Foi no meio rural que o porto-alegrense Luiz Fernando Cirne Lima fez sua vida profissional e ajudou a escrever capítulos importantes da história recente brasileira. Engenheiro agrônomo de formação, aos 35 anos tornou-se o mais jovem presidente da Federação da Agricultura do Estado (Farsul) e aos 36, ministro da Agricultura. No seu comando da pasta, no governo do militar Emílio Médici, consolidou-se a expansão das fronteiras agrícolas do país. A marcha para o Centro-Oeste permitiu ao Brasil ganhar escala na produção mundial, adicionando novos produtos à pauta de exportação.
Ao rememorar fatos, ele traz detalhes, como os da inauguração do Parque de Exposições Assis Abril, em Esteio, que completa 50 anos neste sábado (29). Foi ainda pelas suas mãos, como superintendente da Copesul, que surgiu o Fronteiras do Pensamento. Nesta entrevista, conta como vê a transformação do agronegócio, fala sobre a Amazônia e revela que diariamente se esforça para não dormir sem ter dedicado ao menos meia hora a estudar algum tema novo.
O senhor participou, como ministro da Agricultura, da inauguração do Parque de Exposições Assis Brasil, em 29 de agosto de 1970, onde hoje é realizada a Expointer. Como foi a transição para a área de Esteio?
Em 1967, fui o primeiro brasileiro convidado para ser jurado de animais da raça devon da Royal Show, na Inglaterra. E inúmeros criadores, amigos meus, foram comigo. Voltando, tiveram a consciência de que uma exposição moderna podia ser muito maior do que a realizada no Menino Deus, em Porto Alegre. Depois, foi feita a aquisição da área da fazenda da família Kroeff, em Esteio. O secretário de Agricultura do Estado à época, Luciano Machado, desde o primeiro momento, comprou a tese da mudança. Ele e o Ezelino Arteche, diretor do Departamento de Produção Animal. Se o parque existe, deve-se a eles. Foi um tempo exíguo para a construção. Quando faltava um mês para a inauguração, um ciclone derrubou o principal pavilhão. Foi uma coisa terrível. Na primeira exposição, o ambiente era de muito barro. O calçado obrigatório para frequentar o parque e caminhar nele eram botas de borracha. A mudança causou contrariedade, houve até boicote, porque era muito longe. Mas havia um ambiente de satisfação e de euforia no sentido de que a Expointer podia se ombrear com feiras que eram nossa referência, como a de Palermo, na Argentina, e a do Prado, no Uruguai. Já naquela ocasião tínhamos a consciência da necessidade de usar esse evento para fazer a aproximação da população urbana com a do campo. E isso se realizou de maneira maravilhosa. A pessoa mais urbana que possa existir terá, se não apreço, pelo menos respeito e reconhecimento pelo setor rural.
Seu pai, Rui Cirne Lima, era advogado e professor de Direito. Como foi sua aproximação com o campo?
A família da minha mãe, Maria Velho Cirne Lima, é que é de origem rural. E, em função disso, tive a minha infância, durante as férias, sempre com vida rural. A fazenda em que estive a maior parte do tempo ficava em Canoas, quase na divisa com Esteio. Chamava-se Brigadeira e era onde hoje está a Refinaria Alberto Pasqualini. Foi desapropriada para a construção da refinaria. Na época, fiquei traumatizado, era casa rural da minha infância. Só voltei a esse local novamente em 1993, na condição de presidente da Copesul. Já decidido a fazer uma das carreiras disponíveis – na época, eram Agronomia e Medicina Veterinária –, optei pela Agronomia. Me formei em 1954, com 21 anos. E aí, pesaram as ligações com as tradições acadêmicas da família Cirne Lima. Fez com que, antes de começar a carreira de campo que desejava, eu cumprisse o que fosse possível em uma carreira acadêmica. Fui convidado por Geraldo Velloso Nunes Vieira, professor de Zootecnia, a ser assistente nessa cadeira, e aceitei. A condição dele era de que eu realizasse todos os concursos para a efetivação no cargo, culminando com a livre docência. Dois anos depois, comecei meu concurso. Quando recebi os diplomas do que representava o doutorado naquela ocasião, fui até o meu avô, Elias Cirne Lima, dentista. Ofereci os diplomas e disse: acho que cumpri com a tradição. Ele não me respondeu, chorou muitíssimo com os documentos na mão. Voltei para casa e fui para o campo.
E que funções desempenhou como agrônomo?
Me dispus a ser administrador de propriedade rural. Trabalhei muito. Volta e meia aparecia um serviço para medir umas terras lá no norte do Estado. Me tocava, topava qualquer parada. Em pouco tempo, viajei pelo Estado inteiro. Vim a conhecer Bagé em 1953, quando se realizou a exposição estadual de animais. Até então, eu não conhecia a Campanha e a Fronteira. Depois, as exposições, a partir de 1955, vieram se fixar em Porto Alegre, no parque do Menino Deus. Até então, realizavam-se em rodízio entre inúmeras cidades. O título era Exposição Estadual de Animais. De 1955 a 1969, foi realizada no Menino Deus. Em 1970 foi a Esteio.
Como foi parar na Farsul, assumindo a presidência aos 35 anos?
Havia naquela época duas lideranças incontestáveis na Farsul, dois grandes amigos: Dácio Assis Brasil e Balbino Mascarenhas. Ambos eram amigos de meu pai. Depois que me formei, passei a ser incluído nas nominatas das diretorias. Assim, desde muito cedo fui trazido pela mão deles, era uma espécie de filho profissional. No final da década de 1960, em meio ao governo militar, uma das grandes discussões era a transformação das associações rurais em sindicatos patronais. Eu era contra, mas prevaleceu a tese de integração. Ironicamente, o próximo presidente da nova entidade sindical veio a ser eu (foi eleito em 1968). Me submeti à decisão da maioria.
Tenho profunda reverência pela memória do presidente Médici, lamento que ele tenha sido conduzido a erros que não foram da cabeça e do temperamento dele. Era uma pessoa suave, boníssima. E passa à História como o homem que teria ordenado as piores torturas etc., uma coisa com a qual não compactuo e o isento. Porque uma das tragédias de um governo ditatorial são os porões da ditadura, que o ditador não tem condições de controlar.
A indicação para ministro da Agricultura veio logo depois, em 1969.
Justamente nos dias da Exposição Estadual de Animais do Menino Deus vem a notícia de que o presidente Costa e Silva, esperado para a inauguração, havia sofrido um derrame cerebral. Realizamos a abertura sem ele. Eu, como presidente da Farsul, e o general Emílio Médici, comandante da 3ª Região do Exército, com sede em Porto Alegre. Cerca de 30 dias depois, definiu-se que ele seria o sucessor, e sou surpreendido com o convite para ser ministro da Agricultura. Eu estava trabalhando na Fazenda Itaiaçu, em Uruguaiana, quando fui chamado, primeiro para ser ministro da Indústria e Comércio. Respondi que a pasta tinha uma série de responsabilidades ligadas às políticas de café e de açúcar das quais eu não tinha o menor conhecimento. Por isso, eu ficava muito envaidecido, mas não podia aceitar. Isso foi a parte final da conversa. No início, perguntei: “General, o senhor sabe que, em 1966, foram cassados sete deputados estaduais gaúchos para que não houvesse quórum que elegesse meu pai governador? Sabe o que isso representa, e a divisão que se estabeleceu no Estado com essa brutal cassação, porque a conta elegia folgadamente o nome de Rui Cirne Lima, em eleição indireta?”. Ele me respondeu: “Claro que tenho conhecimento, tenho isso bem presente, mas reforço e reafirmo o convite a você”. E terminou dizendo que eu fosse para casa, organizasse a minha vida, porque iria para Brasília. “Depois eu lhe digo o que você será.” Passados alguns dias, ele anuncia meu nome como ministro da Agricultura em um pronunciamento. Foi ali, pela televisão, que fiquei sabendo. Desde logo, o Rio Grande do Sul ficou pensando como poderia o filho do Rui Cirne Lima, um homem defensor do Estado de direito, aceitar um cargo de ministro de um governo militar. Por outro lado, o setor agrícola gaúcho estava em dificuldades, era um momento ruim, do ponto de vista financeiro. O campo empobrecido, com dificuldades de diálogo com os governos.
Qual era o cenário produtivo à época?
O Estado era eminentemente de tradição pecuária, e com uma pecuária nos seus últimos estertores em termos de tecnologia. Havia uma lavoura agrícola altamente organizada que era a de arroz. Era a atividade rural mais rentável. Havia incipiente uma lavoura tritícola. Desde a década de 1940, no governo de Getúlio Vargas, havia a necessidade de importar, todos os anos, milhões de toneladas. Depois do petróleo, o maior gasto externo brasileiro era com a importação de trigo. Houve grandes programas de incentivo ao desenvolvimento da cultura. O Brasil era basicamente alicerçado em quatro produtos agrícolas: café, açúcar, algodão, e cacau. E o Estado estava ausente, fora desses produtos, não tinha participação. O único grande produto agrícola gaúcho era de mercado interno. O Rio Grande do Sul precisava de um item de exportação. E ele foi a soja.
Houve alguma política pública para fazer a soja ganhar mais espaço?
Começo contando uma pequena anedota. O ministro da Agricultura, então jovem e inexperiente, ainda que fosse muito cuidadoso no falar, foi convocado a falar da lavoura de soja em São Paulo. Pisando em casca de banana, disse que, talvez, em um futuro não tão distante, a soja viesse ultrapassar o café nas exportações brasileiras. Caiu o mundo em cima de mim. Como ia dizer uma coisa dessas, com as exportações de soja somando US$ 200 milhões, e as do café, US$ 1,2 bilhão? Tive de aguentar e apenas reiterar que imaginava que a soja tinha possibilidades de se transformar em um grande produto agrícola brasileiro, podendo se estender não só nos Estados do Sul, mas em todo o Centro-Oeste. No plano de política agrícola para 10 anos, o ministério propõe manter posição nos produtos clássicos e crescer em quatro linhas de produtos: grãos (soja e milho), cárneos, florestais e derivados de frutas. Foi uma coisa muito estudada. E a soja e o milho se transformaram em grandes produtos brasileiros. O Brasil é o maior exportador de carne bovina do mundo e um dos grandes exportadores de carne como um todo. Também é um grande produtor e exportador de celulose.
Foi nesse plano de expansão que começou a ser gestada a Embrapa?
Para pensar em crescer na área de grãos e na produção de carnes, era necessário aumento de tecnologia e expansão de área, ou as duas coisas. Em 1970, estava estabelecido o debate de que a expansão da agricultura brasileira deveria se dar de duas formas: ou pela reforma agrária ou por expansão da fronteira agrícola. Quando o presidente Juscelino Kubitschek constrói Brasília e puxa o centro do país para lá, ali começa a marcha para o oeste brasileiro. Optamos pela expansão da fronteira. Daí começa a necessidade de tecnologia, e a se pensar na criação de um organismo. Defendia a tese de que tínhamos de desenvolver tecnologia adaptada a nossa realidade. Dentro disso, esboçou-se um organismo para centralizar a pesquisa agrícola. A CPRM foi uma inspiração para a criação da Embrapa.
O senhor esperou até que a Embrapa estivesse criada para entregar a carta de demissão?Exatamente. No dia marcado para a assinatura da criação da Embrapa, também foi a solenidade da usina de Itaipu. A Embrapa foi criada em uma cerimônia modesta porque em outra parte de Brasília se realizava a assinatura de um grande ato binacional para a construção dessa gigantesca obra que era Itaipu.
O setor do agronegócio tinha de ser a favor do desmatamento zero na Amazônia. Isso nos levaria a um crescimento de autoridade como produtor e exportador de alimentos no mercado mundial.
Por que o senhor quis sair do governo?
Havia muitas divergências. Em primeiro lugar, eu assumi com um discurso de aceitação do presidente Médici prometendo a redemocratização do país no seu mandato. No terço final do governo, ele já fez manifestações dizendo que seria impossível realizar aquilo que havia se proposto. E o endurecimento de maneira geral do regime me causava desconforto. E eu vinha crescentemente divergindo do ministro da Fazenda, Delfim Netto, na forma de atuar. Havia um bom trato pessoal, mas, muitas vezes, discussões ásperas, reuniões no conselho monetário nacional em que tínhamos posições opostas e de confronto.
Qual foi o caminho de transição após a saída?
Muito difícil, porque em um primeiro momento parecia que eu havia sido desleal ao presidente Médici, um presidente que levou um homem de 36 anos para o cargo de ministro. Tenho de frisar que, nos 22 anos de governo militar, não sei se houve outro ministro que saiu com uma carta dizendo por que saiu, como no meu caso. A repercussão do fato acabou sendo maior do que eu havia pensado. Havia gente que pensava que aquele meu gesto era de política partidária. Nunca houve da minha parte um só momento de arrependimento. Havia constrangimentos pessoais, que o tempo depois foi superando. Tenho profunda reverência pela memória do presidente Médici, lamento que ele tenha sido conduzido a erros que não foram da cabeça e do temperamento dele. Era uma pessoa suave, boníssima. E passa à História como o homem que teria ordenado as piores torturas etc., uma coisa com a qual não compactuo e o isento. Porque uma das tragédias de um governo ditatorial são os porões da ditadura, que o ditador não tem condições de controlar.
Como o senhor avalia o questionamento externo à imagem devido a temas como o desmatamento da Amazônia, por vezes associado Ao setor?
Eu diria que é uma fase em consequência dos últimos 50 anos. O Brasil passa a incomodar como grande exportador de produtos agrícolas. E, se há no mundo um ponto vulnerável na posição e na conduta brasileiras é, sem dúvida, em relação à Amazônia. É considerada um patrimônio da humanidade, e que a população brasileira e as grandes autoridades do país não dão a devida importância à preservação. É algo que começa nos anos 1970, quando havia já movimentos de universidades norte-americanas em defesa da internacionalização. Hoje, volta-se na mesma tecla, pelos interesses contrariados ao Brasil. Com a pregação de que os países ditos desenvolvidos não podem comprar produtos agrícolas que são produzidos na Amazônia, estragando a Amazônia. Quando sabemos que a produção brasileira é espalhada por todo o território nacional. Usa menos de 80 milhões de hectares, inferior a 10% da área total geográfica. A agricultura brasileira, para crescer, não precisa da Amazônia. Porque tem rebanho de 200 milhões de bovinos que pastam em cerca de 200 milhões de hectares, ou seja 2 milhões de metros quadrados de pastagem. Para manter esse mesmo rebanho, são necessários cento e poucos milhões de hectares. Ainda temos milhões e milhões de hectares de pastagens, muitas delas já degradadas, que estão sendo transformadas. O crescimento anual de áreas agrícolas que se verifica hoje se faz com a transformação de áreas de pastagens em lavouras. Consequentemente, o Brasil não precisa do bioma amazônico, e o setor do agronegócio tinha de ser a favor do desmatamento zero na Amazônia. Isso nos levaria a um crescimento de autoridade como produtor e exportador de alimentos no mercado mundial. As agressões que o Brasil sofre, de apaixonados ecologistas e conservacionistas, são naturais e aceitáveis, mas grande parte vem de interesses econômicos contrariados pela produção nacional.
O Brasil tem de se comprometer com isso (não deixar a madeira retirada ilegalmente da Amazônia sair do país). E o agronegócio precisa entender que isso é muito importante para a sua consolidação nos mercados internacionais. Isso é uma guerra comercial terrível, e temos de trabalhar para não dar margem, não oferecer vulnerabilidade.
E o senhor acha que não fazendo a devida proteção, acaba dando...
(Interrompe) margem a críticas. Porque é um grande ponto vulnerável nosso. Minha maior satisfação é que a atual ministra, Tereza Cristina, já defende e já coloca de maneira enfática que o agronegócio não precisa do bioma amazônico. E também uma posição firme da necessidade de punição e da necessidade de o governo evitar as agressões ao bioma.
Como equacionar a questão de que é em razão do interesse comercial que é preciso cuidar desse espaço?
O problema é o vazio representado pela Amazônia. São 3,5 milhões a 4 milhões de quilômetros quadrados. Sempre será possível mostrar a fotografia de um incêndio de floresta, impossível de evitar. Na época em que era ministro, o Exército brasileiro tinha 160 mil homens em armas. Se pegasse a fronteira de Rondônia com a Bolívia e fizesse a volta por toda a região amazônica, nessa linha de fronteira seca e rios, e colocasse esses homens, sabe a que distância ficaria um soldado de outro? A 150 quilômetros. Naquele tempo. As distâncias são gigantescas, realizar fiscalização em toda essa região é uma coisa dificílima. Mas, ainda na época em que estive no governo, iniciou-se a verificação por radar. Hoje, já há tecnologia que nos permite chegar a números com erros inferiores a 1%. Agora, para fazer um trabalho de preservação, depende-se fundamentalmente das populações que ali vivem e dos governos dos Estados. A grande agressão amazônica é justamente dos interesses de extrair madeiras.
Como resolver isso?
Cuidar as saídas. Não permitir. Vale a pena cortar se puder sair com a madeira para vender. O Brasil tem de se comprometer com isso. E o agronegócio precisa entender que isso é muito importante para a sua consolidação nos mercados internacionais. Isso é uma guerra comercial terrível, e temos de trabalhar para não dar margem, não oferecer vulnerabilidade. O Brasil não precisa da Amazônia para crescer. O agronegócio tem de ser a favor do desmatamento zero.
Como vê a retirada da vacina contra a aftosa?
Sempre fui favorável à possibilidade de, o mais cedo possível, ficar livre da doença sem vacinação, para competir nos mercados mais exigentes. Acho que estamos no caminho certo. É muito importante no aspecto político, no sentido de que o Rio Grande do Sul tem de se especializar em produzir coisas diferenciadas. Vejo a quantidade de pessoas se especializando em oliveiras, vinho de qualidade. É uma verdadeira revolução. Temos muito a história do Rio Grande na família Pötter, de Dom Pedrito. De origem alemã, começa com arroz, percebe a necessidade de diversificação, vai para a criação de hereford e braford e, na terceira geração, tem uma coisa fantástica com o vinho. É uma história que traduz bem a integração de etnias, o solo, a evolução sob o ponto de vista cultural, do negócio.