em transformar o 20 de novembro em feriado? O senhor tem expectativa de que isso ainda possa se tornar realidade?
O governo federal precisa estabelecer essa data como feriado nacional. Em Porto Alegre, os comerciantes sempre vão defender que só pode haver quatro feriados religiosos, e eles dizem que esses quatro estão preenchidos. Então, não tem chance. É isso o que argumentaram, e o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul acolheu essa inconstitucionalidade. No governo Dilma Rousseff, foi reconhecido o 20 de novembro como Dia da Consciência Negra, como data reflexiva, sem ser feriado. Então acho que agora cabe criar um feriado nacional. Aí está a importância do Ministério dos Povos Originários, que o Lula diz que vai criar.
Apesar desse feito histórico, nenhum dos integrantes do Grupo Palmares virou nome de rua em Porto Alegre. Como o senhor lida com isso? Entende como falta de reconhecimento?
Sem dúvida nenhuma. Isso comprova que o Rio Grande do Sul já ultrapassou Santa Catarina, que era o Estado mais racista do Brasil. Hoje, o Rio Grande do Sul é o Estado mais racista do Brasil. O assassinato do Beto no Carrefour (João Alberto Silveira Freitas, espancado até a morte por seguranças do supermercado, em 2020), o que aconteceu com o cantor Seu Jorge agora... Quando há oportunidade de estar em um coletivo, eles (brancos) tiram a máscara e, em grupo, são covardes. Avançam, fazem de tudo. Começam a imitar macacos. No futebol, onde os negros são destaque, aquele negro que resolve as coisas dentro do campo não serve para ficar na casamata como treinador. O Didi, campeão do mundo em 1958 e que se destacou como jogador, foi inclusive técnico do Peru, mas nunca foi sequer cogitado para ser treinador na Seleção Brasileira. Aqui mesmo, no Rio Grande do Sul, o Louruz (Valmir Louruz) foi campeão da Copa do Brasil pelo Juventude, mas não conseguiu deslanchar como treinador. O próprio Roger (Machado), pelo fato de ser um negro assumido, e mesmo com toda competência dele... Ele elevou o Grêmio da segunda divisão para a primeira divisão, e quase no final tiraram ele para botar o Renato (Portaluppi). Como dizia o sociólogo Clóvis Moura: o negro é excelente escravo, mas de repente passou a ser mau cidadão.
Ao contar sobre a lida do campo, não colocam que o negro foi peão, foi laçador, fez todas as atividades. Por que o negro não está na história do RS? É preciso reescrever essa história, repor essa verdade.
O movimento negro diz que é preciso reconhecer que houve traição aos escravizados que lutaram na Revolução Farroupilha em troca de liberdade, mas foram covardemente exterminados. Existe meios de pacificar a vontade de celebrar a Revolução Farroupilha com a reivindicação da militância negra que pede que o Massacre dos Porongos seja reconhecido?
Começaria pela alteração do Hino Rio-Grandense, naquele trecho que diz: “Povo que não tem virtude acaba por ser escravo”. Isso precisa urgentemente ser alterado. Por que um povo escravizado não tem nenhuma virtude? E o índio? Por que o índio não pode ter virtudes? Esse ranço de racismo presente no hino é o espelho desse Estado racista que é o Rio Grande do Sul. Façam um concurso para que os poetas apresentem sugestões. O Hino Rio-Grandense já sofreu quatro alterações, por que não pode sofrer uma quinta? Mas tem que ser iniciativa da Assembleia Legislativa do Estado. Um deputado tem que fazer a proposição, os demais deputados aprovam e aí vai para o governador sancionar. Espero que a bancada negra eleita, o Matheus Gomes (PSOL), a Bruna Rodrigues (PCdoB) e a Laura Sito (PT), todos eleitos deputados estaduais, possa sensibilizar os demais. Historiadores acreditados como o Moacyr Flores (estudioso da Revolução Farroupilha) não têm dúvida: houve massacre, sim. Os negros foram traídos porque foi prometido que, se eles fossem lutar, seriam libertados, e não foram. Pelo contrário, foram dizimados. Cada negro escravizado que colocavam na frente de batalha era para que quatro brancos não fossem para a guerra. O (historiador) Décio Freitas dizia: a história é sempre escrita pelos vencedores. Aqui não é diferente. Ao contar sobre a lida do campo, não colocam que o negro foi peão, foi laçador, fez todas as atividades. Por que o negro não está na história do RS? É preciso reescrever essa história, repor essa verdade.
O senhor tem visto intenção do movimento tradicionalista em acolher essa reivindicação?
Existe uma resistência. Mas temos cantores premiados nos festivais nativistas, como César Passarinho, Ivo Fraga, Lúcia Helena, Loma, todos eles negros e inseridos na cultura tradicionalista. Aquela mão preta e branca, símbolo da Sociedade Floresta Aurora (clube negro mais antigo do Brasil, fundado em Porto Alegre, e que agora completa 150 anos), está ali. Os negros estão abertos para o diálogo, mas encontram resistência.
Uma das principais instituições de preservação da cultura afro-brasileira, a Fundação Palmares foi ocupada por Sérgio Camargo, que negava que existia racismo. Como o senhor se sentiu ao ver um negro assumindo esse posicionamento? Ele deslustrou a origem dele. O pai dele, Oswaldo de Camargo (poeta e jornalista), é um militante do movimento negro bastante envolvido. Nem todos são perfeitos, nem todos têm consciência. A resposta a isso foi a sua não eleição a deputado federal (Camargo concorreu pelo PL e recebeu pouco mais de 13 mil votos). Foi uma resposta da comunidade negra, que mostrou que não apoia seus atos. Vejo com pena e com tristeza a sua passagem pela Fundação Palmares. Mas ele deu eco a um período negacionista e segregacionista desse governo que está aí. As urnas responderam.
Há pessoas no Brasil que falam do racismo reverso, quando o negro pratica discriminação contra o branco. O que o senhor pensa sobre isso?
Acho um absurdo, uma falta de conhecimento. Só pratica racismo quem está no polo ativo de poder. Quem está no polo passivo sofre. Quem está no polo passivo não tem como praticar discriminação. Quem fala em racismo reverso desconhece a história, deixa-se levar por uma conclusão falsa. Não tem como existir isso. E os casos de negros sendo racistas com negros é porque são pessoas que se embaraçam com sua própria cor e querem agir como brancos.
O senhor diz que o Rio Grande do Sul é o estado mais racista do Brasil. Ao mesmo tempo, o próximo ano terá a maior bancada negra na Assembleia Legislativa. Como se deu essa conquista?
Na data de hoje, 3 de novembro de 1930 (a entrevista foi realizada no dia 3 de novembro), foi permitido o voto da mulher no Brasil. Diziam que a mulher era burra, que não tinha competência para votar. O mesmo se deu com relação aos negros. Diziam que negro não votava em negro. Uma mentira repetida muitas vezes passa a ser verdade. Tivemos exceções que se elegeram, como Carlos Santos (primeiro deputado negro do RS) e o governador Alceu Collares (único governador negro do RS), além do senador Paulo Paim. Com o tempo, os negros começaram a se dar conta que, unindo-se, poderiam eleger mais negros. Para eleger essa bancada negra na Câmara de Vereadores, foi feito um trabalho silencioso por um grupo que há muito tempo lutava por isso. É o que o Obama diz: Sim, nós podemos. O trabalho coletivo está presente.
Só pratica racismo quem está no polo ativo de poder. Quem está no polo passivo sofre. Quem fala em racismo reverso desconhece a história.
Como o senhor enxerga o racismo no Brasil hoje e no passado? Avançamos em algo?
Houve avanços, mas poucos. A Lei 10.639 prega o ensino da história e da cultura afro-brasileira em sala de aula. Por que existe essa lei? Porque o negro não existia nas páginas dos livros de História do Brasil. O negro é colocado como escravizado e pronto. É negada a contribuição do negro na cultura do café, na cana-de-açúcar, no linho cânhamo, nas charqueadas. A economia do Brasil se baseou nisso. E as cotas raciais? Há pessoas que são contra. Por quê? São a favor da permanência 100% do branco. Mas quem nesse país foi escravizado? As cotas raciais são uma ferramenta. Os EUA conseguiram avançar por conta das cotas. As cotas são de uma importância fundamental para reduzir o fosso da desigualdade social. Falando sobre representatividade, quantos governadores negros teve a Bahia, estado em que a maioria da população é negra? Nenhum. Não deixam o negro chegar lá. Se tu ligar a televisão, parece que tu está em Helsinki (capital da Finlândia). As exceções são a Maju Coutinho e o Heraldo Pereira. Aqui mesmo, nas emissoras do Rio Grande do Sul, tem a Fernanda Nascimento (repórter da RBS TV) e a Liliane Pereira (repórter da Record TV), e só. A criança negra precisa se enxergar. Não basta dar uma boneca negra para ela. A criança negra precisa ver um professor negro, uma atriz negra. Precisa frequentar uma sociedade de negros. Sou da teoria que temos que ocupar todos os espaços. Onde tem oportunidade eu meto a cara. Se me dizem que tem um local que não atende bem ao negro, então eu vou lá.
As cotas raciais nas universidades foram implementadas durante os governos petistas. Qual é sua expectativa com a volta de Lula à presidência nesse sentido?
Sou do PDT, do trabalhismo do Getúlio, do Jango, do Brizola. Arrumei briga no meu partido porque apoiei o Lula já no primeiro turno. A primeira meta era afastar Bolsonaro, por tudo o que fez de negativo para os negros. Tinha que tirar esse governo com os Sérgios Camargos da vida. Vejo que o projeto do Ciro Gomes era o melhor para o país, era muito qualificado. Mas ele não teve capacidade de comunicar isso. Então eu tenho, com o governo do Lula, a esperança de ver os negros ocupando espaços, além de ver a diminuição do desemprego e da fome e da volta do investimento em educação. A Coreia do Sul hoje é uma potência porque criou projetos na educação. A base de tudo é a educação, algo que o Darcy Ribeiro pregava com muita força, a mesma luta pela educação que fez o Brizola construir, aqui no Estado, as escolas de tempo integral. Nosso país só vai crescer de fato se houver educação. E a comunidade negra precisa ter oportunidades de estudar. Recebo mensagem de negros dizendo que foram estudar Direito porque se inspiraram em mim. É aquela música do João Nogueira: “E o meu medo maior é o espelho se quebrar”. O espelho não pode se quebrar. E que haja amor no coração das pessoas. Quem tiver amor no coração, não vai segregar, não vai ter preconceito.