Na semana em que a morte de João Alberto Silveira Freitas, conhecido como Beto, 40 anos, em uma unidade do hipermercado Carrefour, na zona norte de Porto Alegre, completa dois anos, a Justiça determinou que os seis réus pelo crime devem ir a júri. A decisão da juíza Lourdes Helena Pacheco da Silva, titular do 2º Juizado da 2ª Vara do Júri do Foro Central da Comarca da Capital, foi divulgada pelo Tribunal de Justiça do Estado (TJRS) nesta quinta-feira (17).
Os réus Kleiton Silva Santos, Magno Braz Borges, Adriana Alves Dutra, Giovane Gaspar da Silva, Paulo Francisco da Silva, Rafael Rezende são acusados de homicídio triplamente qualificado (motivo torpe, meio cruel e recurso que dificultou a defesa da vítima). A juíza manteve a prisão de Magno (funcionário na época da empresa de segurança terceirizada Vector), de Giovane (ex-PM temporária) e de Adriana (que está em prisão domiciliar após a defesa apresentar motivos médicos). Cabe recurso da decisão.
Em dezembro de 2020, a Polícia Civil concluiu o inquérito. Beto foi morto por espancamento no estacionamento do hipermercado no bairro Passo D'Areia no dia 19 de novembro de 2020, véspera do dia da Consciência Negra. A reação de seguranças e funcionários foi filmada e divulgada na internet, gerando diversas manifestações e acusações de que o homem negro havia sido vítima de preconceito racial.
Na época, a delegada Roberta Bertoldo, responsável pelo caso, salientou que o racismo estrutural presente na sociedade naturaliza a violência contra pessoas negras. O Ministério Público (MP) denunciou os seis indiciados por homicídio triplamente qualificado, com motivo torpe, uso de meio cruel e recurso que impossibilitou a defesa da vítima.
A decisão
A juíza Lourdes Helena Pacheco da Silva entendeu que a materialidade para sua decisão está nos laudos que apontam que João Alberto foi morto por asfixia mecânica por sufocação indireta. Ela não acolheu a tese de legítima defesa apresentada pela defesa do ex-PM Giovane Gaspar da Silva, alegando que João Alberto teria dado início ao embate desferindo um soco.
"Sabendo-se que um dos requisitos da legítima defesa é 'o uso moderado dos meios necessários', não se pode considerar que tenha havido moderação no 'revide' aplicado por Giovane e Magno à suposta injusta agressão de João Alberto. Ausente a moderação, surge a figura do excesso e a exclusão da exculpante", afirmou a Juíza.
A magistrada também rejeitou a alegação da defesa de Magno de que o mesmo não agiu com dolo, pois, mesmo ouvindo os pedidos da vítima para que a deixassem respirar, além das advertências dos populares presentes, manteve João Alberto contido, obstruindo a sua respiração.
Já a defesa de Adrina pediu sua absolvição sumária alegando que ela não teria ascendência hierárquica sobre os demais. A magistrada alegou que a ré contribui para o conflito que culminou no crime quando orientou que Magno acompanhasse a vítima para fora do mercado. "Adriana permitiu que o processo de contenção e subjugação da vítima continuasse, mesmo diante dos clamores desta para poder respirar, em paralelo aos pedidos dos populares de que cessassem as ações de contenção por parte de Magno, Giovane e demais réus", afirmou a juíza.
Na avaliação da juíza Lourdes Helena, Kleiton, Rafael e Paulo aderiram às agressões de Magno e Giovane contra Beto, sob o comando de Adriana. "Assim, tenho que não somente Adriana agiu para criar o risco de ocorrência do resultado final, mas também Kleiton, Rafael e Paulo Francisco, na medida em que se aliaram às ações comissivas e, principalmente, às omissivas de Adriana, e, com isto, também deveriam ter agido para impedir o resultado morte, não lhes sendo dado permanecerem inertes enquanto a vítima se asfixiava", disse a juíza.
O que dizem as defesas
Em maio deste ano, os réus prestaram depoimento à Justiça. Na ocasião, o segurança Magno Braz Borges alegou que a intenção nunca foi a de matar João Alberto. Hoje, ele segue detido na Penitenciária de Alta Segurança de Charqueadas (Pasc). O advogado dele, Jairo Cutinski, afirmou, antes da divulgação da decisão da juíza, que entrou com pedido para que o cliente responda em liberdade:
— Passados dois anos não se justifica mais manter a prisão.
Um dos representantes da defesa do ex-PM Giovane Gaspar da Silva e do funcionário Rafael Rezende (que responde em liberdade), o advogado David Leal também tenta reverter a prisão do ex-brigadiano, que está no presídio da BM.
— Não há motivo para ele permanecer preso preventivamente — argumenta.
Em prisão domiciliar por questões de saúde, Adriana Alves Dutra segue fazendo tratamento para uma bactéria nos rins. Segundo o advogado Pedro Catão, ela foi demitida do Carrefour enquanto estava presa. A defesa sustenta que não há elementos que justifiquem que a ex-funcionária vá a júri e adiantou que recorrerá da decisão.
— A minha estratégia foi de dar voz ao vídeo das câmeras de segurança, que era algo que realmente faltava, porque as câmeras de segurança só gravaram, não tinha áudio. E por meio disso, em vários momentos, Adriana pediu para falar, proferiu algumas palavras, pedindo para que parassem e tentou intervir — diz o advogado.
O funcionário Kleiton Silva Santos responde em liberdade e está trabalhando em outro local após a demissão do hipermercado, conforme o advogado Marcio Hartmann. A defesa adota a tese de que o ex-funcionário cometeu um erro determinado por um terceiro.
— Kleiton estava fazendo o trabalho dele na parte superior do Carrefour no dia dos fatos e foi chamado pela Adriana Alves Dutra para apoiar os colegas. Quando ele chega à cena do crime, se depara com aquela situação e recebe a ordem direto do Carrefour através da Adriana para ajudar a segurar a vítima. Não sabia o que estava correndo — alega Hartmann.
A defesa de Paulo Francisco da Silva encaminhou uma nota a GZH, antes da divulgação da decisão da juíza, afirmando que esperar que o funcionário fosse impronunciado, ou seja, não fosse a júri, “uma vez que não vieram aos autos quaisquer provas indicando, minimamente, que Paulo teria participado dos fatos apurados”.
A manifestação ainda reitera que “Paulo foi chamado via rádio, seguindo ordens de seus superiores hierárquicos, e chegou ao local dos fatos já ao final do desenrolar de toda a situação. Em momento algum agrediu ou mesmo tocou a vítima, exceto quando foi verificar seus sinais, a fim de prestar os primeiros socorros”.
Empresa de segurança busca práticas antirracistas
Em nota enviada a GZH, a empresa Vector afirma que tem se colocado à disposição da Justiça para, “diante de um fato sem precedentes no histórico da empresa, atuar na reparação por danos sociais e morais de alcance coletivo”.
O grupo salientou que “ampliou seu olhar sobre diversidade e combate a qualquer tipo de preconceito” e que tem trabalhado ativamente em seus processos de seleção, treinamento e suporte psicológico, e também com novos protocolos de segurança para reforçar o compromisso com a garantia do bem-estar público.
A empresa assinou um termo de ajustamento de conduta (TAC) com a Defensoria Pública do Estado, Educafro - Educação e cidadania de afrodescendentes e carentes e Centro Santo Dias de Direitos Humanos, uma associação civil sem fins lucrativos. Em razão do acordo, a Defensoria está selecionando famílias residentes do bairro Passo D’Areia, em Porto Alegre, formadas por pessoas negras, para o recebimento de bolsas de meio turno em escolas de educação infantil e para o recebimento de cestas básicas.
Até agora, o investimento em ações sociais foi de quase R$ 1,8 milhão. Entre as iniciativas, estão distribuição de bolsas de permanência e alimentação para acolhimento de crianças de famílias afrodescendentes em creches, a pessoas afrodescendentes estudantes em graduação, e compra de cestas básicas a serem distribuídas mensalmente. O total de investimentos em ações sociais e educacionais, com finalidade de promoção pela igualdade racial será de aproximadamente R$ 3 milhões.
A Vector também criou uma ouvidoria independente, destinada ao acolhimento dos casos de racismo, violência e/ou discriminação, e diz que está promovendo e prevendo mais campanhas internas e externas de combate ao racismo estrutural e promoção de práticas antirracistas.
Carrefour também tem mudanças internas e projetos sociais
Em junho de 2021, o Carrefour assinou um termo de ajustamento de conduta (TAC) prevendo o investimento de R$ 115 milhões em ações de enfrentamento ao racismo. Segundo a empresa, a partir das propostas de um comitê externo independente, foi elaborado um plano de ação de curto, médio e longo prazos estruturado em cinco pontos: “tolerância zero ao racismo e à discriminação, transformação radical do modelo de segurança do Grupo Carrefour Brasil, divulgação da política de tolerância zero à discriminação, mecanismo de denúncia de preconceito e discriminação e punições e/ou sanções disciplinares para caso de descumprimento das políticas”.
“Não basta as marcas dizerem que não toleram qualquer tipo de discriminação. É preciso construir ações concretas que impactem positivamente a sociedade. Também é preciso ter estruturas e processos para que as pessoas que ingressam na companhia entendam rapidamente os seus valores, e que é inegociável e intolerável qualquer tipo de discriminação. Da mesma forma, deve-se estimular que essas reflexões sejam levadas para além do ambiente corporativo”, diz a empresa, em nota.
Entre as ações, estão o fomento a pequenos negócios de afroempreendedores, com inclusão de seus produtos ao portfólio de lojas físicas e marketplace, e contratações de trabalhadores negros. Também foi alterado o modelo de atuação de seguranças, que passou a ser orientado pelo acolhimento aos clientes, na valorização dos direitos humanos e o combate à discriminação. Em agosto deste ano, foi publicado um edital para concessão de bolsas de estudo no valor de R$ 68 milhões para pessoas negras.
O Carrefour também cita ações que não estão incluídas no TAC, como doação de tíquete refeição para 240 mil pessoas, treinamento em diversidade de 40 mil pessoas, letramento racial para 150 mil colaboradores e grafite em 14 lojas e quatro centros de distribuição, entre outras.