Mais de um ano depois do assassinato de João Alberto Silveira Freitas, o Beto, à época com 40 anos, em uma unidade do hipermercado Carrefour, na zona norte de Porto Alegre, a empresa segue trabalhando na reconstrução de comportamentos e culturas.
Boa parte como consequência do acordo de R$ 115 milhões entre o grupo Carrefour e entidades como ministérios públicos estadual e federal, Ministério Público do Trabalho, defensorias públicas do Estado e da União, além de Educafro e Centro Santo Dias. O valor será aplicado ao longo de três anos em uma série de ações divulgadas pela empresa. Entre as iniciativas mais recentes, está um conjunto de editais direcionados ao estímulo à equidade racial e ao empreendedorismo negro.
Os resultados, divulgados no final de outubro, mostraram quatro entidades gaúchas contempladas. Serão distribuídos R$ 2 milhões no período de um ano para 38 entidades de todo o país. Deste total, R$ 210 mil serão destinados as quatro instituições selecionadas no Rio Grande do Sul. Foram três editais que tiveram vencedores no Estado, um que visa auxílio a iniciativas de fomento ao empreendedorismo negro, outro de combate ao racismo e à discriminação, e um de fortalecimento institucional de organizações afro-brasileiras da sociedade civil.
Um dos vencedores é a Sociedade Floresta Aurora. Entidade social, beneficente e recreativa com quase 150 anos de história, criada antes mesmo da abolição da escravidão. Assessora de planejamento, Nereidy Alves cita que houve uma importante discussão sobre a participação ou não da Floresta Aurora na concorrência aos editais.
Como os editais são consequência do ocorrido com João Alberto, houve profunda reflexão entre os membros da sociedade. Mas o entendimento de que o edital não sinaliza qualquer parceria e ainda fomenta a possibilidade de um auxílio à entidade foram fatores que confirmaram a entrada da Floresta Aurora no certame.
— Infelizmente, só surgiu essa oportunidade em cima de um fato trágico que chocou o Brasil e o mundo. Tomamos conhecimento da criação de um comitê independente pela empresa, com muitas lideranças negras envolvidas para criar esse plano de ações antirracistas. Também balizados pela qualidade deste comitê, nos inscrevemos — explica Nereidy.
O edital vencido pela Floresta Aurora foi o de fortalecimento institucional de organizações afro-brasileiras da sociedade civil. Com a verba, Nereidy conta que a direção escolheu por melhorar questões de segurança da sede. A construção de um muro de proteção, a reforma da rede elétrica e a complementação de itens do PPCI da entidade estão entre os itens postos em prática.
— A partir dessa revitalização, seguimos gerando a nossa subsistência, com a sede continuando a receber nosso público — diz Nereidy.
Combate ao racismo no futebol
No edital de combate ao racismo e à discriminação, o vencedor do RS foi o Observatório da Discriminação Racial no Futebol. Liderado por Marcelo Carvalho, é um projeto que acredita no futebol como um importante instrumento de inclusão social e de luta contra a violência e a discriminação racial. Com base nisso, utiliza a força do esporte mais popular do Brasil para debater, alertar e conscientizar sobre a discriminação racial no futebol.
Desde a criação, em 2014, mais de 200 casos de discriminação racial já foram monitorados pela entidade no país. Todas as esferas do futebol são acompanhadas pela entidade, da várzea à Série A do Campeonato Brasileiro. Na inscrição no edital, a ideia era usar a verba na publicação do relatório de discriminação racial no esporte de 2021. Todo ano, a entidade publica uma edição. Mas a pandemia atrasou a saída dos vencedores do edital e o relatório acabou sendo publicado antes. Agora, a ideia é fazer um relatório especial.
— Estamos alinhando junto aos organizadores do edital para fazer essa destinação — conta Marcelo.
Sonho realizado nas Ilhas
Nascida em 1999, a Associação Escola de Samba Afro Cultural Unidos do Pôr do Sol é umas das entidades que luta pela valorização do povo negro no Arquipélago, bairro que reúne as ilhas de Porto Alegre. Liderada por Beatriz Pereira há oito anos, a entidade conhecida como Afrosol é responsável pela organização de diversas oficinas direcionadas aos moradores da região. Desde música, artesanato até palestras sobre economia popular. Só que, ao longo dos anos de história, isso dependeu exclusivamente de doações e parcerias.
A Afrosol não tem sede própria e, por isso, divide espaço com o Quilombo da Resistência, outro ponto tradicional da região. Na pandemia, a associação, com auxílio de parceiros, conseguiu ajudar cerca de 1.500 moradores das ilhas com alimentos.
— Sempre sonhamos em ter algum projeto, mas não tínhamos oportunidade. Esse edital surge de uma situação infeliz, que foi o assassinato do Beto. E nós entendemos isso como uma maneira de reparação. Mas, é importante que as empresas façam isso por vontade própria, não só quando acontece uma tragédia — pontua Beatriz.
Recentemente, uma oficina de economia popular já foi organizada com a verba do edital. A entidade foi contemplada na concorrência de fortalecimento institucional de organizações afro-brasileiras da sociedade civil, assim como a Sociedade Floresta Aurora. Além de oficinas voltadas para a comunidade, Beatriz projeta que o grupo poderá adquirir materiais de trabalho, como instrumentos, microfones, caixas de som, entre outros, que hoje dependem de empréstimo de outros grupos.
Fomente ao empreendorismo
Outra instituição gaúcha selecionada no edital foi o coletivo Negras Plurais, que é uma startup responsável por assessorar e impulsionar projetos de mulheres negras no mercado econômico. O grupo foi contemplado no certame de auxílio a iniciativas de fomento ao empreendedorismo negro. A entidade preferiu não se manifestar sobre a ligação com o edital, mas confirmou que a verba foi utilizada na organização de um evento realizado em novembro.
Batizado de 1° Encontro de Afetividades Negras, o evento gratuito, que surgiu para amenizar os impactos da pandemia, ocorreu no dia 26 de novembro. Conforme o Portal Gelédes, foram 12 horas de conteúdo online.