Meta do governo de Eduardo Leite, o autolicenciamento ambiental de empreendimentos privados já é aplicado em ao menos três Estados e é motivo de disputa judicial que segue em aberto. De um lado, promotores especializados em ambiente questionam a medida e, de outro, gestores estaduais defendem o instrumento.
Em Santa Catarina, que permite o autolicenciamento há um ano, e na Bahia, que usa o formato desde 2013, o Ministério Público (MP) alerta para os riscos ambientais e pede que o Supremo Tribunal Federal (STF) considere o instrumento inconstitucional.
No licenciamento ambiental tradicional, há três etapas — prévia, de instalação e de operação — e, em cada uma delas, o poder público analisa os projetos e estudos de impacto ambiental. Se estiverem adequados, autoriza o empreendimento.
Já no autolicenciamento, oficialmente intitulado licença por adesão e compromisso, o empreendedor preenche um formulário, envia documentos, se compromete a respeitar as regras, e a autorização é emitida na mesma hora, pela internet.
— No nosso conhecimento, não são propriamente licenças, são autolicenciamentos e não respeitam o devido procedimento — pontua a promotora de ambiente Luciana Khoury, do Ministério Público da Bahia.
O autolicenciamento foi implementado na Bahia em 2013, durante gestão do então governador Jaques Wagner, do PT. Atualmente, conforme informações do Ministério Público, o Estado utiliza o formato para licenciar postos de combustível e estações de rádio-base.
Crítico ao formato, o MP baiano relata ter identificado uma série de irregularidades nesses processos. Conforme os promotores, o governo estadual não avalia a veracidade dos documentos utilizados pelos empreendedores para emissão da licença automática tampouco fiscaliza os locais, depois de abertos.
— Não é feita nem uma visita técnica para apreciar a localização do empreendimento. Um posto de combustível em uma área de nascente de rio é diferente de outro em uma área antropizada (modificada pelo ser humano). Nos casos de postos de combustível, uma contaminação pode gerar dificuldades muito grandes — destaca Luciana.
A promotora cita um caso registrado em Coribe, no interior da Bahia. Durante fiscalização, o MP identificou que o posto de combustível que estava em construção havia obtido o autolicenciamento a partir de documentos inválidos. A obra acabou embargada. Caso contrário, conforme a promotora, haveria contaminação do solo da região.
— Essa promessa de aumentar a fiscalização com o autolicenciamento, aqui na Bahia, não se cumpriu — avalia a promotora.
O governo da Bahia, comandado pelo PT, foi procurado por GaúchaZH, mas não atendeu, até o fechamento desta reportagem, a solicitação de entrevistas e não informou dados sobre emissão de licenças automáticas e fiscalização. Nos bastidores, uma fonte do governo afirmou que o tema é "delicado" e, por isso, o silêncio oficial.
SC avança com cautela em autolicenciamento
Endossando a crítica dos promotores baianos, o Ministério Público de Santa Catarina argumenta que o autolicenciamento fere os princípios de prevenção e proteção, básicos no direito ambiental, e por isso deve ser repelido.
— É mais fácil prevenir o dano ambiental do que, depois de acontecer, remediá-lo — resume a promotora catarinense Luciana Cardoso Pilati Polli, que coordena o Centro de Apoio Operacional do Meio Ambiente.
À Justiça, o MP catarinense argumenta que a legislação federal não permite que os Estados instituam o autolicenciamento. O argumento, contudo, não foi aceito pelo Tribunal de Justiça e, desde abril, o MP catarinense questiona o tema no STF — que ainda não se manifestou.
O Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (IMA), órgão responsável pelas licenças, iniciou o autolicenciamento há um ano para a atividade de avicultura, com objetivo de dar agilidade aos processos e por considerar que o setor tem normas e procedimentos de controle bem consolidados. A direção do IMA garante que, se implementado de forma correta, o autolicenciamento não amplia riscos ambientais.
— Com o passar do tempo, cresceu demais a atividade e estava ficando sufocante. Não tinha mais condição de dar vazão ao número de processos de licenciamento — explica a diretora de Licenciamento do IMA, Ivana Becker.
O órgão começou a oferecer o autolicenciamento somente em 2018, cinco anos depois de ser autorizado por lei. A implementação gradativa se deve, em parte, à demora para convencer setores sociais envolvidos e também por cautela para evitar danos ambientais.
— Não está na lei (brasileira) ainda. E a gente tem um entendimento de que (o autolicenciamento) se aplica a atividades que a gente conhece muito. Penso que, enquanto não tivermos o zoneamento econômico e ecológico (do Estado), temos de ir devagar, aplicando para atividades que a gente conhece bem, há muito tempo. Estamos avançando aos poucos — pondera Becker.
Para a diretora, entusiasta do modelo, apenas a "total desinformação ou a falta de vontade de compreender" pode justificar as críticas ao sistema de licenciamento por adesão de compromisso.
No primeiro ano, foram 355 autolicenciamentos de avicultura concedidos em Santa Catarina. O IMA garante que o uso do instrumento liberou servidores públicos para atuarem na fiscalização e que, atualmente, 15% dos empreendimentos licenciados automaticamente são alvo dos fiscais. Conforme o IMA, duas irregularidades em empreendimentos foram identificadas no período, sem casos de poluição.
A avaliação positiva do primeiro ano faz com que o Estado esteja ampliando o autolicenciamento para transporte de produtos perigosos e, nos próximos meses, para instalação de antenas de telecomunicação. Em 2020, os catarinenses querem incluir a suinocultura.
Inspirado nos modelos de Santa Catarina e Bahia, o governador Eduardo Leite, nos próximos dias, enviará à Assembleia um projeto de lei propondo revisão completa do código estadual do meio ambiente. Entre as mudanças, está a implementação do autolicenciamento.
Marjorie Kauffmann, presidente da Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam), órgão responsável pelos licenciamentos, já afirmou a GaúchaZH que entre 25 e 30 atividades com potencial de poluição baixo, médio e alto possam operar por autolicenciamento no RS. A abrangência proposta é superior ao que é feito em SC e na BA, onde o sistema é usado em duas atividades em cada Estado.
Ceará aplica licenciamento "quase automático"
O Ceará também tem experiência nessa área, mas impôs limites ao modelo. Diferentemente do que ocorre em SC e BA, o órgão ambiental cearense confere se as informações enviadas pelo empreendedor pela internet estão adequadas. Com isso, a licença é entregue em até duas semanas, conforme a Superintendência do Meio Ambiente do Ceará (Semace).
O sistema, implementado em junho deste ano, vale para 33 atividades produtivas. Na lista, estão atividades como panificação, coleta e transporte de resíduos perigosos, revenda de gás, lavagem de veículos.
— Aqui no Ceará decidimos que o autolicenciamento não é automático. É feita uma análise da documentação apresentada. É uma segurança tanto para o empreendedor, quanto para o órgão ambiental. A gente entende que essa documentação pode ser analisada sem tanto prejuízo de tempo — explica o superintendente do órgão ambiental cearense, Carlos Albeto Mendes.
A proposta de autolicenciamento no Ceará foi definida por resolução do conselho estadual e não por lei. Conforme o governo cearense, atualmente comando do PT, não houve disputa ideológica sobre o tema e, no colegiado, a proposta foi aprovada por unanimidade.
O Ministério Público cearense, que não participou da votação, tem histórico contrário ao autolicenciamento. Em discussão recente sobre o licenciamento em Fortaleza, emitiu parecer contrário. Conforme a promotora de Justiça Jacqueline Faustino, coordenadora do Centro de Apoio Operacional do Meio Ambiente, a tendência é que órgão também leve o assunto à Justiça.
— O nosso entendimento é que a autodeclaração é inconstitucional. O que não fizemos ainda é ajuizar ação. A análise está sendo realizada — ponderou a promotora.