Mesmo sendo corredora de rua há três anos e meio, Aline Ferreira Davila não tem achado fácil retomar os treinos, focados em distâncias curtas e grande velocidade, depois de 20 dias parada por causa da enchente. É por isso que no dia 3 de julho, por volta das 6h40min, a assistente social de 37 anos fazia uma força danada para se concentrar na respiração, na técnica e em não errar a passada sobre o chão irregular da Redenção, em Porto Alegre.
Cuidava também dos arredores, em alerta para qualquer perigo que pudesse aparecer nos trechos em que se afastava do treinador e dos outros atletas da manhã, ainda escura.
— Em vários momentos, você fica mais sozinha no parque e nunca é seguro para nós, mulheres. Então estava atenta. Costuma haver homens que passam e ficam te olhando de forma mais contundente, mas seguem o rumo deles. Mas naquele dia, me chamou atenção que havia esse homem sentado num banco próximo ao chafariz, debaixo de uma árvore, num frio de 5ºC. Estava quase camuflado — descreve.
Na primeira vez que passou pelo sujeito, reparou que ele a olhava. Na segunda, ouviu-o assoviar, chamando por ela. O desconhecido, em seguida, fez outro som, parecido com um resmungo, um gemido. Ao levantar os olhos para ele, Aline percebeu que o homem se tocava na região do pênis:
— É muito estranho porque parece que você quer negar, não consegue acreditar no que está vendo. Mas também dá um tino de "Não te ilude, é isso mesmo que está acontecendo". Eu não parei de correr porque seria inseguro frear ali, mas comecei a gritar muito: "Tem um tarado aqui!, Tem um nojento aqui!"
No escuro, não deu para ver o rosto do homem, que saiu caminhando escondido sob um moletom cinza. Já a raiva, a incredulidade e o peso ficaram na memória. Ela procurou as autoridades, fez boletim de ocorrência e o caso está sendo tratado pela Polícia Civil como importunação sexual, um crime que viola a liberdade sexual da mulher, mas que se diferencia do assédio sexual pois não pressupõe hierarquia profissional entre os envolvidos.
— Escutei frases tipo: "Ai, sempre foi assim" e percebi que está normalizado aceitar a importunação sexual. E é compreensível que a gente opte por fingir que não ouviu, vai que ele me dá um tapa, um soco? Mas há momentos que você não quer deixar passar e foi o que aconteceu comigo — relata a assistente social.
Apesar de todo o estigma e a exposição que rondam esse tipo de situação, Aline decidiu tornar público nas redes sociais o seu relato, que encontrou eco entre as atletas da Capital. Ao receber mensagens de seguidoras e conhecidas, descobriu que o seu caso foi um dos quatro incidentes de importunação no intervalo de cerca de 48 horas, vitimando corredoras da cidade.
A primeira foi a funcionária pública Roberta Cruz, no dia 1º de julho. Ela treinava por volta das 16h30min, na orla do Guaíba, e havia recém passado pelo CT do Internacional, em direção ao bairro, quando um homem se sentiu no direito de colocar o genital para fora das calças.
— Tinha bastante visibilidade. Ele estava encostado numa bicicleta, se masturbando virado para a calçada, querendo ser visto. O sentimento que fica é de total insegurança e medo. Depois disso, não corro mais tranquila — relata a atleta de 39 anos.
Os outros dois casos ocorreram com mulheres que preferem não se identificar. Na manhã de 2 de julho, uma terça-feira, naquele mesmo banco onde estava o importunador de Aline, um homem se masturbou olhando para outra corredora — suspeita-se de que seja o mesmo sujeito. A quarta ocorrência foi também no Parque Farroupilha, na noite de quarta-feira (3). Uma esportista corria próximo do Monumento ao Expedicionário, quando um homem lhe gritou diversas atrocidades obscenas.
Contra-ataque coletivo
Um grupo de cerca de 45 mulheres esportistas, solidárias à causa, formou-se após os incidentes. Elas organizaram uma manifestação no último sábado (13), no formato de um trote coletivo que levou mais de cem pessoas da Redenção à orla do Guaíba. Aline também deu início a um abaixo-assinado no portal change.org, que já contava com pelo menos 12 mil assinaturas até o fechamento da reportagem, para se ter uma ideia da dimensão que o assunto está tomando.
Elas demandam mais patrulhamento dos órgãos públicos responsáveis na Redenção e na Orla, garantia de iluminação pública desses espaços, funcionamento adequado das câmeras de vigilância e que estes mesmos agentes massifiquem campanhas contra o assédio e a importunação sexual. O grupo estuda, agora, como dar encaminhamento para que a petição seja encarada com relevância.
Corpos públicos
A mensagem intrínseca a estes casos de importunação sexual é de que os espaços públicos não pertencem às mulheres. Tampouco seus corpos, que são assediados, comentados e objetificados à revelia. Na leitura da advogada Rafaela Caporal, coordenadora da área de Enfrentamento às Violências da Themis, o problema é multifatorial:
— Nosso contexto social se estruturou a partir de questões do machismo, do sexismo e do sistema patriarcal, que fazem com que muitas vezes o corpo da mulher seja lido como um espaço aberto, público, como se pudesse ser assediado sem qualquer consequência. E durante muito tempo, as mulheres foram destinadas aos espaços privados, dentro de casa. Com a ascensão delas aos espaços públicos, ficou muito evidente que os homens não sabem lidar com as mulheres ocupando esse lugar e os espaços de poder.
Dado que as mulheres não vão deixar de ocupar os espaços que conquistaram, o que está claro para a advogada é que comportamentos que oprimem ou violentam a liberdade sexual — e de ir e vir — não cabem mais. Mas é preciso instrução e conscientização dessa realidade.
No entendimento da delegada Fernanda Campos Hablich, da Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (Deam), é preciso que os homens estejam mais cientes do que constitui um crime de importunação sexual e que as mulheres estejam informadas para discernir quando uma ação passa do limite e tomar as medidas cabíveis.
— Uma das lacunas é a conscientização, de mulheres, enquanto possíveis vítimas, e também dos homens, pois muitos dos que invadem a liberdade sexual delas sabem que isso não é aceito moralmente, mas não entendem que se trata de um crime e que, portanto, eles podem sofrer uma ação penal, ser presos em flagrante. Saber disso incentiva-os a se abster de fazer. E a segunda lacuna, que é algo bem difícil no Brasil, é a questão do policiamento ostensivo — afirma Fernanda.
Embora a Redenção tenha 25 câmeras de videomonitoramento, o aparelho que filma o entorno do chafariz não estava funcionando, apurou a delegada. A Secretaria Municipal de Segurança (SMSEG) afirmou, em nota, que no dia do caso de importunação a Aline Ferreira Davila, seis das câmeras do parque estavam em manutenção.
Após o ocorrido, a pasta fez uma reunião com representantes do grupo de esportistas e se comprometeu a intensificar as rondas da Guarda Municipal no local, em especial no início da manhã e no final da tarde.
Uma das demandas das atletas é que os agentes de segurança não fiquem parados em um local, mas façam rondas, já que elas estão em constante movimento pelo parque.
— A partir dos quatro casos, criamos o abaixo-assinado e o trote coletivo, mas o mais importante é que se abriu a necessidade de um movimento de mulheres corredoras contra o assédio e a importunação sexual. É importante a informação, a conscientização, não aceitar e não normalizar essas situações e fazer o boletim de ocorrência para entender, junto das instituições, em quais momentos isso se agrava, onde acontece — recomenda Aline.
Se acontecer com você
Para prevenir situações de risco, a orientação da delegada Fernanda Campos Hablich é a mulher evitar se exercitar em lugares e horários em que vai estar sozinha. Se possível, fazer exercícios acompanhada e evitar o escuro. Em caso de importunação sexual, a primeira atitude é sair da situação de risco, já que o sujeito pode estar armado ou partir para uma perseguição e agressão física. O segundo passo é pedir ajuda.
— Deve-se procurar a Brigada Militar para as orientações iniciais, que geralmente é a polícia mais fácil de acessar nas ruas. Se o suspeito estiver no local e a vítima estiver numa situação de risco, pode ligar para o 190 ou chamar a Guarda Municipal, que podem socorrê-la e tentar pegar o suspeito em flagrante. Se não for possível fazer isso na hora, a recomendação é procurar a delegacia de polícia mais próxima assim que conseguir e registrar o boletim de ocorrência — orienta Fernanda.
Embora as delegacias sejam capacitadas a atender todo o tipo de ocorrência, quando há uma delegacia da mulher no município, o recomendado é dar preferência ao local especializado, onde há mecanismos para acolher melhor a população feminina.
Como denunciar
- 190: Brigada Militar
- 180: Central de Atendimento à Mulher
- 153: Guarda Municipal
- (51) 98444-0606: WhatsApp ou Telegram para denúncias à Polícia Civil
- Pela Delegacia da Mulher online ou presencialmente em qualquer delegacia