"Cansei de homem", "preguiça de me envolver", "hoje em dia, só tem boy lixo". Se você é mulher, é possível que já tenha dito ou ouvido algo assim quando o assunto é relacionamento com o sexo oposto.
Este sentimento coletivo de desesperança que, muitas vezes, parece permear as relações heterossexuais recentemente ganhou um nome: heteropessimismo. O termo foi cunhado em 2019 por Asa Seresin, especialista em estudos de gênero dos Estados Unidos, que publicou um artigo sobre o tema na revista The New Inquiry.
Na definição de Asa, por mais que haja cansaço e desânimo delas em relação às vivências com homens, esse pessimismo é acompanhado pela prática paradoxal de manter a heterossexualidade em suas formas atuais. “A maioria se apega, mesmo quando a julga irredimível”, diz, em um trecho da publicação.
A atitude negativa encontrou eco nas redes sociais e o termo se popularizou. No Twitter e no TikTok, não faltam usuários dando suas versões – em frases e memes – de como o pessimismo está presente nessas relações. Embora possa afligir os dois lados, Asa aponta que ele geralmente tem um forte foco nos homens como a raiz do problema.
Seria este sentimento a cicatriz que ficou marcada nas mulheres após anos de ghosting, machismo, encontros ruins e decepções com atitudes masculinas?
Para esmiuçar o novo conceito, refletir sobre como o heteropessimismo atua na vida das mulheres e como amar apesar dele, Donna conversa, a seguir, com especialistas em psicologia e psicanálise.
Resposta delas
A expressão tem aparecido bastante no dia a dia de quem estuda os afetos. No entendimento da psicanalista Ana Suy, que é professora da PUC-PR e autora de livros como A Gente Mira no Amor e Acerta na Solidão (Paidós, 2022) e Não Pise no Meu Vazio (Planeta, 2023), o termo heteropessimismo tem sido utilizado pelas mulheres como uma resposta desapontada à posição dos homens nas relações.
Em um momento histórico e social em que deixaram de precisar de uma figura masculina que “as autorize a estudar, a abrir conta em banco e a estar na sociedade”, exemplifica Ana, e se reposicionam com relação à maternidade, trabalho e relacionamentos, elas acabam colocando em xeque a forma como os relacionamentos se dão.
— Se em outro tempo a gente precisava estar em um relacionamento com um homem para poder se situar na vida e fazer o que queria, hoje já não precisamos. Então, estou lendo esse fenômeno como um questionamento que as mulheres estão fazendo de “para que serve um relacionamento amoroso?”. Se antes a gente precisava para trabalhar, ter filhos, construir família e tudo mais, hoje em dia a gente não precisa dos homens pra isso — diz ela, ponderando tratar-se de uma espécie de reorganização: — O que não quer dizer que a gente não queira, mas essa importância é de uma outra ordem. E isso coloca os homens tendo que fazer coisas que, em outros momentos, não fizeram. Acho que muitos deles vão se tocando disso aos poucos, e outros não se tocam e vão ficando para trás.
O heteropessimismo, muitas vezes, se origina da repetição de histórias frustrantes. A questão da “autoestima inabalável do homem hétero”, as relações em que elas não se sentem bem tratadas, onde as responsabilidades são desiguais e as diferenças de gênero pesam são exemplos de situações que contribuem para esse desgaste coletivo, segundo a psicóloga e psicanalista Camila Backes, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre.
No entender da profissional, a desilusão com os relacionamentos hétero também é um reflexo da “crise da masculinidade”:
— A partir do momento em que a mulher começa a se empoderar e a viver mais o feminismo, algo que tem tomado um espaço muito grande nos últimos 10 anos, e quando o papel do homem “provedor”, “mais forte”, começa a ruir, muitos homens ficam perdidos, não sabem se relacionar ou se posicionar frente a essa nova mulher que está surgindo. Uma relação não se sustenta mais nos pilares de antigamente — afirma Camila.
Quando algo começa a se fragilizar, explica Camila, pode haver uma busca desesperada por voltar àquele lugar do passado e se fortalecer naquelas bases – e um desses lugares é o do machismo e da masculinidade tóxica. Só que, quando esses fenômenos mostram as garras hoje em dia, o pessimismo para as mulheres tende a ficar ainda maior.
— Vejamos esse boom de coaches de relacionamentos para homens nas redes sociais, a exemplo do “Calvo do Campari”, dos red pills e outros que estão listando preferências do que buscam na parceira, como se tudo o que ficasse para fora desses requisitos não pudesse se encaixar na sua vida. E trazendo um machismo completamente tóxico nesses requisitos, “tem que ser magra, tem que se submeter ao homem”. Frente a isso, vejo que as mulheres estão, sim, desenvolvendo um heteropessimismo. Olham esse tipo de lista e pensam “vou cair fora, não quero fazer parte disso aí” — afirma Camila.
O próprio universo virtual também contribui para abalar as esperanças de uma relação heterossexual satisfatória. Um dos pontos levantados por Camila é que a internet amplifica a difusão dos discursos de masculinistas e de notícias desanimadoras. No noticiário recente, por exemplo, não faltam histórias de famosos que traem namoradas grávidas e abandonam esposas doentes.
Um outro ponto levantado por Ana Suy é de que os aplicativos de relacionamento e sua forma de apresentar os pretendentes em um cardápio também podem ser problemáticos. Isso porque tendem a criar uma ilusão de que é possível escolher “a melhor pessoa” para estar com você e com quem possa ser “a sua melhor versão”:
— Muitas vezes, busca-se alguém como se estivesse fazendo um recrutamento mesmo, investigando currículo, vida. Isso é muito contrário à lógica da vida amorosa, porque, no encontro amoroso, me deixo alterar pelo outro, me deixo surpreender e também suporto não ser mais quem era antes. A experiência tem a ver com encontrar aquilo que não estava procurando. Então, acho que uma das formas de entender o heteropessimismo é que ele é efeito dessa fantasia de a gente achar que daria para “encontrar aquilo que estava procurando”, quando não dá, né?.
Como sair do pessimismo?
Em busca de uma esperança para quem é hétero, quer amar e ser amada, perguntamos às psicanalistas de que maneira é possível livrar-se do pessimismo. Camila Backes recomenda que as pessoas estejam cientes de que o amor pode ser trabalhoso.
— Quando a gente aceita que, sim, dá trabalho, fica um pouco mais fácil de lidar e de sair desse pessimismo. Se relacionar é muito sobre se abrir e ceder de vez em quando — diz.
Desviar de caminhos que a mulher sabe que são receita para o fracasso e não forçar relações que não têm como funcionar é uma das recomendações de Ana Suy para a mulher “evitar encrencas”. Mas a psicanalista observa que também é importante aceitar que, em um encontro amoroso, há sempre algo de "insondável" e "misterioso", que não pode ser "calculado previamente".
— Não tem como calcular uma rota, um caminho que vá necessariamente desembocar em um bom relacionamento, bom encontro com o outro. Quando funciona, essa não é a regra, é a exceção. Porque nós somos tão diferentes uns dos outros, ainda mais pensando nos papéis sociais de mulheres e de homens, que chega a ser surpreendente quando um casal encontra um jeito de funcionar. É por isso que acho que existe uma cota de “sorte” de encontrar alguém que tenha disposição para se abrir para o outro e para se reinventar, reinventar a vida e suportar quem a gente é — defende Ana.