Por nove votos a dois, o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) já votou a favor de derrubar uma norma que permite a prorrogação do prazo de patentes concedidas pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial (Inpi). O tribunal retomou nesta quinta-feira (6) o julgamento de uma ação da Procuradoria-Geral da República (PGR) que contesta a Lei de Propriedade Industrial, em vigor desde 1996. Na prática, o entendimento da maioria da Corte deve levar à redução do prazo de patentes, afetando a indústria como um todo, especialmente mercados gigantes, como o setor farmacêutico, químico e de biotecnologia. Os ministros Luís Roberto Barroso e Luiz Fux votaram contra, e os demais, a favor.
Os ministros do STF ainda precisam decidir se vão modular os efeitos do julgamento, ou seja, definir quando deve ser implantado o entendimento. O STF deve esclarecer, por exemplo, se o fim do prazo esticado atinge inclusive patentes farmacêuticas que já foram prorrogadas, como defende o relator do caso, Dias Toffoli. Esse ponto deve ser discutido em maior profundidade ao final da sessão, após a leitura dos votos dos 11 integrantes da Corte.
De acordo com a Lei de Propriedade Industrial, as patentes têm prazo de 15 anos a 20 anos, tempo contado a partir da data do pedido (depósito) feito ao Inpi. Depois desse período, podem ser feitas versões genéricas de medicamentos, equipamentos e outras invenções livremente.
A polêmica gira em torno de uma regra da mesma lei que determina que o prazo de vigência da patente não será inferior a 10 anos, no caso de invenções, e de sete anos para modelos de utilidade (atualizações de algo já existente), prazo contado a partir de outro marco temporal: a concessão da patente pelo Inpi. Como não há prazo para que o instituto conceda a patente, não há como saber quando a proteção cairá e muitas invenções acabam protegidas para além de duas décadas, prazo padrão no resto do mundo.
— O exercício do direito de propriedade industrial não pode transmudar-se em abuso do poder — observou o ministro Edson Fachin. — O consumidor não pode ser indefinidamente vinculado aos preços e disponibilidade dos produtos definidos pelo detentor do monopólio, sem perspectiva de quando terá acesso a novas possibilidades daquele produto ou modelo de utilidade.
O sexto voto a favor de derrubar a norma veio da ministra Cármen Lúcia.
— Tivemos demonstração de um quadro em que esse dispositivo levava a uma indeterminação do prazo, contrariando a ideia de privilégio temporário — apontou.
Na opinião do ministro Ricardo Lewandowski, a discussão do caso expõe a "total disfuncionalidade e inadequação" do prazo prolongado das patentes.
— Ele (esse dispositivo) dificulta a superação da pobreza, o atraso tecnológico do nosso país e não contribui para o desenvolvimento do Brasil, onerando o poder público e o consumidor em favor de empresas multinacionais que aqui obtêm benefícios que não conseguem alcançar nem em seus países de origem nem em outras nações — disse o ministro.
Saúde
Em um longo voto de 77 páginas, Toffoli defendeu o entendimento de que, de agora em diante, não se pode mais prorrogar o prazo das patentes para nenhum produto em nenhuma hipótese. Ou seja: o prazo de vigência das patentes deve ficar limitado ao período de 20 anos a partir do depósito do pedido feito ao Inpi.
Toffoli, no entanto, avalia que a decisão do Supremo deve retroagir nos casos de produtos farmacêuticos e equipamentos de saúde, considerando as bilionárias despesas do Sistema Único de Saúde (SUS) no tratamento da população brasileira. Dessa forma, na opinião do relator, somente nos casos da área de saúde, cairia a patente que já tenha sido prorrogada por um período superior a 20 anos.
O número total de patentes da área farmacêutica que tiveram o prazo de vigência esticado chega a 3.435 no final deste ano, observou Toffoli. Os ministros ainda precisam definir se essas patentes prorrogadas da área de saúde devem ser atingidas pela decisão do Supremo, como quer o relator.
— A situação excepcional caracterizada pela emergência de saúde pública decorrente da covid-19 nos coloca diante de um cenário de escassez de recursos destinados à saúde, os quais devem ser geridos de forma racional e eficiente, de forma a melhor atender à concretização dos direitos à saúde e à vida. Nesse quadro, e diante dos enormes impactos financeiros sobre o sistema público de saúde, entendo que, na situação específica das patentes de uso em saúde, o interesse social milita em favor da plena e imediata superação da norma questionada — ressaltou o relator.
Segundo a PGR, há uma lista de pelo menos 74 medicamentos que tiveram o prazo de patente prorrogado, dentre os quais fórmulas para tratamento de neoplasias, HIV, diabetes e hepatites virais.
— Há, inclusive, fórmula fabricada com exclusividade por laboratório japonês (favipiravir), cuja patente já deveria ter expirado no Brasil, mas foi estendida até 2023, e que está em fase de estudos científicos sobre os potenciais efeitos contra o novo coronavírus — ressaltou o procurador-geral da República, Augusto Aras.
As patentes servem para garantir a empresas e autores de invenções um privilégio temporário, por meio da garantia de exclusividade na exploração econômica de um determinado produto. Segundo relatório do Tribunal de Contas da União (TCU), entre 2008 e 2014, a quase totalidade dos produtos farmacêuticos tiveram as patentes estendidas por um prazo superior a vinte anos. De acordo com o TCU, a exploração protegida pela patente de produtos farmacêuticos dura, em média, 23 anos, sendo comum a concessão de patentes que ao final terão durado por 29 anos ou até mais.
Deficiência
Ao discordar dos colegas, o ministro Luís Roberto Barroso disse que o verdadeiro problema está na lentidão do funcionamento do Inpi e alertou para as consequências do julgamento, caso a norma seja derrubada pelo STF.
— Tudo que estamos discutindo aqui é por conta de o Inpi levar anos (para analisar as patentes). Eu tenho alguns medos reais que é o de se provocar efeito inverso. No lugar de conseguirmos produção de medicamentos, nos tornarmos o país dos copiadores ou dos importadores, se não se produzirem os medicamentos aqui, por se considerar a proteção (à propriedade industrial) deficiente — disse Barroso.
— Por ter mais dúvidas do que certezas sobre o impacto desse dispositivo que vigora há 25 anos, por considerar que o Legislativo é a melhor instância para deliberar sobre essa matéria, e por achar que a solução não é diminuir a exclusividade de quem inventou, mas sim aumentar a eficiência do órgão que recebe o depósito da invenção, por achar que não é patente a violação à Constituição, estou divergindo — afirmou.
Repercussão
O advogado Marcus Vinicius Vita, especialista em direito do consumidor e representante do grupo FarmaBrasil, considera o resultado do julgamento "um importante marco no direito patentário brasileiro". A FarmaBrasil é um grupo de indústrias farmacêuticas voltado para a produção de genéricos.
— Especialmente na área da saúde, a decisão tem impacto social de enorme relevância, pois garante uma ampliação imediata dos medicamentos genéricos, reduzindo os gastos públicos e permitindo um maior acesso à saúde, direito fundamental de qualquer cidadão — avaliou.