"A prefeitura alerta: saia de casa somente para o essencial. Mesmo sem sintomas, você pode estar infectado e transmitir o vírus. Não corra risco de vida. Ele é real, principalmente para idosos. Proteja você e a sua família. A maior proteção é o isolamento social. Fique em casa".
A frase acima, que poderia muito bem ser de um filme de ficção de Hollywood, é reproduzida pelo auto-falante de uma viatura da EPTC. O alerta é para que as poucas pessoas que ainda circulam pelas ruas de Porto Alegre rumem para suas casas e se protejam da pandemia do coronavírus. Nas calçadas da Capital, o movimento parece ao dos primeiros dias de janeiro, quando a maioria da população está aproveitando as praias ou está no interior do Estado.
O isolamento social, no entanto, não é para todos. Além dos médicos e demais profissionais da saúde, trabalhadores de outros setores essenciais da sociedade precisam sair às ruas para evitar o colapso — e, claro, para manter o seu sustento e de suas famílias. São os casos dos profissionais citados abaixo, que viabilizam o confinamento na luta contra o coronavírus. Dignos de aplausos, eles são fundamentais para o combate. Fazem parte de uma engrenagem em que, se uma peça para, as outras são prejudicadas ou não funcionam mais.
Vazio nas cidades e no peito
Vinte e cinco dos 51 anos de vida de Renato Castro se passaram atrás da boleia. O caminhoneiro nascido em Butiá transporta carvão mineral, combustível fóssil que, segundo a Agência Internacional de Energia (IEA), corresponde a 41% da produção total de energia elétrica e, entre outras funções, também é utilizado em caldeiras de hospitais.
Em duas décadas e meia de experiência nas estradas, Renato nunca viu nada parecido com o momento atual. O vazio das cidades por onde passa evidencia a mobilização das pessoas para combater o vírus e, ao mesmo tempo, deixa o caminhoneiro triste enquanto viaja.
— Ficamos chateados em ver os lugares sem ninguém. Parece coisa de filme. Tudo vazio. Mas não podemos parar. Estamos correndo o risco de levar essa doença para nossas famílias, mas, ao mesmo tempo, se não trabalharmos, não teremos o que comer — relata Renato.
O medo pela contaminação pelo coronavírus também atingiu os donos de vários estabelecimentos de beira de estrada. Renato conta que, por causa da dificuldade de achar um restaurante aberto, os caminhoneiros às vezes dependem de doações de moradores ou de programas de conscientização para fazer uma refeição:
— Temos sorte porque, em algumas estradas, tem gente que monta uma barraquinha e doa um marmitex com arroz, feijão e frango. É o que nos salva. Esses dias, até tentei pagar pelo serviço, mas eles não quiseram o dinheiro.
Nesta sexta-feira (27), o Serviço Social do Transporte e Serviço Nacional de Aprendizagem do Transporte (Sest Senat), distribuiu sacolas com alimentos e outras com produtos de higiene e limpeza em oito municípios gaúchos. Um alento para as viagens de Renato e de outros caminhoneiros.
Pão, frios e álcool gel
O problema com a falta de estabelecimentos abertos enfrentado por Renato poderia ser o mesmo de profissionais que atuam com transporte em Porto Alegre se trabalhadores como Dhaniela Romoaldo, 19 anos, não estivessem em ação. Dhaniela atua numa padaria da Capital há apenas quatro meses. A função de pesar pães, frios, bolos e outros alimentos é paralisada durante duas horas do seu dia para que ela fique na porta do estabelecimento. De pé, vestindo máscara, ela limita a passagem dos clientes para dois por vez e borrifa um punhado de álcool gel nas mãos das pessoas que adentram a padaria.
— Revezamos aqui na frente durante o dia para garantir que as pessoas não entrem ao mesmo tempo e que higienizem as mãos. É importante para prevenir, né? — disse.
Apesar do estresse diário que o risco da contaminação causa, a carga horária dos colaboradores da padaria diminuiu em uma hora por dia. O objetivo é reduzir o risco de contagio durante a pandemia. Tempo extra que Dhaniela gostaria de passar com a família, mas não pode:
— Moro na frente dos meus familiares, mas evito entrar na casa deles para não ter chance de contaminá-los. Dá um aperto no peito, uma saudade, mas é importante neste momento.
Levando o restaurante para a sua porta
O movimento na padaria em que Dhaniela trabalha diminuiu, mas o número de entregas a domicílio aumentou. Um dos responsáveis por este serviço atende — e faz entregas — por Luciano Spindola, 42 anos. Ao mesmo tempo em que teme ser contaminado pelo coronavírus, o porto-alegrense comemora o aumento da demanda nas entregas de lanches, refeições e até ranchos. No dia 18, um decreto da Prefeitura de Porto Alegre impôs que restaurantes passassem a funcionar com mesas reduzidas, por telentrega ou serviço de drive-thru.
— Além de ter mais serviço, também há menos trânsito na rua, o que facilita e deixa o nosso trabalho mais seguro — afirmou Luciano, enquanto entregava um lanche de fast-food para uma cliente no bairro Medianeira, em Porto Alegre.
O entregador quase dobrou a sua carga, de sete para 12 horas diárias. A sua preocupação pela pandemia é "compensada" pelo alívio nas contas. Se antigamente tirava em média R$ 70 por dia, atualmente consegue lucrar até R$ 200. Sempre que possível, entre uma entrega e outra, Luciano tenta dar uma passada em casa para higienizar as mãos e diminuir o risco de contágio do coronavírus. Uma das formas que achou para deixar o seu trabalho mais seguro para ele e para os clientes.
Além do serviço de delivery, Luciano ainda faz às vezes de fotógrafo (@tuka_porto_fotografo) e dá aulas de skate para jovens no bairro Camaquã, onde mora. Já partindo para uma nova entrega após ser chamado via aplicativo, teve tempo de se posicionar contra a luz do sol, facilitando o trabalho da reportagem na hora de registrá-lo em uma foto ao lado da sua moto.
— Vamos passar por essa — disse, já em cima do veículo, enquanto rumava para ajudar, com entregas, o isolamento de quem pode ficar em casa.
Cuidando dos carros (e dos pedestres)
Não é apenas impressão de Luciano ou de Eduardo Paganella, repórter de trânsito da Rádio Gaúcha. A baixa movimentação de veículos nas ruas da Capital também é atestada por Marco Aurélio Cavalheiro, 48 anos, guarda de trânsito da EPTC. Segundo Cavalheiro, o tráfego diminuiu em até 70% em Porto Alegre.
— Trabalho na EPTC há 20 anos e nunca vi nada igual — se impressiona o agente.
Na segunda-feira, um decreto da Prefeitura de Porto Alegre restringiu a circulação de pessoas com mais de 60 anos nas ruas da Capital. Os deslocamentos de quem está nesta faixa etária serão permitidos apenas para atendimento médico, realização de exames, vacinação e compras em mercados e farmácias. Durante três horas do seu dia, Cavalheiro dirige a viatura da EPTC a 30km/h pelos bairros. A orientação nas ruas, que antigamente era destinada para os veículos de trânsito, agora é passada aos pedestres através de auto-falantes, que reproduzem a frase que iniciou esta reportagem.
— É complicado, mas necessário. É essencial, assim como serviços de mecânica, limpeza, segurança da Brigada Militar e da Guarda Municipal, que ainda ocorrem apesar da pandemia. A maioria das pessoas que abordamos para irem para casa entende a gravidade da situação, principalmente os idosos — afirmou Cavalheiro.
Movimento baixo também para motoristas de aplicativo s
Motoristas de aplicativo consultados por GaúchaZH revelam quedas de até 70% nas corridas desde que as medidas de restrição de circulação foram adotadas em Porto Alegre. Para Vilson Nunes, 52 anos, a diminuição no número de corridas é maior — chega a 90%. Para encarar a redução na demanda, o motorista nascido em Santa Maria conseguiu baixar com o dono do carro o valor do aluguel — de R$ 500 para R$ 250.
— Meu trabalho mudou 100%. O movimento está muito baixo. Tem dias que não sobra nada, mas preciso trabalhar. Senão, quem vai me dar comida? Quem vai sustentar a minha casa? — desabafou Vilson, que trabalha como motorista de aplicativo.
Com a diminuição de serviço no setor, que abrange cerca de 25 mil pessoas na Capital, algumas locadoras de carros baixaram também o valor do aluguel para motoristas de aplicativo. Mesmo assim, muito trabalhadores tiveram de devolver o seu veículo.
— Olha, poderia ser pior. Vários motoristas pararam, por isso temos essa margem de 10% do trânsito antigo para trabalhar. Não iria ter como sobreviver para quem atua só neste ramo. Eu trabalho de dia para comer de noite, trabalho de noite para comer de dia. Não dá para guardar dinheiro.
Redução no movimento — e no salário
Parte do trabalho de Renato, Luciano, Marco Aurélio e Vilson é viabilizado por profissionais como Gilberto Aramy, 56 anos. O frentista de um posto de gasolina no bairro Boa Vista afirma que o local teve queda de até 80% no movimento.
Na quinta-feira, ocorreu uma reunião entre colaboradores do posto de gasolina bem no momento em que a reportagem chegou ao local. Nesta, ficou acertado a redução de 18% do salário dos empregados e a diminuição de duas horas diárias na jornada.
— Vou chegar agora ao trabalho, às 16h30min, e acho que só vou atender um carro daqui umas duas horas. A procura maior é de motoristas de aplicativo.
Menos sujeira, mas menos doações
O movimento abaixo do normal também se reflete diretamente no trabalho do gari Gerson Oliveira, 27 anos. O porto-alegrense, que limpa as ruas da Capital há três meses, notou que a diminuição da sujeira em Porto Alegre ocorreu na mesma velocidade em que as pessoas se isolavam nas suas casas.
— Ter menos sujeira é melhor para todo mundo. O problema é que muitas vezes as pessoas nos ajudavam com dinheiro e nos doavam algumas coisas, o que não acontece mais, porque tem pouca gente na rua — lamentou Gerson.
Cuidado com o próximo
O porteiro e vigilante Julio César Cruz,38 anos, tenta ao máximo ficar dentro de sua cabine, onde toma conta de uma das entradas de um condomínio habitacional em Porto Alegre. Mas não tem jeito. Volta e meia, precisa sair dali para ajudar moradores idosos, abrir o portão para carros e ver se está tudo bem no local.
— É complicado. Temos um pouco de medo, mas não tem o que fazer. No nosso trabalho, não há como fazer home office e ficar em casa. Então, temos de vir.
Colega de Júlio César, Laurício Sampaio Corrêa, 46 anos, afirma que passou a fechar sua cabine para evitar o contagio pelo coronavírus. Além disso, passa orientações para pessoas que estão no grupo de risco, mas, mesmo assim, deixam as suas casas:
— Fico chateado quando vejo pessoal de idade sair na rua, porque sabemos que é perigoso, especialmente para eles.