Com condições de solo e clima ideais, na localização do paralelo 31°, a Campanha tornou-se referência nacional na elaboração de vinhos finos e de azeite de oliva. No mesmo período, o avanço da soja na região fez o Rio Grande do Sul colher supersafras seguidas – revigorando a economia do sul do Estado, por décadas alimentada por arroz e pecuária. Agora, o conflito entre as culturas, gerado pela possível má aplicação de um herbicida nas lavouras, coloca em risco a continuidade dos investimentos em diversificação.
— O mercado de azeite de oliva no Brasil é excepcional, assim como o produto que sai daqui. As oportunidades são enormes, é uma pena que isso esteja acontecendo — lamenta Luiz Eduardo Batalha, produtor de oliveiras em Pinheiro Machado e Candiota.
Vindo de Santos (SP), Batalha passou a investir no Estado em 2004, atraído pela criação de bovinos angus. Mas firmou raízes no Sul a partir de 2010, quando começou a cultivar oliveiras.
— O terroir daqui é único, com solo específico e pelo menos 500 horas de frio abaixo de 7°C. Me animei e plantei uma média de 15 mil pés de oliveiras por ano — detalha Batalha, que nesta safra chegou a quase 500 hectares cultivados.
A maior parte da produção, 420 hectares, está concentrada em Pinheiro Machado. Mas os problemas de deriva estão em Candiota, onde arrendou 80 hectares com oliveiras de até 10 anos — vizinhas de áreas cultivadas com soja.
— Estamos vendo as árvores abortarem flores e frutos. Isso provoca uma incógnita muito grande. E na cabeça de empresário não pode ter incógnita — afirma Batalha.
Além de investir em áreas próprias, nos últimos cinco anos o empresário fomentou o cultivo de oliveiras em outras 30 propriedades na região.
— Não estou preocupado com o meu negócio. Tenho uma história de 45 anos de sucesso no agronegócio. O que mais me angustia é que dezenas de pequenos e médios produtores acreditaram em mim, investiram nas oliveiras, e agora levam esse baque — lamenta o empresário, que emprega 36 funcionários nas duas propriedades.
A área cultivada com oliveiras no Estado chegou a 4,5 mil hectares em 2018, quase 95% na Metade Sul. Em 2010, a extensão dos olivais era de 290 hectares, mais de 15 vezes inferior a hoje.
Vizinhos entram em disputa judicial
O potencial econômico trazido pelas oliveiras não atraiu apenas produtores, mas também profissionais liberais da Campanha. Um grupo de nove sócios, de Dom Pedrito e Bagé, investiu R$ 2 milhões em um empreendimento para processamento de azeitonas com a marca Azeites do Pampa.
— Colheremos nossa primeira safra sem estimativa de volume. A maioria das áreas está afetada por deriva de 2,4-D — afirma o médico André Previtali, que cultiva 26 hectares de oliveiras e 14 hectares de vinhedos com a mulher, a agrônoma Eveline Previtali.
Com os primeiros sintomas sentidos há dois anos, o casal conseguiu nesta safra juntar provas para ingressar judicialmente contra um vizinho que teria aplicado o produto em condições não recomendadas tecnicamente.
— Gravamos o momento da aplicação. Era um sábado, com ventos próximos a 30 quilômetros por hora. Temos tudo registrado. Não podemos pagar a conta desse prejuízo sozinhos – relata Previtali, que teve o laudo confirmando resíduos do químico em sua produção e na lavoura de soja vizinha.
Na safra 2018/2019 foram cultivados na regional de Bagé (20 municípios da Campanha e Fronteira Oeste) 706 mil hectares de soja. Na safra 2010/2011, a área plantada com o grão era de 176 mil hectares, crescimento de 300%, segundo a Emater.
Aplicação incorreta é a vilã, diz fabricante do produto
A má aplicação é apontada como a única razão para a deriva, informa a principal fabricante do herbicida com princípio ativo 2,4-D, a Corteva Agriscience (divisão agrícola da DowDuPont). Segundo a empresa, se aplicado corretamente, o produto é seguro tanto para a cultura alvo, quanto para os cultivos vizinhos.
A informação é reforçada pelo professor Ulisses Antuniassi, da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e consultor da Iniciativa 2,4-D — grupo formado por representantes das empresas Corteva Agriscience, Nufarm e Albaugh, com o propósito de gerar informação técnica sobre o uso correto e seguro de defensivos agrícolas.
— O 2,4-D não é mais perigoso do que os demais herbicidas. Muita informação que se propaga é mito, como ele ser mais volátil — afirma o professor, acrescentando que não há registro científico de que a deriva possa chegar a quilômetros de distância.
O ingrediente ativo 2,4-D foi colocado em reavaliação pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em 2016, mas o processo de reexame ainda não foi concluído. Sem data prevista, a decisão pode transcorrer por três caminhos: manter o registro atual, tornar o uso mais restrito ou banir o produto do mercado nacional.
— O Ministério Público entende que o herbicida é importante para a soja, mas o custo-benefício tem de ser olhado de forma multifatorial. Não só pelo viés econômico, mas também pelos impactos ao ambiente, o risco à saúde pública e os prejuízos a outras atividades, como citros, uvas e oliveiras — explica a promotora Anelise Grehs, que embasa parte do caso em estudos da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
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Resíduo da aplicação do herbicida 2,4-D é apontado como causador de perdas em uvas, oliveiras e maçãs. Zero Hora visitou sete propriedades que receberam as confirmações da deriva em Bagé, Candiota, Dom Pedrito, Santana do Livramento, Jaguari e Monte Alegre dos Campos.
Deriva vinda de longe
- Dos resultados obtidos pela Secretaria da Agricultura, chama a atenção o fato de propriedades rurais sem vizinhos contíguos com cultivo de soja também apresentarem resíduo de 2,4-D nas plantações de uvas e oliveiras.
- Mesmo em áreas onde não há lindeiro, cerca a cerca, com lavoura e viticultura, por exemplo, os sintomas de 2,4-D foram confirmados em laudos, indicando uma deriva vinda de quilômetros de distância, segundo documento da Secretaria da Agricultura encaminhado à reportagem.
- Apesar de produtores relatarem perdas em cultivos localizados a mais de 10 quilômetros das lavouras de soja, não há estudos científicos que comprovem deriva nessa distância, segundo Ulisses Antuniassi, professor da Unesp. O mais comum, segundo ele, em casos de má aplicação, são derivas de até 600 metros.