O coração parece bater descompassado, as borboletas sacodem no estômago, o pensamento fica quase obsessivo e todo tempo do mundo não é o suficiente ao lado da pessoa que é objeto de desejo e encantamento. A paixão, com seus sintomas avassaladores, é uma condição natural dos seres humanos, que busca aproximar as pessoas e consolidar vínculos. Mas assim como a paixão aparece, é natural que se atenue com o passar do tempo e dê espaço para um sentimento mais sólido: o amor.
Segundo a psiquiatra e professora da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), Carmita Abdo, paixão é algo que dá e depois passa. E, para a saúde física e emocional das pessoas, é importante que a dinâmica siga esse curso:
— A paixão é o começo de tudo, mas vai embora, se esgota naturalmente. E que bom que isso ocorre. Do contrário, nós não suportaríamos tamanha a intensidade das mudanças que a paixão causa no organismo e na vida. Teríamos aumento de pressão e uma série de sensações de esgotamento por causa de tanta energia que é liberada, acabaríamos não suportando. É como se estivéssemos sob um estado de obsessão sem fim, e não dá para ser assim — explica a sexóloga.
A psiquiatra pesquisa temas como sexualidade e relações humanas e defende que, até onde a ciência tem evidências, o tempo de duração da paixão é de seis meses a no máximo dois anos, em média. O arrebatamento característico do início dos relacionamentos, explica, tende a se prolongar mais nas relações em que há mais "desafio", nas quais os participantes não têm certeza de que o outro já foi "conquistado". Por outro lado, quando a atração é correspondida rapidamente, a tendência é de que o amor tome a frente mais cedo.
Confira a entrevista sobre o "prazo de validade" da paixão e os sinais característicos de uma relação que evoluiu para um vínculo mais profundo — ou que está fadada ao rompimento:
O que acontece com o organismo durante a paixão?
A paixão causa mudanças em certas substâncias, as quais são lançadas em quantidades diferentes no organismo se o indivíduo está apaixonado, mas isso é temporário e tende a amenizar. Há uma pesquisa de 2004 que buscou saber se as substâncias que circulam no organismo de casais apaixonados e casais que estão juntos há muito tempo (que não estão mais no estado de enamoramento) são as mesmas. Foi notado que, durante a paixão, o hormônio sexual testosterona fica em níveis mais amenos nos homens. Enquanto, nas mulheres, fica lá em cima, mais alto do que o normal.
Isso significa que os homens ficam menos propensos a sexo e mais ao romance, ao vínculo, e elas ficam mais interessadas do que o normal em um encontro no qual o sexo teria papel importante. O interessante é que essa pesquisa fez novas medições entre 12 e 24 meses depois e percebeu que, um ou dois anos depois, tudo fica igual. Ou seja, os casais enamorados passaram a ter substâncias na mesma dosagem que os não enamorados.
Durante a paixão, o hormônio sexual testosterona fica em níveis mais amenos nos homens. Enquanto, nas mulheres, fica mais alto do que o normal
CARMITA ABDO
psiquiatra
Há outras substâncias envolvidas no apaixonamento?
O cortisol também fica aumentado entre os apaixonados, porque há emoção, excitação, mas não é só isso. Quando a paixão está presente, existe uma tendência da dopamina, conhecida como "neurotransmissor da recompensa", estar em maior proporção na circulação, inclusive superando a concentração da serotonina, neurotransmissor que controla os nossos impulsos. A dopamina é como um gatilho, um start para que nos lancemos em experiências que acreditamos que nos darão recompensa, prazer, sensações agradáveis e satisfação. Outro neurotransmissor importante na paixão é a noradrenalina, que dá aquela energia e disposição para manter o interesse na pessoa.
Em resumo, a dopamina dá o gatilho, a noradrenalina mantém a energia e a serotonina dá uma controlada para que as pessoas não exagerem a ponto de entrar em um processo de inanição e esgotamento.
Pode haver exagero na paixão?
Não é possível estar nesse estado indefinidamente e intensamente porque esgota a pessoa, pode levá-la a adoecer, inclusive. Quantas pessoas não adoecem por paixão? Acabam exagerando, seja por características pessoais, por momento de vida, etc. Por exemplo, alguém que está muito solitário encontra uma outra pessoa repentinamente e, ao se ver correspondido, entrega-se de tal maneira que acaba se esgotando, prejudicando o organismo tanto no plano físico como emocional. E, quando o interesse mútuo não se mantém, esse indivíduo se machuca muito.
Qual é a diferença entre paixão correspondida e não correspondida?
Em um vínculo bilateral, a pessoa se sente recompensada e vai jogando mais e mais dopamina na circulação, de forma que aquele sentimento vai tomando conta, trazendo sensações agradáveis e mais disposição. Por outro lado, quando a paixão não é correspondida, ocorre o contrário, as substâncias não se mantêm porque não receberam estímulo para isso.
Funciona como feedback: se o indivíduo percebe que o outro está correspondendo, a situação se prolonga. Já se o indivíduo não é correspondido, entra em um estado de decepção, tristeza e sensação de abandono.
Quanto tempo dura a paixão?
Em média, a paixão dura de seis meses a dois anos, esticando muito. Ela se prolonga principalmente nos casos em que o casal ainda não realizou tudo que a paixão necessita que aconteça até que esvaneça. Os estímulos e os desafios prolongam a duração da paixão, fazem com que ela seja vivida por mais tempo, até que atinja um plano de serenidade, ao estilo "estou conquistando, mas ainda não conquistei. Estou ganhando terreno, mas ainda não cheguei lá". Mas, quando a atração é correspondida e tudo vai entrando em um plano de maior tranquilidade e afeto, pouco a pouco a relação vai mudando de conotação.
E por que chegamos a esse plano de serenidade?
Porque o contato recompensador entre o casal vai criando um vínculo e, assim, a dopamina (que antes estava transbordando) passa a ser produzida em menor quantidade, ao mesmo tempo em que entra em ação a ocitocina, a chamada substância do vínculo — a mesma que faz com que a mãe tenha um apego ao bebê.
Se for haver amor entre o casal, a ocitocina vai entrar em ação. Mas é claro que não depende só dela, é possível estar altamente apaixonada por alguém e, mesmo assim, colocar o racional em ação e perceber que "este relacionamento não é bom para mim, este cara vai acabar com a minha vida". A ocitocina trabalha para que as pessoas se vinculem, até porque a natureza precisa disso para manter a espécie, mas se um casal mantiver apenas um vínculo passional, talvez nunca realize uma relação duradoura.
Então, para a relação durar, é preciso passar por essa transição?
É natural passar daquele estágio que podemos chamar "dopaminérgico" para um estado no qual a ocitocina é o que privilegia o vínculo. É por isso que passamos para uma relação mais calma, em que a pessoa se sente confortável, (quando) garantiu que o outro vai ficar com ela e vice-versa. E aí é natural começar a pensar em dar sequência ao relacionamento, a ter ideias de ter filhos e etc.
No que a paixão se difere do amor?
A paixão é um sentimento muito mais intenso do ponto de vista do metabolismo e do psiquismo, que são altamente estimulados: a pessoa fica em alerta, altamente fixada na pessoa por quem se apaixonou. Esse alguém é o centro das suas atividades e da sua atenção, noite e dia. É um sentimento altamente envolvente e excludente, pois nada mais importa além da necessidade de estar com outro, manter-se ligada a ele e saber que ele sente o mesmo.
Na transição da paixão para o amor, o emocional vai dando lugar ao racional
CARMITA ABDO
psiquiatra
Quando a pessoa vai mudando essa necessidade de recompensa o tempo todo, quando já tem mais tranquilidade em relação à manutenção do vínculo, aí começa a entrar em uma situação de amor — ou então de desinteresse. Eu tanto posso acordar para um relacionamento afetivo como posso despertar para uma realidade que eu não estava percebendo antes, ao estilo "como assim, com quem eu estou me envolvendo?".
A diminuição da paixão tem a ver com perceber o que eu estou vivendo, como se eu conseguisse enxergar de fora. Na transição da paixão para o amor, o emocional vai dando lugar ao racional. Quando gostamos daquilo que enxergamos no outro, a gente fica. É o nascimento de um sentimento mais calmo e objetivo, no sentido de que "eu estou fazendo uma escolha", ao passo que, na paixão, você muitas vezes nem sabe direito o que foi que te atraiu naquela pessoa.
Quais são os indícios de que a paixão virou amor?
Quando você percebe que não tem a necessidade de ficar o tempo todo ao lado do outro, mas você quer aquela pessoa na sua vida, a quer bem e começa a pensar em fazer projetos e tocar a vida juntos. Ela toma uma importância não só no plano de ser minha, me pertencer, corresponder à minha paixão, mas de ser alguém que eu torço para que seja bem-sucedida e feliz. E que, se eu puder participar disso, me fará muito feliz também. Ou seja, vai mudando para algo muito mais de compartilhamento e zelo. Não que não tenha erotismo, mas o erotismo está no meio de tudo isso também.
Na transição da paixão para o amor, o que muda no sexo?
Se eu tinha uma necessidade física do outro que era arrebatadora, quando entro em uma relação de amor, isso ameniza. Não há como entrar na rotina sem que tudo se amenize. E aí é necessário ampliar contexto para que a relação possa continuar interessante. Se eu ficar só em uma vida a dois, só eu olhando para você e você para mim, perderá o sentido. É preciso haver um projeto comum de vida, desafios que envolvam o casal mutuamente para que valha a pena o vínculo. Não quer dizer prender outra pessoa, como "tudo o que um fizer o outro precisa fazer junto", e sim ter pontos comuns para poder ser interessante continuar junto. Se cada um viver sua vida de forma independente, sem nenhum ponto de contato, a relação vai acabar.
É preciso admirar para amar?
Se eu incluo a pessoa nos meus planos futuros é porque acho que ela vale a pena, eu a admiro e ela me encanta. Ela vai me apresentando todos os dias situações que confirmam que eu fiz uma boa escolha. Sempre escuto casais dizerem "nossa relação acabou porque paramos de admirar um ao outro" ou então que houve uma grande decepção que fez o amor acabar, "eu me decepcionei demais com a sua conduta nesta situação e, de repente, esvaziou tudo que eu sentia". Tudo isso pode acontecer mesmo.
O amor é exatamente um sentimento de querer o outro do jeito que ele é, querer estar ao lado dele não pelo que eu projetei
CARMITA ABDO
psiquiatra
A paixão seria um sentimento mais ligado à idealização e o amor mais genuíno?
Sim, o amor é mais genuíno. A gente fala que o amor é cego, mas ele não é, a paixão que é cega. O amor é exatamente um sentimento de querer o outro do jeito que ele é, querer estar ao lado dele não pelo que eu projetei. O amor é mais livre, te dá a liberdade de escolher. A paixão não dá liberdade de escolha, você pode acordar um dia e perceber: "meu Deus, como foi que eu cheguei aqui com essa pessoa?".
Que leitura você faz da sociedade hoje? Estamos amando menos?
O sociólogo Zygmunt Bauman criou o termo modernidade líquida, que é uma situação na qual procuramos ter o máximo de descompromisso e liberdade nas relações. Ele também deixa claro que isso não ocorre só nas relações amorosas, as pessoas fazem isso a vida toda na medida em que não moram mais sempre no mesmo lugar, não mantém os mesmos vizinhos, os mesmos amigos, não ficam muito tempo no mesmo trabalho — antes, era uma virtude entrar e permanecer, galgando degraus na empresa.
Isso acontece também nos relacionamentos, a modernidade líquida impõe que você sinta diferentemente as relações. O querer ser livre é algo que aparece muito nos consultórios, "não quero me apegar nesta pessoa porque tenho planos de viver na Europa e ela não quer". As condições econômicas e culturais de nossa época influenciam nas relações. Se, neste local, eu não encontro uma perspectiva de sobrevida, eu busco um lugar no qual isso será possível, não fico presa a alguém e morro de fome onde estou. Também há o aspecto da longevidade, afinal, se eu vou viver cem anos, não vou me ligar a alguém aos 20 e passar 80 anos com ela, vou aproveitar uma multiplicidade de parcerias, simultâneas ou sucedâneas. O mundo é tão incrível, tão fantástico e tem tantos estímulos que a relação com o outro toma uma outra dimensão.
Não é possível amar hoje como os casais amavam 50 anos atrás
CARMITA ABDO
psiquiatra
E há como amar na modernidade líquida?
Tem como amar, mas não é possível amar hoje como os casais amavam 50 anos atrás. Naquela época, a realização do amor era algo muito estimulante, não havia outros estímulos tão fantásticos. Hoje tenho a perspectiva de que, daqui uma semana, haverá alguma coisa nova acontecendo e o mundo vai estar completamente diferente, e tenho medo de perder isso se eu me fixar. Estamos percebendo que a vida é longa, que temos múltiplos interesses e que desejamos vivê-los. E que talvez vivamos na companhia de alguém ou talvez tenhamos que ter várias companhias para poder viver todas as coisas que queremos.
Não é uma visão pouco romântica?
Não, porque também é preciso dizer que o ser humano não tem um comportamento único. Então, ainda que tendência à modernidade líquida seja muito forte, ela não é absoluta. A tendência existe, sim, dá para constatar: todo mundo sabe que as pessoas substituem filhos por cachorros, rompem relacionamentos com mais facilidade e evitam se unir pelo matrimônio antes dos 30. Mas, mesmo com tudo isso, as pessoas continuam se amando, casando, constituindo família. A modernidade líquida convive com esse outro jeito de ver as relações.