Após a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) abrir processo administrativo para apurar as circunstâncias da venda de ações do Banrisul detidas pelo Piratini, choques de versões sobre o caso geram dúvidas se a operação teve a transparência necessária e seguiu os melhores preceitos de governança corporativa.
Enquanto governo e banco dizem ter obedecido ao regramento formal, profissionais de mercado e advogados especialistas no tema enxergam informações insuficientes e falta de coerência. Com a venda de 26 milhões de ações preferenciais (sem direito a voto) e 2,9 milhões de ordinárias (com essa prerrogativa), o Executivo gaúcho arrecadou cerca de R$ 530 milhões, utilizados para quitar compromissos de curto prazo, como salários atrasados.
Um dos pontos que será analisado pela CVM, autarquia que fiscaliza o mercado de capitais, é a decisão do Banrisul de não publicar fato relevante para informar o leilão de 26 milhões de ações preferenciais, em 10 de abril, dois dias úteis após usar o instrumento para comunicar a desistência, pelo Piratini, de outra operação: uma oferta pública de 128 milhões dos dois tipos de papéis, anunciada em outubro do ano passado.
Em entrevista à Rádio Gaúcha na sexta-feira, o presidente do Banrisul, Luiz Gonzaga Mota, disse que sequer poderia publicar fato relevante. Especialista no tema, o professor de direito societário Renato Vilela, da GVlaw, pós-graduação em Direito da Fundação Getulio Vargas (FGV) em São Paulo, afirma desconhecer qualquer proibição nesse sentido.
– É estranho, porque o leilão foi público, e existe a discricionariedade do RI – explica, referindo-se à diretoria de relações com investidores.
A diretora de regulação de emissores da B3, a bolsa de São Paulo, Flavia Mouta, preferiu não comentar por não ter ouvido a declaração de Mota, mas disse não conhecer a limitação. O comunicado do leilão foi feito um dia antes, por meio de agendamento de edital na B3, pela corretora BTG Pactual, que intermediou a venda.
Também atuante na área de mercado de capitais, a professora Viviane Prado, da FGV Direito, lembra que a decisão de publicar ou não fato relevante é da companhia. Não haveria, portanto, problema legal. Mas vê contrassenso em tratar de forma diferente dois episódios associados e separados por apenas dois dias úteis.
– Se publicou o cancelamento da oferta pública por meio de fato relevante, para manter a coerência deveria ter feito o mesmo – argumenta Viviane.
Flavia, da B3, reforça que a escolha de publicar ou não fato relevante é da empresa, mas não colide com o edital:
– Continua cabendo à companhia avaliar. Não é automático, nem excludente.
Mesmo sem ser obrigação, uma rápida busca em áreas de relações com investidores de sites de companhias abertas mostra diversos casos de empresas que fizeram operação semelhantes às do Banrisul, conhecidas como block trade, e apresentaram fato relevante, instrumento de maior alcance público. Em um dos casos, a Cemig, controlada pelo governo mineiro, informa inclusive o destino dos recursos.
Na segunda operação, em 27 de abril, o governo do Estado vendeu 2,9 milhões de ações preferenciais. Como o lote era menor, o aviso formal foi feito apenas uma hora antes da operação, seguindo a regra da CVM, relata o diretor de negociação eletrônica da B3, Mario Palhares. Mesmo assim, a bolsa teve de acionar mecanismo conhecido como leilão automático 10 vezes durante o pregão. Isso ocorre quando as negociações saem do padrão habitual sem que haja conhecimento prévio. No caso do Banrisul, houve volume muito acima da média e oscilações bruscas de preços. As situações “infringiram parâmetros da instrução 168 da CVM”, informou a B3, referindose às regras para transações do tipo. No mesmo dia, bolsa e CVM questionaram se o Banrisul tinha conhecimento dos motivos da forte variação de preços, número de negócios e valor movimentado.
O presidente da Associação dos Analistas e Profissionais de Investimentos do Mercado de Capitais (Apimec) Sul, José Junior de Oliveira, avalia que as operações foram feitas sem a melhor transparência, com pouco tempo para que mais interessados conseguissem analisar as ofertas. Mesmo sem questionar a legalidade, a pressa e a comunicação limitada, ressalta Oliveira, acabam abrindo margem para especulações sobre possíveis informações privilegiadas:
– Foi na correria. Se fosse feito com melhor governança, de maneira clara, com melhores condições de análise, poderia ter saído por preço melhor.
Segundo uma fonte do Banrisul, mudanças na instrução 168 da CVM realizadas em janeiro deixariam mais flexíveis operações como as com os papéis do banco. Procurada, a CVM informou que não há alteração recente na norma.
Formalmente, o Banrisul segue assegurando que realizou as operações de acordo com a legislação vigente e o governo do Estado sustenta que o processo foi conduzido de forma transparente, obedecendo as regras da CVM.