Acorda, prepara o café e já pensa no almoço enquanto o pequeno ainda está se vestindo. Liga o computador para trabalhar ao mesmo tempo em que coordena o homeschooling. Janta, banho e todas as tarefas domésticas pela frente. Hora de ir para a cama. Amanhã tem mais. Para muitas famílias, a pandemia fez com que dias como esse virassem rotina. Se o desafio já é grande para casais, o peso é ainda maior quando pensamos nas mães que cuidam (praticamente) sozinhas dos filhos no dia a dia. Em muitos casos, por medidas de segurança, as idas à casa dos pais foram espaçadas ou até suspensas.
No perfil @psicomaesolo, a psicóloga Fabiane Saito costuma ouvir os relatos de mães que encaram a maternidade de forma solo – na maioria das vezes porque se separaram. Com as medidas de distanciamento social, o sentimento de solidão e de esgotamento dominam as conversas na rede de apoio virtual.
– A carga mental de uma mãe solo é exaustiva. Na quarentena, a carga pesada que já existia para essa mulher certamente se potencializa, principalmente se ela não tiver uma rede de apoio – explica.
Em tempos de distanciamento social, a hora do desabafo passa a ser ainda mais virtual. Se, antes da pandemia, os grupos de mães já eram um dos refúgios para dividir os dilemas com quem vive os mesmos percalços e experiências, agora passam a ser a principal forma de encontrar apoio em dias ruins. E, em muitos casos, tornam-se a companhia perfeita para curtir até aqueles raros momentos de lazer – e de troca com outro adulto.
– São períodos que as mães precisam ter, até para falar coisas que não são referentes à maternidade. Quinze minutos por semana já ajudam bastante – reflete a psicóloga Aline Namba.
Mãe de Ana Clara, de 15 anos, e de João Pedro, de nove, ela mesma vivencia como é ter de dar conta sozinha da educação e dos cuidados de dois filhos. Poucos meses depois de se separar, em 2016, criou o grupo fechado Mães Solo no Facebook, que reúne mais de 300 mulheres.
Por lá, os desabafos e as dúvidas sobre as mais diversas questões do dia a dia – dos imbróglios da separação a uma brincadeira que ajude a entreter os pequenos – viram motivo de papo entre as mães. Que, com o passar do tempo, se tornam amigas.
A carga mental de uma mãe solo é exaustiva. Na quarentena, a carga pesada que já existia para essa mulher certamente se potencializa.
FABIANE SAITO
psicóloga
A designer de moda Fernanda Ribeiro, por exemplo, está programando um brinde virtual com outras mulheres que conheceu por um grupo de mães para brindar a mudança de endereço – o tilintar das tacinhas em versão videochamada deve ser neste final de semana. Antes disso, já rolou até uma roda de chimarrão entre elas, tudo pelo celular. No dia a dia, o papo, claro, é sobre sua vida em casa com a pequena Maria Valentina.
– Combinamos um encontro virtual para brindar, cada uma com seu espumante, na sua casa. É como estamos fazendo, porque é complicado ficar sem se ver por muito tempo – explica.
Assim como Fernanda, outras mães também encontraram formas criativas para dividir seus anseios e as pequenas alegrias de mais um dia sozinhas em casa com seus filhos. Conheça as histórias delas:
Geração internet
Antes da pandemia, gravar e editar vídeos para o YouTube jamais havia passado pela cabeça da designer Marília Polidori, de 35 anos. Mas, há pouco mais de um mês, a mesa da sala virou cenário para os vídeos em que divide a cena com o filho, Santhiago, de cinco anos.
No canal, a dupla já ensinou a fazer brincadeiras como o Jogo do Peteleco e a Corrida de Minhocas. Há, também, atividades com foco em motricidade fina, como a Chuva na Grama. A empreitada ainda é novidade na vida deles, mas, para Marília (ou Lica Polidori, como foi batizado o canal), já se tornou um jeito de dividir com outras mães algumas das formas que encontrou para entreter o pequeno em mais de três meses de confinamento.
– Comecei postando as dicas no meu Instagram. Logo, amigas minhas começaram a indicar para outras mulheres com filhos – conta Marília.
Assista a uma das brincadeiras do canal no YouTube
Para a mãe, era rotina estar sempre em busca de atividades que ajudassem no desenvolvimento de Santhiago, que tem uma paralisia hipóxico isquêmica e uma diminuição do corpo caloso – o que influencia na força muscular e na área cognitiva. Com o auxílio da avó materna do garoto, que é psicopedagoga, Marília pensava em novas brincadeiras para distrair o filho enquanto se dividia com o trabalho em home office, modalidade que já era rotina para a freelancer.
Sou uma mãe tentando acertar em casa e tentando ajudar outras mães a acertarem também.
MARÍLIA POLIDORI
mãe do Santhiago
Com o distanciamento social, a rede de apoio diminuiu. Por isso, o canal tem sido, também, uma forma de dividir o que tem dado certo na educação de Santhiago e de estar em contato com outras pessoas, “conversar com adultos”. Para os próximos vídeos, um dos planos é compartilhar um pouco da rotina dos dois em casa, no estilo vlog.
– Sou uma mãe tentando acertar em casa e tentando ajudar outras mães a acertarem também – explica.
Mas a prioridade, ressalta Marília, é sempre deixar o filho muito à vontade: nem sempre ele estará com vontade de gravar, e tudo bem. É justamente isso que faz diferença e contribui para que o canal seja uma atividade saudável para a criança, ressalta a psicóloga Aline:
– É importante saber dosar. Mas eles adoram, a geração das crianças está voltada para as redes sociais.
Para uma criança atípica, a rotina é fundamental, e foi por isso que Marília adaptou toda a sua vida para estar sempre perto do filho, desde a separação – trabalhar de casa, mesmo antes da pandemia, foi uma escolha necessária.
– Não é fácil, e tem dias que é ainda mais pesado. Sou responsável por ele o tempo todo. Se o Santhiago tiver um pesadelo à noite e não conseguir dormir, sou eu sempre que vou passar o dia com sono. Se eu precisar descer o lixo para o portão, por exemplo, preciso chamar a vizinha para olhar ele – desabafa. – Ao mesmo tempo, tenho pessoas com quem posso contar. Sou uma mãe solo, mas não sou. Mas ser a responsável por ele me dá uma energia que não está no mapa.
Tudo vezes quatro
Quando Patrícia Domingues e o então marido recorreram à fertilização in vitro para engravidar, ouviram dos médicos que as chances de dar certo na primeira vez eram baixíssimas. E deu. Quatro embriões foram fecundados – um deles parecia não estar se desenvolvendo adequadamente, explicou o doutor, mas não havia porque descartá-lo. O resultado? Os quatro embriões foram implantados, acabaram se desenvolvendo e hoje atendem por Arthur, Felipe, Gabriel e Guilherme.
Tornar-se mãe de quadrigêmeos foi, claro, um choque para a fonoaudióloga, hoje com 44 anos:
– Não sabíamos como seria. O nascimento de um filho muda a vida de uma mulher. Agora imagina com quatro ao mesmo tempo.
Desde o nascimento dos guris – que completaram 12 anos na última quarta-feira –, a mãe entendeu que planejamento e, sim, muita ajuda, eram as melhores estratégias para conseguir dar conta. Principalmente após a separação, há cinco anos, contar com o auxílio de seus pais foi fundamental para que Patrícia conseguisse trabalhar.
A partir daí, mudanças foram necessárias: trocou o apartamento por uma casa em um condomínio na zona sul da Capital, com bastante espaço para os garotos “gastarem energia”. As planilhas de organização são respeitadas à risca – hábito que traz desde a primeira infância do quarteto, quando precisava lembrar de cada detalhe para as visitas ao pediatra.
Mas, com a pandemia, a organização impecável foi por água abaixo. Sem a escola, Patrícia precisou se articular com a mãe para conseguir trabalhar, já que não entrou em home office. Tudo parecia que ia desabar, mas, aos poucos, foi entrando nos eixos:
– O início da quarentena foi uma loucura. Pensava que não ia conseguir, que ia ficar doente.
O início da quarentena foi uma loucura. Pensava que não ia conseguir, que ia ficar doente.
PATRÍCIA DOMINGUES
mãe de Arthur, Felipe, Gabriel e Guilherme
Além do auxílio da mãe, mais do que nunca, um grupo especial no WhatsApp fez diferença na rotina de Patrícia. Desde que os guris eram pequenos, as QuadriLoucas deram suporte emocional para ela – afinal, ali, todas eram também mães de quadrigêmeos. São cerca de 25 mulheres do Brasil inteiro, que dividem suas experiências e seus anseios:
– É um espaço onde a gente se sente supernormal, onde não ouço “Meu Deus, coitada!” quando digo que tenho quatro filhos. Contamos o que deu certo e o que não deu no nosso dia a dia. É um espaço onde todas se apoiam, já que estamos na mesma situação. Na quarentena, temos trocado muito.
Para a psicóloga Aline Namba, esse espaço de troca faz ainda mais diferença com mulheres que vivem uma maternidade específica – como as mães de quadrigêmeos.
– Às vezes, queremos desabafar com alguém, mas acabamos nos sentindo julgadas quando falamos com quem não vive aquilo. É importante falar sobre o problema, sem julgamento, com alguém que possa validar tuas emoções. Que apoie e que diga que também não deu conta de tudo – analisa.
Chimas e brindes virtuais
Em uma mão, o celular. Na outra, uma taça de espumante bem cheia – e com direito a repeteco, enquanto a ligação durar. Será esse um dos compromissos mais aguardados desta semana para a designer de Moda Fernanda Ribeiro, de 38 anos. Os embalos deste sábado à noite serão com as amigas do grupo das Lulus, do qual ela faz parte desde que teve a filha Maria Valentina, de seis anos. Desta vez, o encontro será ainda mais especial: além de comemorar com as amigas o seu aniversário, celebrado na semana passada, Fernanda também vai apresentar a elas a sua nova casa. Tudo virtualmente.
De receitas culinárias a dúvidas sobre aquela alergia do filho, tudo é motivo de papo no grupo de WhatsApp, que reúne 11 mulheres de diversas idades. Antes da pandemia, eram frequentes os encontros das amigas com os filhos – nos aniversários, em datas comemorativas. Neste ano, a reunião presencial ainda não aconteceu. Mas, por videochamada, a turma já combinou até um chimarrão virtual.
– São amigas com as quais eu conto a qualquer hora. Conversamos sobre tudo. Grupos como esse são uma salvação. São pessoas que gostam da gente e que, mesmo passando anos, seguimos firmes e fortes – conta Fernanda. – Recebo muita ajuda delas com dicas, companheirismo e união.
Com o exemplo da mãe, até a pequena Maria Valentina entrou na onda. Por ligação em vídeo, a garotinha marca brincadeiras virtuais com Gretha – filha de Bruna Bretas, uma das amigas de Fernanda no grupo das Lulus.
Você não tem tempo para ficar cansada e nem triste. Às vezes, tenho que segurar uma barra que não é fácil.
FERNANDA RIBEIRO
mãe da Maria Valentina
A terapia virtual com as amigas é mais um jeito para Fernanda desanuviar da rotina atribulada. Há cinco anos, conta, vive a maternidade de forma solo. Para adaptar-se à nova realidade, mudou até de carreira: hoje, cursa Pedagogia. Tudo para garantir horários que lhe permitam passar mais tempo com a filha - e, claro, conseguir dar conta.
Outra novidade é a mudança para Campo Bom, onde ficará mais perto da família, rede de apoio que deve ajudar no dia a dia. Por enquanto, o jeito foi desenvolver uma rotina regrada com Maria Valentina, com direito à brincadeiras pela manhã, atividades depois do almoço e hora de ir dormir às 21h.
– Não canso de falar que é tudo com nós. Você não tem tempo para ficar cansada e nem triste, e às vezes tenho que segurar uma barra que não é fácil. Mas ela é tudo o que eu tenho, e me retorna isso com muito amor – finaliza.