Os planos da escritora Elisama Santos para 2020 eram ambiciosos: turnê de lançamento de seu segundo livro, sequência de cursos, palestras por diferentes Estados e por aí vai. Só que a pandemia chegou ao Brasil e a educadora parental passou a questionar se seria a hora certa de colocar na rua (e nos sites) sua nova publicação, intitulada Por que Gritamos (editora Paz & Terra, R$ 29,90 o e-book). Resolveu arriscar e teve uma surpresa: no fim das contas, o caos familiar exposto pelo confinamento fez sua obra figurar nas listas de livros mais vendidos do país no mês de maio, quando foi lançada.
– Decidi que deveríamos lançar porque as pessoas iam precisar falar sobre isso. Mas não tinha ideia da repercussão, e, no fundo, achei até que teríamos impacto negativo por conta da crise da pandemia. Se tivesse sido planejado não casava tanto com o momento (risos) – confessa com bom humor a baiana que é mãe de Miguel, sete anos, e Helena, seis.
Depois do sucesso de sua estreia com Educação Não Violenta, no ano passado, agora Elisama convida os pais a olharem para si antes de culparem a birra dos filhos por suas atitudes explosivas. Em um bate-papo por telefone, ela falou sobre como o autoconhecimento pode ajudar na mudança da relação com as crianças, as diferenças entre autoritarismo e autoridade em casa e quais os primeiros passos para transformar a vida em família. Leia a seguir:
O momento atípico que vivemos colocou o grito e a agressividade em casa ainda mais em pauta? Mães e pais estão esgotados?
Estamos vivendo um momento de muito medo, angústia, frustração, dúvida. É único na nossa história. Estamos nos confrontando com nosso universo interior de uma forma que pouca vezes fizemos na vida, e isso reflete diretamente na relação com nossos filhos e nos gritos que damos. Temos experimentado sensações hoje que não vivíamos antes. Quando alguém me pergunta como estou, respondo: "Bem no modo quarentena". É o bem que é possível (risos). Não temos mais o tempo de respirar, em que sou outras além de mãe, em que posso me encontrar, me equilibrar, conversar com pessoas, me acalmar e voltar para casa. Não temos mais esse tempo. Então, a convivência intensa tem deixado pais e crianças estressadas. Estamos vivendo um modo de operar único. Tanto as crianças que perderam a festa junina da escola, os aniversários dos amigos, não saem mais de casa, que estão com ausência de movimento, e isso é essencial para as crianças. E, ainda, estão com excesso de exposição às telas porque os pais precisam trabalhar. Isso causa estresse físico e emocional nas crianças e não sabemos lidar com isso, porque também estamos com nosso próprio estresse. É uma combinação bombástica, e os gritos saem – tanto os nossos quanto os deles.
A pandemia se tornou uma parada obrigatória para fazer refletirmos sobre maternidade, paternidade e criação de filhos? Sobre nossas escolhas?
Tem gente que está conseguindo parar para pensar na própria vida, nas escolhas, no "maternar", no "paternar", para viver experiências que nunca tinha vivido com os filhos. Mas há também quem está tão sobrecarregado e tão no modo sobrevivência que não está conseguindo pensar e refletir, só quer que acabe. Só está acordando e dormindo. Precisamos lembrar que há muitas mães solo dando conta de tudo, de trabalho, dos filhos. Tem gente saindo para trabalhar, e a convivência com as crianças fica mais tensa, não pode abraçar as crianças quando chega em casa, por exemplo, principalmente os profissionais de saúde. Há muitos modelos nesse momento, mas acredito que esses dois cenários são mais nítidos. Um são as pessoas que estão tão atropeladas pela vida que não conseguem nem refletir. E o outro é o grupo que está em casa, podendo experimentar uma convivência que nunca teve com os filhos, e que está questionando a sua própria realidade. Não conseguimos mais manter os problemas longe da nossa vista. Não é à toa que os divórcios estão aumentando. A convivência intensa fez com que alguns problemas precisem ser olhados e algumas mudanças se tornam necessárias.
O grito fala sobre mim, não é sobre o meu filho. Não existe criança que precisa apanhar.
ELISAMA SANTOS
escritora e educadora parental
E quem está tentando fazer essa reflexão, buscando uma mudança em família e exercitando a inteligência emocional encontra no Por que Gritamos uma ferramenta para esta transformação?
Generalizando, todos nós queremos uma relação de tranquilidade com o outro. Não tem pai e mãe que acorde com vontade de gritar, bater e surtar com os filhos. A não ser que tenha algum tipo de problema, de situação emocional muito complicada, a regra é acordar querendo fazer o melhor. Só falta para gente um pouco de autoconhecimento, de se entender e entender o outro. Ao longo do dia, as coisas saem do controle. Mas, na hora que acordamos, queremos fazer o melhor. Acredito que ninguém gosta de gritar com os filhos. Existe um grupo que ainda defende esses gritos porque parar de defender isso ainda mexe muito com a própria história, a própria infância, com tudo o que aprendeu sobre si e sobre a vida. Mas tem muita gente querendo fazer de uma forma diferente. Entendendo que seus pais fizerem o que podiam, mas podemos dar uns passos adiante, fazer melhor.
No fim das contas, gritar com os filhos fala mais sobre a história dos pais do que sobre a atitude das crianças?
O autoconhecimento é a chave, o começo de tudo. O Educação Não Violenta tem várias ferramentas para as pessoas lidarem com os filhos. Daí alguns me diziam: "Elisama, eu li o livro e entendi tudo, mas, na hora de colocar em prática, estou surtada, louca, grito, bato, xingo". Foi aí que percebi que não adianta saber o que fazer e não ter autocontrole para colocar em prática. Precisamos entender porque sentimos como nos sentimos, olhar para si. O grito fala sobre mim, não é sobre o meu filho. Não existe criança que precisa apanhar. A criança não perdeu a capacidade de aprender de outra forma, mas o adulto perde a capacidade de falar, chega em um limite. As pessoas precisam entender os seus limites, porque eles existem. E fazer esse caminho de uma forma amorosa é o que não aprendemos. Quando deparamos com as dificuldades, as limitações, em regra fazemos a crítica com olhar cruel. "Só faço besteira, de novo estou agindo assim, deveria fazer diferente". E não é esse olhar que peço para os pais terem consigo mesmo. Precisamos entender que, quando tenho um olhar compassivo e amoroso comigo, esse olhar transborda para a minha relação com a criança. Nossas relações, de uma forma geral, são um transbordar do que está dentro da gente. Por isso, preciso de autocompaixão pelos meus erros, entender minha história, minhas limitações e me acolher. Isso vai fluir para a relação com a criança.
Acredita que boa parte das famílias trata o grito como algo "normal"?
Somos falíveis por natureza. E eu preciso, inclusive, exercitar minha compaixão quando falho porque estou ensinando meus filhos a lidarem com os erros deles como lido com os meus. A forma como lido com a minha humanidade ensina meus filhos. Não tenho que normalizar o grito, achar que é uma forma de educar. Ou que eles só me escutam, me atendem, se eu grito. Preciso perceber que existem outras formas de educar e é um compromisso contínuo. Não é uma decisão que tomo hoje e acabou. É uma decisão que tomarei de novo daqui a meia hora, daqui a duas horas. Respiro fundo e digo: "Vou sim, é isso que tenho que fazer". Não é uma receita de bolo, não é decidir e acabou. É uma construção de todo o dia.
O grito é tão agressivo quanto a violência física? E a truculência como forma de disciplina é uma conduta que está em xeque hoje na sociedade?
Por muito tempo entendemos que a violência era apenas física. Não enxergávamos as nuances da violência, que se apresenta de diversas formas. Volta e meia converso com mães que dizem que não entendem porque agem de forma agressiva, pois não apanharam na infância e tinham uma mãe maravilhosa. Só que aí, conversando, vemos que a mãe não batia, mas fazia uma chantagem emocional imensa, humilhava de diversas formas. Podemos não perceber, mas é uma violência sim, assim como o grito. Frases humilhantes, como "você não deveria ser assim, você não é boa o suficiente". Isso é violento. Hoje, depois de olhar para dentro, reconhecer as dores que passamos, começamos a questionar porque agimos assim. Há muitos caminhos para os adultos tentarem se encontrar espalhados pela internet e, se hoje estamos buscando um caminho, é porque nos perdemos em algum momento, e geralmente é na própria infância. Aí percebemos a violência que vai nos dissociando da essência, ferindo a autoestima, a autenticidade. Precisamos de uma educação que a criança não se perca dela mesma. Na época dos nossos pais, informação era ouro. Hoje, temos um mundo novo, literalmente na mão. Precisamos nos questionar e nos desconstruir, temos ferramentas para isso.
O fato de não gritar e não usar força física ainda é associado a uma postura permissiva na educação de filhos?
Temos uma visão cheia de dicotomias. Não existe meio termo, uma zona entre os extremos. Muita gente ainda pensa que autoritarismo e autoridade são a mesma coisa. Que não existe autoridade sem autoritarismo. E há aquelas que têm preconceito, quem não quer ouvir, conhecer e ler. A gente acha que o educar é um processo automático, todo mundo educa desde que o mundo é mundo, não tem que pensar sobre isso. Mas o fato de não refletir sobre o que estamos ensinando trouxe a sociedade para o jeito que está. Precisamos questionar a educação e a forma de fazer, e é um processo difícil porque temos que olhar para nossa própria infância. Somos educados para agradar o outro, para obedecer, o que papai e mamãe gostam e não gostam. Não somos educados para pensar como nos sentimos. Tem gente que não consegue olhar para si mesmo porque é difícil ficar com a própria companhia. É um processo até conseguir se olhar e admitir as belezas e as feiuras, não somos uma coisa só. Fugimos do sombrio, mas somos tudo, temos tudo dentro da gente. A educação tradicional colocava em nós a responsabilidade dos erros dos nossos pais. Se apanhei foi porque a culpa era minha. E queremos continuar reproduzindo essa educação de não se responsabilizar pela própria atitude, de passar a culpa adiante. Educação não violenta é isso: se responsabilize por suas atitudes. Por você, pelo que você faz com seu filho. É um processo e é difícil.
Você vê os seus dois livros como complementares?
Eles conversam muito bem. Esses dias até perguntei no meu perfil no Instagram para quem leu qual ordem achava que deveria ser a melhor. Costumo dizer que quem está precisando de formas imediatas de como falar com a criança, seria o primeiro livro. Mas quem está precisando olhar para si e entender porque grita tanto, porque perde tanto a paciência, quer entender por que age desta forma, é melhor ir para o Por que Gritamos primeiro. Eles se complementam. O Educação Não Violenta é mais voltado para a relação com a criança. E o Por que Gritamos é todo voltado para a nossa relação com a gente mesmo.
Como tentar uma mudança na relação com os filhos que perdure para a vida pós-pandemia?
Educar de maneira não violenta não é passageiro, não é uma coisa que você pode "desver', sabe? Não consegue apagar isso da memória. Quando começa a dar passos para observar suas relações, é um caminho sem volta, não conseguimos mais fingir que esse caminho não existe. É um processo, mas não tem retorno. Tem altos e baixos, tropeços, têm momentos que queremos desistir. Mas ter contato com a educação não violenta e seguir com a vida como se ela não existisse, acho que não é possível, não consigo vislumbrar isso.
Mude de atitude agora!
Com mães e pais esgotados no confinamento, a conduta explosiva e baseada no grito tem se manifestado ainda mais nos lares. Confira três passos indicados por Elisama Santos para dar início a uma mudança de atitude que deve perdurar para o pós-pandemia:
Olhe para si
"A primeira coisa é olhar para si mesmo com mais amor. Somos cruéis com nossos filhos quando eles erram porque somos cruéis com nós mesmos quando erramos. Você erra e pensa: 'Sou muito ridícula, já deveria ter aprendido isso, só faço besteira'. Aí essa voz cruel transborda. O primeiro passo é ter consciência de como me trato, quais são as vozes que utilizo comigo. Porque aí vou perceber que essas vozes que uso com meu filho são as mesmas. A mudança da voz que utilizo comigo e da voz que utilizo com meu filho andam juntas".
Decisão contínua
"Educar de forma não violenta, sem gritos, é uma decisão constante, tomamos várias vezes no dia, em cada interação que tenho com meu filho e comigo. É consciente. Precisamos saber disso porque vamos errar, nos confundir, meter os pés pelas mãos. Precisamos encarar isso como um fato normal da nossa trajetória".
Compaixão com seus limites
"Agora, a compaixão é mais importante do que nunca. Estamos em casa, mas não estamos de férias, não é um ano sabático. Há um vírus mortal por aí. Estamos com medo, angústia, frustração, vivendo um tipo de luto. Quem não perdeu alguém ainda, pelo menos já perdeu planos. Do churrasco no domingo na casa dos amigos aos grandes planos, foi tudo embora. Nós estamos vivendo lutos. Não preciso ter uma superprodutividade, não preciso ter a criatividade da professora do meu filho. Preciso me perguntar o que é possível para mim hoje. Isso vai trazer mudanças para a relação com os filhos".