A PEC da Transição, que depois de aprovada criou espaço fiscal para arcar com despesas antes sem previsão, abriu as comportas do orçamento público federal para o próximo ano. De acordo com o texto aprovado pelo Congresso, o primeiro ano da nova gestão de Luiz Inácio Lula da Silva na Presidência terá déficit de R$ 231,5 bilhões nas contas da União, o que extrapola a estimativa de R$ 63,7 bilhões contida na proposta original. O cálculo considera a soma de todas as receitas menos as despesas, com exceção dos juros da dívida.
Com o cenário, o economista e ex-diretor do Banco Central (BC) Alexandre Schwartsman explica que o desequilíbrio demandará juros em níveis mais elevados para compensar o risco assumido por investidores dispostos a alocar recursos no Brasil, assim como para conter as pressões adicionais ao ambiente de inflação externo e doméstico. Em consequência, amplia-se a retração da atividade econômica, puxa-se para baixo a geração de emprego e a renda média nacional, e a tendência aponta para um atraso para a retomada de crescimento consistente do Produto Interno Bruto (PIB) do país.
— É uma situação complicada de endividamento. Mas não há surpresa, era pedra cantada que, independentemente de quem vencesse as eleições, teríamos uma baita expansão fiscal. Vamos conviver por mais tempo com inflação, juros e dólar mais altos — resume.
Não bastassem esses fatores, para contornar o problema, comenta Schwartsman, a nova equipe econômica, liderada pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, terá de aumentar a carga tributária se quiser tapar, ao menos, parcialmente o furo. Mais imposto também é sinônimo de freio para os investimentos, lembra o economista:
O plano, se é que dá para chamar assim, é estancar em parte (o déficit) com impostos. A ideia é apresentar à sociedade esse gasto como fato decorrido. Em certo sentido, é o inverso da estratégia de Ronald Reagan, na década de 1980, nos Estados Unidos, quando reduziu tributos para supostamente forçar o corte de gastos e não deu certo por lá. Aqui, vão forçar a ampliação de gastos para eventualmente aumentar impostos. Se vai dar certo é algo a ser visto no decorrer do ano.
Negociação
Doutor em Economia pela Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV/Ibre), Samuel Pessôa avalia que Lula criou um problema para sua própria resolução. Ele afirma que não há escapatória: além de elevar a carga tributária, que já equivale a mais de um terço do PIB nacional, há indicações de que será preciso negociar com o Congresso uma desvinculação de receitas da União.
Uma sociedade que não consegue construir um orçamento que faça sentido é uma sociedade com muitos problemas. O déficit público estrutural (...) sinaliza (...) uma dificuldade da nossa sociedade de construir movimentos positivos, o que torna o nosso próprio desenvolvimento muito mais difícil e imprevisível.
Isso acontece porque, quando se eleva um imposto, já está estipulada a parcela que deverá ser transferida para Estados e municípios ou em gastos com saúde e educação, por exemplo. Por essa razão, Pessôa argumenta que só o aval do Legislativo fará com que eventual rodada de tributos extras gere receitas de uso exclusivo da União. A meta seria recompor superávit primário (saldo positivo entre receitas e despesas do governo, excetuando gastos com pagamento de juros), sem repassar aos Estados.
Em artigo para o jornal Folha de S.Paulo em 10 de dezembro, Marcos Lisboa, presidente do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper), coloca o desafio em números. Em eventual ajuste fiscal fundamentado em impostos, diz, para cada um ponto percentual a mais no superávit, seria necessário elevar em dois pontos percentuais a carga tributária. Hoje, o déficit fiscal projetado fica na margem negativa de 4%, o que, pela equação de Lisboa, sem a desvinculação de receitas dos Estados, demandaria, no mínimo, acrescentar oito pontos percentuais em tributos para zerá-lo.
— Sem o Congresso, terá de aumentar a carga tributária ainda mais. E já é muita coisa. Lula deveria estar mais preocupado, é um problemão para ele mesmo. Talvez, ele esteja percebendo algo que eu e outros economistas não estamos — comenta Pessôa.
Elevação de impostos para cobrir gastos fora do orçamento e outras medidas paliativas de ajuste fiscal em debate no momento escancaram o desafio estrutural não enfrentado, alerta o economista e professor da UFRGS Marcelo Portugal, ao chamar a atenção para a necessidade de repensar o orçamento público. Segundo ele, é preciso avançar para “desindexar, desvincular e desobrigar” uma série de receitas corrigidas por índices inflacionários ou aumento de arrecadação e com destinações previamente carimbadas.
Prioridade
Era o que o ministro da Economia de Jair Bolsonaro, Paulo Guedes, chamava de “3Ds” e que o então ministro da Secretária-Geral da Presidência de Michel Temer, Moreira Franco, apontava como ponto prioritário de projeto econômico apresentado por aquela gestão, no início de 2017.
Não andou, mas seria a prioridade: mudar o processo orçamentário. A cada vez que isso se apresenta a gente contorna, como agora, em que o governo vai se endividar e quando não for mais factível, ou porque ninguém quer emprestar ou porque o juro vai estar muito alto, vai usar artifícios para emitir moeda e gerar mais inflação. Mas isso demora, a tragédia não ocorre do dia para a noite. Infelizmente, não atingimos a maturidade fiscal para promover e respeitar essas mudanças estruturais que seriam bem-vindas
Pessôa diz que o desequilíbrio fiscal é o “problema mais grave de uma sociedade”. Ele explica que a discussão e a execução orçamentária moldam o debate sobre o “conflito distributivo”. Trocando em miúdos: significa que a peça orçamentária deve ser clara quanto ao que vai ser pago, com que impostos e recursos públicos destinados aos programas pretendidos. Da mesma forma, acrescenta, é necessário contemplar quais serão os grupos priorizados na construção das políticas e dos seguros públicos oferecidos à população:
— Esse é o conflito distributivo de uma sociedade moderna. E uma sociedade que não consegue construir um orçamento que faça sentido é uma sociedade com muitos problemas. Ao contrário do que se pensa, o déficit público estrutural não é uma questão técnica, mas sinaliza, sim, uma dificuldade da nossa sociedade de construir movimentos positivos, o que torna o nosso próprio desenvolvimento muito mais difícil e imprevisível.
Belluzzo defende atuação anticíclica na economia
Diante das críticas, Luiz Gonzaga Belluzzo, professor titular do Instituto de Economia (IE) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), se diz “sem paciência” com as bases sobre as quais se sustentam o debate sobre os gastos fiscais e o endividamento público. Ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (1985-1987) e de Ciência e Tecnologia de São Paulo (1988-1990), aos 80 anos, ele recorda de um encontro com a então primeira-ministra britânica Margaret Thatcher (1979 a 1990).
Falecida em 2013, Thatcher, conhecida por Dama de Ferro, conduziu a transição da economia estatista do Reino Unido para um modelo mais liberal, mas que, segundo Belluzzo, pelo menos no que se refere à regra fiscal adotada, serviria hoje para o Brasil. Isso acontece porque, em substituição ao teto de gastos – que amarra a designação de recursos sociais no orçamento ao aumento da arrecadação –, seria necessário, de acordo com Belluzzo, flexibilizar a regra por meio de uma concepção anticíclica, a exemplo da Inglaterra, capaz de amenizar os solavancos de cada momento macroeconômico e permitir maior expansão fiscal para induzir o crescimento interno, nos ruins, em alternância com picos de austeridade nas contas públicas, nos bons.
Resgate
A narrativa se aproxima da teoria keynesiana (corrente econômica que tem como principal expoente o economista britânico John Keynes), que defende a intervenção do Estado na organização econômica de um país e contraria o pensamento de outras escolas político-econômicas bastante conhecidas, como o liberalismo, que proclama o oposto.
Belluzzo sustenta seu posicionamento com um resgate histórico que revela a não associação entre aumento do endividamento público (quando este é feito em moeda nacional e não em dólar) e a formação de crises fiscais, razão pela qual conclui: “há certa limitação desses economistas na compreensão de como o sistema monetário financeiro capitalista funciona e quem se apega na dívida pública, sem considerar a privada, não considera que a relação entre política monetária e fiscal é intima, não há separação, ainda que o pensamento convencional goste de segregá-las”.
Traduzindo: significa, na avaliação do professor da Unicamp, que se a economia não cresce, não há canais para aumentar para as receitas fiscais (arrecadação). Ele explica que esse “circuito da renda monetária” pode, e deve, ser engrossado, justamente, pela elevação do gasto público.
É esse gasto que cria renda. Não significa defender gastos exacerbados e, por isso, é preciso, sim, gastar com foco para ter o efeito multiplicador. Quando se gasta em infraestrutura, por exemplo, ao contratar-se uma empresa para operar o projeto, ela criará vagas de trabalho que aumentarão a renda em circulação. Não deveria ser difícil de entender, mas parece que é
Um dos exemplos seria o reajuste concedido para o salário-mínimo em 2023, que terá impacto de R$ 6,8 bilhões nas contas públicas, mas propaga o poder de consumo para milhões de brasileiros na economia.
O que estabelece a emenda constitucional da Transição e o novo orçamento de 2023
- As receitas totais somam R$ 5,345 trilhões. Deste montante, R$ 2,010 trilhões ficam para quitar os juros da dívida pública federal e R$ 213,9 bilhões sobram para investimentos.
- Dos R$ 3,191 trilhões restantes, 94% já estão comprometidos com despesas obrigatórias.
- Dessa forma, o chamado orçamento fiscal (sem os juros da dívida) possui R$ 2,04 trilhões em receitas e despesas de R$ 1,639 trilhão.
- Aumenta em R$ 168 bilhões as despesas orçamentárias, em razão da emenda da Transição e elevação do déficit fiscal previsto para 2023 para R$ 231,5 bilhões.
- Amplia o teto de gastos em R$ 145 bilhões, o que permitirá o pagamento do novo Bolsa Família de R$ 600 e mais R$ 150 por crianças de até seis anos.
- Retira outros R$ 23 bilhões do teto de gastos para investimentos em caso de arrecadação de receitas extras.
- Eleva gastos previstos para os ministérios: da Saúde, em R$ 22,7 bilhões, para bancar programas como o Farmácia Popular, e da Educação, em R$ 10,8 bilhões.
- Amplia recursos para infraestrutura em R$ 12,2 bilhões, para continuar obras inacabadas, em execução, e em R$ 9,5 bilhões para programas de habitação popular.
- Destina 50% da verba de R$ 19,4 bilhões do extinto orçamento secreto aos ministérios: do Desenvolvimento Regional, da Saúde, da Cidadania, da Agricultura e da Educação.
- Outros 50% vão para emendas individuais dos parlamentares, que passam de R$ 11,7 bilhões para R$ 21,5 bilhões no próximo ano.
- Reajusta em 8,91% o salário mínimo (de R$ 1.212 para R$ 1.320, em 2023), com impacto de R$ 6,8 bilhões, pois Previdência arrecada, mas também gasta mais com os benefícios.
- Estipula prazo até 31 de agosto para que o governo encaminhe ao Congresso projeto de lei complementar que crie novo regime fiscal em substituição ao teto de gastos.
Fonte: agências de notícias Câmara e Senado
Efeitos e Alternativas
- O desequilíbrio fiscal serve de elemento extra para pressionar a elevação dos juros. Isso porque, além da necessidade de controle da inflação, o risco país e o maior endividamento demandam retornos mais elevados aos investidores que alocarem recursos no Brasil.
- Aumento do endividamento será uma das primeiras consequências da PEC da Transição, pois o texto aprovado no Congresso permite o descumprimento da chamada “regra de ouro”, ou seja, exime a União de pedir autorização do Congresso para emitir títulos da dívida pública para financiar despesas correntes até o montante de R$ 145 bilhões no próximo ano.
- Esgotada a capacidade de endividamento, uma das alternativas seria elevar impostos. Como boa parte da arrecadação é vinculada ao percentual de repasse para os fundos de Estados e municípios, para cobrir o rombo seria necessário impor uma carga mais elevada ou negociar no Congresso as desvinculações dos repasses aos entes da federação.
- Ambos os cenários prejudicam o combate interno da inflação. Demandariam elevação da taxa de juro ou manutenção da mesma em patamares elevados, o que traria uma trava extra para a atividade econômica e, por extensão, ao processo de geração de emprego e renda no mercado de trabalho formal.
- A conjugação da piora no desempenho fiscal com taxa de juros mais alta amplia uma dinâmica ruim para o curto e o médio prazo. Pensar em alternativas que envolvam impostos indiretos (que não incidem sobre a renda, mas já estão embutidos nos produtos consumidos) e rever desonerações emergem como alternativas.
- Em contraposição, o economista Luiz Gonzaga Belluzzo defende a criação de uma regra fiscal anticíclica, que permita elevar gastos públicos como forma de incentivar efeitos multiplicadores, sobretudo, da renda na economia em momentos que convergem com dificuldades macroeconômicas.
Fonte: entrevistas com economistas