Motivada por razões ambientais e econômicas, a busca por práticas sustentáveis de produção agropecuária vem ganhando espaço no Rio Grande do Sul por meio de incentivos oficiais e da mobilização de organizações privadas.
Uma quantidade crescente de produtores rurais procura adotar métodos mais eficientes e menos impactantes de atuação. Um dos focos dessa progressiva revolução campeira envolve melhorias na criação de gado no Pampa, um dos biomas mais importantes e sob maior risco atualmente em todo o país.
Iniciativa destinada a estimular a sustentação econômica com a preservação desse ambiente, a Alianza del Pastizal viu o número de criadores associados disparar de 150, em 2018, para 355 agora. Para fazer parte gratuitamente, é obrigatório conservar pelo menos metade da área de cada propriedade como campo nativo. O número e a variedade de aves típicas avistadas em cada local são um dos indicadores usados para mensurar o grau de proteção da natureza.
Há razões urgentes para agir: um levantamento da organização Mapbiomas mostra que o Pampa perdeu 32% de sua área de campo original entre 1985 e 2022 no Estado. O esforço, agora, é para estancar essa deterioração.
No interior de Bagé, o produtor rural Eduardo Braga Botelho, 47 anos, enfrenta uma batalha diária para garantir a preservação da vegetação rasteira e dos bichos que caracterizam o universo pampiano, onde circulam e se alimentam 1,8 mil cabeças de gado. Antigo desafio à biodiversidade, o capim-annoni avança com força redobrada depois de um período de três anos de secas. Para impedir que a espécie exótica tome conta dos mais de 1,5 mil hectares de área útil da Estância Santa Branca, são empregadas estratégias como a roçada química (aplicação seletiva de herbicida apenas no capim invasor).
— O annoni é uma das maiores ameaças ao Pampa hoje. Com a volta das chuvas após os anos de seca, como esse capim cresce muito rápido, ele acaba se sobrepondo à vegetação nativa. Como ele veio de uma zona árida na região Centro-Sul da África, aqui encontrou um ambiente muito favorável para se propagar. Uma única planta gera de 60 mil a 90 mil sementes — afirma o coordenador de campo da Alianza, William Madeira.
Graças a esse trabalho, o avanço do vegetal exótico está sendo contido. Eduardo Botelho afirma que a propriedade também pratica ações como rotação de animais, para evitar que a sobrecarga em uma determinada área comprometa a vegetação, com "descanso" programado de pastagens, análise do solo para eventuais correções com calcário e melhoramento do campo nativo, combinando a cobertura pré-existente com azevém. Isso garante uma forragem de alta qualidade no período de inverno, permitindo a revitalização da área sem comprometer a alimentação do gado.
— Estamos na sexta geração familiar nesta propriedade. A gente preserva a natureza porque é de onde tiramos o nosso sustento e para garantir que as futuras gerações também tirem, mas também por princípio — afirma Botelho, que ainda cria ovinos.
Nosso foco é sustentabilidade produtiva. Dizemos que cada participante (da Alianza) é um guarda-parque sem custo para o Estado. A taxa média de preservação nas propriedades é de 73% da área.
MICHAEL CARROLL
Diretor técnico da Alianza del Pastizal
Monitoramentos realizados pela Alianza demonstram que o esforço de conservação vem dando bons resultados: uma avaliação recente identificou a presença de 54 espécies de aves típicas dos campos pampianos na fazenda — cerca de metade do universo de animais que costumam frequentar esse tipo de ambiente no Estado.
— Dessas aves, três espécies estão ameaçadas, e duas quase ameaçadas. Entre aquelas sob ameaça, vimos a veste-amarela, a noivinha-de-rabo-preto e o caboclinho-de-chapéu-cinzento — afirma o coordenador de Biodiversidade da Alianza no Brasil, Eduardo Chiarani.
A Alianza também oferece uma linha de crédito especial, destinada a viabilizar modelos de produção sustentáveis no Pampa, por meio de uma parceria com o Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul (BRDE) e com recursos do Fundo Francês para o Meio Ambiente Mundial (FFEM). Em cinco anos, devem ser investidos 7 milhões de euros.
No âmbito oficial, o governo gaúcho coloca em prática o Plano de Agricultura de Baixa Emissão de Carbono (ABC+RS) para fomentar a adoção de boas práticas por meio de iniciativas como assessorias técnicas e acesso a financiamentos especiais. No ano passado, capacitações sobre tecnologias sustentáveis atingiram cerca de 80 mil produtores por meio da Emater/RS.
— Percebemos que o produtor está, cada vez mais, adotando essas boas práticas. A preservação do ambiente também traz uma grande melhoria da qualidade do solo, o que resulta em produtividade. Mais carbono no solo significa mais eficiência para armazenar água, mais vida, microrganismos e, consequentemente, mais produção — analisa o engenheiro florestal e coordenador do comitê gestor do Plano ABC+RS, Jackson Brilhante.
Requisitos para ser uma propriedade certificada da Alianza
- Propriedade localizada no bioma Pampa
- Ter ao menos 50% de campo nativo da área total da propriedade
- Alimentação animal à base de pasto. Possibilidade de suplementação até 30% da dieta
- Sistema de produção livre de confinamento
- Condições de bem-estar animal
- Atualmente, a iniciativa conta com 355 propriedades certificadas em 44 municípios do Pampa
- A iniciativa soma uma área total de 242.875 hectares, dos quais 177.619 hectares são de campos nativos conservados (73% do total)
- Além de monitorar aves, a entidade também começou a registrar a variedade de animais e flora
Conservação traz vantagens econômicas para produtores rurais
Preservar o ambiente traz benefícios à natureza e auxilia a combater o aquecimento global, mas também resulta em vantagens econômicas para produtores responsáveis, como preços mais vantajosos e melhores condições para disputar mercados cada vez mais exigentes em relação à sustentabilidade.
Um levantamento revela que o valor do quilo da carne vendida com o selo da Alianza del Pastizal, por exemplo, ficou 9,6% acima da média praticada no Estado, utilizando-se como referência os preços divulgados pelo Núcleo de Estudos em Sistemas de Produção de Bovinos de Corte e Cadeia Produtiva (NESPro) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
O Pampa é um bioma único, onde os recursos naturais disponíveis permitem a exploração econômica e a conservação do ambiente.
PEDRO PASCOTINI
Coordenador nacional da Alianza del Pastizal
O cumprimento de metas conservacionistas também é uma forma de garantir acesso a mercados protegidos por barreiras cada vez mais elevadas, como o da União Europeia. Os europeus aprovaram um conjunto de regras que, a partir de 2025, vai limitar a importação de produtos agrícolas que não tenham comprovação formal de sustentabilidade.
A pecuária gaúcha, por ser uma atividade naturalmente bem adaptada ao Pampa por não exigir desmatamento - um dos focos do Pacto Verde -, representa uma vantagem competitiva em relação a outras regiões que precisam derrubar árvores para criar pastagens.
A adoção de boas práticas também garante acesso a linhas de financiamento. Na safra 2022/2023, produtores gaúchos firmaram 5,2 mil contratos que resultaram em repasses de R$ 831 milhões para serem usados na aplicação de tecnologias sustentáveis no campo. Esse dinheiro foi suficiente para promover iniciativas em uma área de aproximadamente cem mil hectares - algo próximo a 140 mil campos de futebol. Elas incluem, por exemplo, plantio direto, integração lavoura-pecuária-floresta, sistemas de irrigação e manejo de solo.
Com foco em sustentabilidade, propriedade une pecuária, produção de vinho e turismo
Sob os cuidados da 10ª geração familiar, uma estância com 230 anos de história aposta na inovação para se manter viável economicamente ao mesmo tempo em que preserva ao menos metade de seu campo nativo no coração do Pampa. Localizada no interior de Bagé, a Estância Paraizo combina a tradicional criação de gado da região com a vitivinicultura e o turismo rural, e usa até dados de satélite para manejar seus parreirais.
— Sempre tivemos criação de bovinos e ovinos. Com a quebra do ciclo (econômico) da ovelha, ao final dos anos 1990, passamos a buscar alternativas, e a melhor foi a uva. Mais recentemente, passamos a produzir nossos próprios vinhos — afirma uma das responsáveis pela propriedade de 1,6 mil hectares, Victoria Zara Mercio.
Atualmente, os cinco hectares de vinhedos da estância produzem sete rótulos diferentes e entre 10 mil e 15 mil garrafas ao ano. Essas atividades passaram a ser complementadas pelo turismo. Às sextas e aos sábados, mediante reserva, visitantes podem conhecer o local, aproveitar a culinária pampiana e comprar o vinho produzido no próprio local.
— Conservar não quer dizer ser contra o que é novo. Aqui, por exemplo, trabalhamos com dados de satélite, que mostram quando cada lote (das uvas) está pronto para colheita — conta Victoria.
Isso é possível porque o satélite avalia a coloração das plantas e indica o estágio de maturação. Outra das principais inovações não envolve equipamentos eletrônicos, mas o bom e velho boi. Graças à combinação da pecuária com o cultivo dos vinhedos, a propriedade conseguiu eliminar o uso de herbicida na área onde ficam os parreirais.
Em vez de usar produtos químicos para evitar o crescimento excessivo do campo na linha das parreiras, os proprietários decidiram soltar os animais para pastar em meio às uvas - a liberação ocorre em momentos específicos para evitar que comam as frutas. Graças a isso, além de evitar a aplicação do herbicida, as fezes dos animais ajudam a enriquecer o solo e a garantir uvas mais robustas e saudáveis.
— Na França, por exemplo, usam ovelhas para isso. Pensamos: "por que não tentar com o gado?". Tentamos, e deu certo. Hoje, para ficar no campo, é preciso ter conhecimento e mentalidade inovadora — complementa Victoria.
As aves identificadas na Estância Paraizo
- Número de espécies campestres: 48
- Espécies prioritárias para conservação: 4 (2 ameaçadas e 2 “quase ameaçadas”)
- Espécies ameaçadas encontradas: veste-amarela e noivinha-de-rabo-preto
Criação em campo nativo garante carne de maior qualidade
A criação de gado em sistemas pastoris como os campos nativos do Pampa, além de contribuir para a preservação de um bioma ameaçado, é mais favorável para a saúde de quem consome essa carne em comparação àquela de animais em confinamento. Um estudo recente realizado por pesquisadores da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) comprova que a vegetação típica de boa parte do Estado garante cortes de carne com uma composição de gordura mais favorável do que aquela obtida por meio da oferta de grãos.
Uma das conclusões do trabalho é que, independentemente do tipo de criação, os níveis de teor lipídico (total de gordura) presentes nos 59 espécimes gaúchos analisados ficaram abaixo do padrão nacional de referência - mas o melhor desempenho ficou com aqueles criados de forma natural entre as coxilhas.
— O peso da gordura variou de 1,87%, no caso dos animais de campo nativo, a quase 3% entre aqueles de confinamento, alimentados com grãos. À medida que vai aumentando o aporte energético na dieta dos animais, aumenta também o teor de gordura na carne. Mesmo assim, o valor máximo que nós encontramos é menos da metade do que consta na Tabela Brasileira de Composição de Alimentos, que utiliza como amostra carcaças abatidas em Lins (SP) — afirma a pesquisadora da Embrapa Pecuária Sul e uma das responsáveis pelo estudo, Élen Nalério.
Quanto mais verde e diversificado o campo, e o campo nativo é muito diverso, melhores as características que serão atribuídas à carne em termos de gordura.
ÉLEN NALÉRIO
Pesquisadora da Embrapa
Outra descoberta é de que os bichos criados em meio a pastagens apresentam um perfil lipídico mais saudável para o consumo. Os pesquisadores comprovaram que esses animais, alimentados com a vegetação natural ou adubada do Pampa, têm maior presença de ômega 3, considerado benéfico à saúde humana. A vegetação puramente nativa e a nativa adubada registraram, respectivamente, participações de 2,9% e 3,2% desse tipo de ácido graxo na composição da gordura total, enquanto os confinados registraram pouco menos de 1%.
Além disso, a carne proveniente de sistemas pastoris apresentou uma relação mais equilibrada entre ômega 6 (outro tipo de ácido graxo) e ômega 3 — outro indicador de qualidade nutricional. A Organização Mundial da Saúde (OMS) preconiza que o percentual de ômega 6 em um alimento seja, no máximo, até quatro vezes superior à proporção de ômega 3. Enquanto o gado nutrido com pastagens apresentou proporção próxima de 2 para 1, os animais em confinamento superaram (4,29 para 1) a marca considerada adequada pela OMS.
— Quanto mais verde e diversificado e campo, e o campo nativo é muito diverso, melhores as características que serão atribuídas à carne em termos de gordura — complementa Élen.
O que é ESG na prática
- Sigla em inglês para Environmental, Social and Governance (Governança Corporativa, Ambiental e Social), o termo ganhou o mundo corporativo nos últimos anos.
- Na prática, representa um conjunto de diretrizes utilizadas para orientar empresas e investimentos em ações de impacto na sociedade e no meio ambiente.
- A adoção de práticas ESG se tornou um diferencial para as companhias. Elas demonstram o compromisso das empresas com a sustentabilidade, com o desenvolvimento responsável e a transparência das suas ações.
- Além das diretrizes relacionadas à questão ambiental, o conceito inclui ações de governança das empresas, como os compromissos com a diversidade nas equipes e a geração de valor na sociedade.