Traição não tem a ver somente com relacionamento amoroso. No livro (In)fidelidades Cotidianas (Zagodoni Editora), a psicoterapeuta Anie Stürmer estende o conceito para as relações familiares, de amizade, de trabalho e na política. Em qualquer círculo social, a infidelidade está presente e pode ter uma multiplicidade de fatores, sejam internos, que envolvem a personalidade de cada um, ou externos, da relação com outra pessoa.
— Muitas vezes, a traição acontece porque foi um resultado do jeito que estava a relação, mas é difícil admitir que você também teve responsabilidade naquilo — observa a também fundadora e diretora científica do Instituto de Psicologia (IPSI), de Novo Hamburgo.
Na entrevista a seguir, a psicoterapeuta explica as traições em diferentes círculos sociais e diz que, aceite-se ou não, todos já fomos, de alguma forma, traídos e traidores.
Por que parece haver um peso maior quando a traição envolve relacionamento amoroso?
(O pai da psicanálise, Sigmund) Freud já dizia que para manter a saúde mental o indivíduo precisa poder amar e trabalhar, então a relação afetiva tem um peso grande, por isso chama mais atenção. Quando se busca entender por que o outro traiu, pode-se ver que a pessoa foi fiel a alguma situação que não necessariamente tem a ver com o parceiro. Sempre quando você precisa ser fiel a algo que está sentindo, em algum momento, vai decepcionar o outro e vai gerar culpa. Então, muitas vezes as pessoas têm dificuldade de se posicionar conectadas com aquilo que seria a sua verdade, serem fiéis a si mesmas, porque têm receio da reação do outro.
A infidelidade tem a ver mais com atos ou com caráter?
Há algumas características que são da personalidade. Por exemplo, algumas pessoas têm uma tradição de infidelidade, que é passada de pai para filho, de mãe para filha. E às vezes a pessoa age inconscientemente, sem pensar se está atingindo o outro ou não. Como se estivesse alienado a uma situação familiar, por exemplo. Existe um contexto que é complexo. Quando me refiro que a pessoa precisa ser fiel àquilo que sente, pode ficar entendido como algo limitado ou simplificado. A libido é poligâmica, o desejo não é fiel, posso me sentir atraída por qualquer pessoa, mas o que vou fazer com esse desejo vai ter que ter uma conexão com as coisas que eu sou, que eu sinto. A fidelidade a si mesmo é muito complexa, pois se uma pessoa tem uma tradição de infidelidade, ela pode estar sendo fiel à tradição e não a si. Então é necessário se conhecer, conectar-se com o sentimento. Muitas vezes, situações de infidelidade acontecem por questões inconscientes mesmo, talvez a maioria, porque a pessoa não se dá conta.
Homens são mais infiéis do que as mulheres?
Não busquei dados de pesquisa a este respeito, mas posso afirmar que todas pessoas têm desejos. Talvez os homens se autorizem mais, porque estamos em uma sociedade com uma cultura mais machista, e as mulheres ainda têm muitas amarras, mas penso as mulheres também traem, talvez na mesma proporção. Dentro da perspectiva que proponho, ambos serão responsáveis pelo ato de infidelidade.
O que é a traição institucional?
A gente pode pensar numa família. Por exemplo, um filho que deseja ter a sua vida pode ser compreendido pelos pais como alguém que está traindo as expectativas que os pais traçaram para ele. Também é muito complexo, porque quando um filho resolve se desvincular do desejo dos pais, podendo ser ele mesmo, de alguma maneira existe uma separação. Outras instituições também podem repetir este modelo da instituição familiar.
E como acontece a traição política?
Tem a ver com as promessas feitas pelos políticos e que não são cumpridas. É necessário aprender a pensar, poder duvidar, muitas vezes a gente fica alienado a algum político sem duvidar do que ele diz ou faz e aí nos tornamos fiéis de uma maneira doentia, como um rebanho que não pensa.
O comportamento do outro dá sinais de que pode ter sido infiel?
Aí é importante a questão da dúvida, você se permitir duvidar e levar em consideração a sua percepção. E isso entra em relações de trabalho, família, enfim. Quando se aprende a pensar, que é conectar com aquilo que você sente, começa fazer escolhas ligadas àquilo que você está percebendo. Às vezes, a pessoa percebe desde o início que a relação não ia dar certo, mas trai a sua percepção, e, quando de fato acontece algo, vem o “Eu sabia”. A traição a si mesmo é trair as questões que você percebe, que você duvida.
Muitas vezes, a traição acontece porque foi um resultado do jeito que estava a relação, mas é difícil admitir que você também teve responsabilidade naquilo
ANIE STÜRMER
Psicoterapeuta
Por que a infidelidade é algo que abala tanto as relações?
Todos nós, em alguma parcela, já fomos traídos ou traidores, então sempre tem um núcleo que conecta com algo dentro da gente. Quando se fala em relação amorosa, pelo menos, sempre vai ter uma pessoa que é excluída, e isso a gente já viveu. Todos nós já passamos pelo complexo edípico, já nos apaixonamos pelo pai ou pela mãe e lá pelas tantas ficamos de fora desse triângulo. Então, sentir-se excluído de uma situação é a pior sensação que se tem, mas porque a gente já a viveu. Estando de um lado ou de outro, tendo razão ou não tendo, a gente revive esta situação infantil, gerando muita raiva.
É possível estabelecer relações de confiança após uma situação de infidelidade?
Depende muito de qual a parcela de afeto, de condições de confiança que essa pessoa pode depositar na outra. Pensando nos relacionamentos, daqui a pouco, todas as coisas boas dessa relação valem mais a pena do que ficar sem. Há quem acredite que continuar com alguém que traiu é uma coisa ruim, e daí entra a questão de pensar na responsabilidade de cada um, porque é muito difícil admitir que se tem parcela nessa traição: que você também é responsável por isso, que não tem um culpado. Aí as pessoas podem continuar juntas, ultrapassando a traição casando de novo, fazendo uma outra sociedade, enfim, superando isso e evoluindo.
Para ler
- (In)Fidelidades Cotidianas
- Editora Zagodoni
- 132 páginas
- R$ 49,90
- zagodoni.com.br
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