Descalça, vestindo malha, com expressão tão forte quanto acolhedora, Eva Schul flutua e salta e se mostra de alma leve ao posar para fotos que ilustram esta reportagem, no seu apartamento, em Porto Alegre. É lá que a bailarina e coreógrafa mantém o estúdio em que cria, desconstrói e remonta mundos.
Aos 74 anos, Eva é uma presença impactante na sala, no palco e na vida. E, desde muito antes de abandonar as sapatilhas de ponta para mergulhar na dança moderna, na década de 1960, ela já sabia que a arte seria seu lugar de fala — espaço onde até hoje, à frente da Ânima Companhia de Dança, discorre sobre questões que a tocam profundamente. Em sua obra, se propõe a dar voz à mulher em representações viscerais e, por vezes, perturbadoras da sociedade.
— Sempre fui inquieta e muito diferente para o meu tempo. Meus pais foram tirados de casa cedo e tiveram que criar uma filha sem nenhuma noção de como se fazia isso. Acho que já começa aí essa questão de sempre ter que me posicionar. A coisa que sempre me disseram foi: “Faz o que tu achas certo e assume a responsabilidade” — relata ela.
A realidade vivida na infância diz muito sobre a personalidade refletida em sua identidade artística. Nascida em Cremona, Itália, Eva encontrou na Capital o seu lar aos oito anos, quando a família de judeus húngaros conseguiu fugir dos campos de concentração europeus. Um ano depois, por incentivo da mãe, já dava os primeiros passos no balé. De lá para cá, fiel às suas convicções, abriu caminhos no segmento e sustenta seu nome já há quase seis décadas entre os mais relevantes da dança nacional.
Mãe de Paulo Roberto, 52 anos; Sofia, 35; e Natália, 34, a artista olha com amor para sua trajetória, mesmo tendo atravessado períodos duros, como a ditadura militar e o auge da pandemia de coronavírus. De cinco casamentos (o primeiro rompido nos anos 1970, época em que o divórcio era um grande tabu), ficaram, sobretudo, aprendizados sobre força e autoestima.
Neste 29 de abril, Dia Internacional da Dança, Eva compartilha sua visão sobre este universo e como explora o físico para extravasar a efervescência de suas ideias. Fala ainda de aspectos importantes de sua vida e do anseio por um mundo com mais justiça e igualdade. Confira a entrevista:
Onde começou essa trilha sempre na contramão do tradicional?
Eu comecei na dança clássica e abandonei, porque considerava que não fazia diferença no mundo. Ser uma bailarina clássica era reproduzir conceitos de uma época que não era minha, que não combinavam com o mundo em que eu vivia, e isso me frustrava. Encontrei na dança contemporânea uma forma de ter voz, me posicionar e falar das coisas que eu acreditava e poderiam fazer alguma diferença, nem que fosse uma gota no oceano. E fui ficando, acho que com a idade, cada vez mais panfletária. Comecei falando de uma coisa pessoal e fui me dando conta de que não era sobre mim, mas sobre as mulheres e o mundo em que vivemos.
Tu encaras isso como missão?
Acho que a arte tem obrigação, não apenas de retratar, mas de denunciar o mundo em que vive. No espetáculo Acuados, falamos sobre violência doméstica e feminicídio, e foi emocionante ver mulheres que sofreram agressões em seus casamentos durante anos — não físicas, mas verbais — e homens se dando conta de que isso é violência. É difícil de ver, principalmente para quem viveu ou teve casos na família. Aí percebemos o quanto é importante falar sobre isso.
Como era o contexto da mulher que buscava seu próprio espaço na época em que tu iniciavas tua trajetória, comparado a hoje?
Isso é histórico e universal: o ser humano não evolui. Nós vivemos em mundo absurdamente machista, criado pelo poder e onde a mulher nunca teve um papel. Pelo contrário, sempre foi muito esmagada pela sociedade. Houve grandes conquistas, mas as coisas essenciais não mudaram. A mulher ainda é considerada a dona do lar, apesar de hoje ser uma provedora. Ela tem que ser a tal “rainha do lar”. É muito nítido ver que o papel da mulher avança a duras penas e sempre contra uma barreira de preconceito, de obrigatoriedades. Ela tem que ser mãe, cuidar dos filhos, da casa, ser mãe do seu companheiro, muito mais do que sua mulher. O papel feminino cresceu, mas à base de muita luta e porrada por algum espacinho.
Qual era tua expectativa há mais de 50 anos, ao trazer um novo conceito de dança ao Brasil?
Em primeiro lugar, descobrir que existia uma forma de se expressar pela dança. Sempre fui tímida e quando vim para o Brasil eu não sabia falar a língua, não conhecia ninguém. Levei anos para conseguir me expressar verbalmente, mas fisicamente a dança contemporânea abriu essa porta. Ela já foi revolucionária no momento em que nasceu, porque botar uma malha era mostrar o corpo. Tinha muitas questões envolvidas nesse novo mundo, que era proibido, em que a mulher poderia mostrar que tinha um corpo embaixo das roupas e ele podia se mover e dizer coisas. Foi fundamental encontrar esse espaço.
O que evoluiu de lá para cá?
Ainda falta muito. O Brasil não consegue enxergar que precisa de políticas públicas para a arte. Nos anos 1970, conseguimos levar os universitários para as artes, porque queriam fazer parte da onda de novos pensamentos, e o palco era onde isso mais aparecia. Mas não se criaram condições. Os editais foram uma bênção, mas só de edital não se pode viver.
Enxergo o mundo como átomos. Se tu moves uma partícula, algo tu movimentas nesse universo. Continuo atuando, justamente, porque acredito nisso.
EVA SCHUL
Bailarina e coreógrafa
No meio disso tudo, o que tu fazes para manter a mente sã?
Hoje estou mais decepcionada do que há 40 anos. Porque tu vais enxergando que, quanto mais vivemos, mais nos damos conta de que as coisas não evoluem como deveriam. Mas sou extremamente otimista e ainda acredito que se pode fazer alguma diferença. Sempre digo que enxergo o mundo como átomos. Se tu moves uma partícula, algo tu movimentas nesse universo. Continuo atuando, justamente, porque acredito nisso. Se eu me deixar abater, o que vai mudar? Absolutamente nada.
É o que te motiva?
Isso me dá uma força de continuidade. E a possibilidade de transformar. Eu gosto muito de ser professora, ver as pessoas se transformando. É a maior satisfação que a vida pode me dar, além da minha família. Sou supermãe, superavó, mas sou muito mãe de muita gente. Minhas filhas dizem que têm excesso de irmãos (risos).
E como é a vó Eva?
É completamente alucinada e permissiva, que não sabe dizer não (risos). Tenho quatro netos, todos pequenos, entre quatro e oito anos. Eles entram na minha casa já dizendo: “Vovó, vamos brincar!”. E brinco mesmo. Apesar de que esses dois anos de pandemia derrubaram um pouco o meu físico, pois fiquei na frente de um computador com uma superexigência — porque todo mundo achava que, se a gente estava online, estava disponível. Nunca dei tanta palestra, aula online, live. Foi o momento em que comecei a dizer, pela primeira vez na vida, “não posso”. Eu parei de me mover, porque estava ocupada no computador e meu corpo realmente reclamou.
O corpo começou a doer?
Adoeci de verdade, quase morri. Isso acontece quando se fica parada.
A maturidade também traz mudanças físicas significativas. Como foi essa transição pra ti?
Vou te dizer que não senti. É claro que, para uma bailarina, é muito mais difícil olhar para o corpo decaindo do que para as questões de mobilidade. Mas, como a dança que eu faço é muito de consciência corporal e saúde, o fundamental está sedimentado no corpo. Articulações livres, um centro muito firme. Isso faz diferença. Tenho alguns probleminhas de artrose, mas consigo superar através de um movimento saudável. Sempre consegui. Por exemplo, tive as duas meninas, aos 39 e 40 anos, e pensei que meu corpo sentiria mais, mas não precisei me preocupar, porque ele estava muito ativo. Agora, com 74, em dois anos de pandemia, sinto mais do que em qualquer outra época. Muita gente teve problemas mentais, mas eu tive mais físicos.
Acho que ficar sozinha não é solidão, desde que tu entendas que podes fazer tudo o que sempre quis e não tem o que te impeça.
EVA SCHUL
Bailarina e coreógrafa
E como tem sido viver esta fase solteira?
Eu fui casada cinco vezes e não quero mais ser. Me dou bem comigo mesma, sou muito feliz. Relacionamentos têm questões que passam por necessidades que podem não coincidir e nos fazer abrir mão da individualidade. Acho que ficar sozinha não é solidão, desde que tu entendas que podes fazer tudo o que sempre quis e não tem o que te impeça. Não é que eu recomende, mas aprender a ficar sozinha é muito importante. E tenho tantos bons amigos e uma família tão amorosa que não preciso de um companheiro dentro de casa.
Já realizou tudo o que desejava na vida? Falta alguma coisa ainda?
O mal do meu país é que, aos 74 anos, não posso deixar de trabalhar um dia ou não sobrevivo. Ao mesmo tempo, acho que conquistei tudo o que poderia querer da minha vida. Continuo com um desejo que, para mim, é fundamental, que é um mundo melhor, preocupado com questões sociais. Mais amoroso.
Existe a hora de parar?
De jeito nenhum! Na verdade, as pessoas sempre consideram assim: “Ah, ninguém é capaz de ser um atleta com cento e poucos anos”. Mas precisa ser um atleta? Tu tens que ser uma pessoa saudável.
O que gostas de fazer quando não estás dançando?
Sou fissurada por cinema e leio feito uma condenada. Nos anos 1970, sofri um acidente de palco e quebrei sete vértebras da coluna. Fiquei dois anos deitada em uma maca de madeira, imóvel, para proteger a medula. Naqueles dois anos, li um sebo quase inteiro. Gosto muito, e isso é fundamental para o que desenvolvo, pois a gente constrói conceitos em cima de leituras.
E para o futuro? Quais os próximos projetos?
O mais importante é o que estou chamando de Salém, sobre a questão feminista, das “bruxas” da Idade Média até hoje. O corpo, a liberdade de ser mulher e de fazer escolhas como mulher. Espero estrear ainda até o final do ano.