Conversar com Eva Schul é caminhar por uma trilha alucinante através da história da dança moderna. Eva começou a dançar ainda menininha, pouco depois de caminhar.
– Minha primeira infância foi no Uruguai, eu ouvia música e já saía saracoteando – conta Eva, 71 anos, sendo 55 de carreira, a contar desde a formatura em balé, aos 16.
Eva esteve em Caxias do Sul na semana passada, por conta da itinerância estadual dos 10 anos do espetáculo Tão longe, tão perto, tão perto, TÃO.... A ousadia sempre foi a sua marca. E continua a ser, a começar pelo corte de cabelo, que em nada remete a uma senhora de 70 e poucos anos (segundo os padrões sociais), seja na abordagem dos seus espetáculos, que têm a bandeira do feminismo como estandarte.
– Eu sou muito engajada! Eu acho que a arte é uma ação política. A plateia tem de sair do teatro pensando naquilo que foi mostrado e querendo mudar esse mundo – defende.
Seu espetáculo mais recente, e que até agora sem previsão de vir à Caxias, é Acuados, que trata de violência doméstica e feminicídio.
– Acuados é cruel, as pessoas choram muito. Na hora do debate, os jovens mostram-se engajados. Já os mais velhos, ouvem muito assustados, porque se dão conta de que não estavam prestando atenção para isso – argumenta.
A respeito do processo de criação, trabalha de uma forma incomum, em se tratando de dança.
– Eu faço questão de sentar à mesa, proponho um tema, trago bibliografia, a gente lê, estuda, debate. Só partimos para o movimento depois que o bailarino se apropria da temática. Então eu sugiro temas de improvisação e os bailarinos criam os movimentos. Aí é que eu começo meu trabalho de orquestrar, digo a eles que sou uma maestrina.
Eva não demostra que está a diminuir o ritmo, como boa parte sonha quando ultrapassa a linha dos 60 anos. Muito pelo contrário, mostra-se inquieta e provocativa. Parece não conseguir reter o fluxo do pensamento e da criação artística. Talvez a explicação para esse comportamento de quem está sempre atrás de desafios vem lá da época em que a bailarina, então com 16, decidiu correr o mundo.
Nova York - parte 1
Eva pisou em Nova York em dois momentos distintos da sua vida. Foram experiências antagônicas, mas que dizem muito sobre a sua formação artística. A primeira delas foi em 1964.
– Quando eu me formei no balé, recebi um convite do Emilio Luis Martins, que era bailarino do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, para ir para lá. Meu pai disse “Se tu vai sair de casa, tens de ir para o melhor lugar. Onde tu acha que é o melhor?”. Eu respondi: “Eu quero ir para Nova York”. Fiz a audição no New York City Ballet e entrei como estagiária.
Depois de um ano e meio com uma exigente rotina de ensaios, com ênfase na parte técnica, Eva decidiu que não queria mais a vida de “colocar sapatilha de ponta e virar uma princesa o dia todo”.
– Eu me sentia uma máquina, não queria isso para a minha vida.
Nova York - parte 2
Em 1975, Eva teve uma segunda oportunidade. Recebeu convite de Alwin Nikolais (1910-1993) e decidiu voltar a Nova York. Deixou para trás o conceituado estúdio de artes Mudança, que era protagonista de um movimento artístico em Porto Alegre e lançou-se em uma epopeia que mudou para sempre, não apenas a sua vida, mas a história da dança no Brasil.
– Fiquei sete anos em Nova York, trabalhando com a minha musa que é a Hanya Holm (1893-1992). A Hanya já tinha 80 e poucos anos, e era um gênio, nunca mostrou um movimento na vida. Ela só falava, dando ideias chave – recorda.
Foram anos intensos e Eva aproveitou, literalmente, cada segundo.
– Eu fazia 10h de aula por dia. Quatro no estúdio do Nikolais, com a Hanya, e depois o resto do dia, em outros estúdios. Fiz aulas com a Martha Graham (1894-1991) com o Merce Cunningham (1919-2009), e também no Judson Dance Theater. Dormia 3h por noite, porque de madrugada tinha de trabalhar para me sustentar. Eu trabalhava em um atelier de alta costura que era 24h. Só tinham artistas, porque era o jeito de ter o dia livre para fazer tudo o que a gente queria.
De volta ao Brasil
Em 1978, de férias da temporada em Nova York, Eva voltou ao Brasil para estrear um trabalho com o estúdio Mudança, no Teatro Renascença, em Porto Alegre. É quando Eva acaba aproximando-se da cena frutífera da Fundação Guaíra, que fervilhava com a criação de espetáculos de teatro e dança e concertos de música.
– Fiquei duas semanas em Curitiba montando Os Saltimbancos, nem vi a estreia, tive de ir embora. Sei que foi um sucesso e viajaram para todo o Brasil. No ano seguinte, quando vim de férias, de novo, entrando em casa, com as malas nas mãos, toca o telefone, e eu que atendi. Era o diretor do Guaíra me implorando para dar um workshop de corpo de ator.
Em 1984, Eva faria parte do grupo de professores que criaria os cursos superiores de Dança e Teatro da Fundação Teatro Guaíra, em convênio com a Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC/PR), e ministra disciplinas como as de técnica de dança, improvisação, composição coreográfica, didática e expressão corporal.
Plantar e colher
Eva semeou tanto em terras longínquas, mas sempre soube escolher terrenos férteis. Por isso, têm colhido bons frutos por onde passa. Nutre-se de esperança por um mundo melhor através do hibridismo das linguagens. É conhecida não apenas por explorar os limites da dança, mas sobretudo, a temperar bem suas obras com música, teatro e performance.
– Fiz artes visuais, estudei música, todas essas coisas compõem minha minha obra como artista. Quando voltei ao Brasil, para trabalhar no Guaíra, vi que eu tinha muito para dar – avalia.
Para Eva, a ação artística precisa ter conceitos bem definidos para que a plateia possa não apenas fruir, mas ser provocada a pensar.
– Eu sempre fui uma contadora de histórias, por isso, estou fora do padrão da dança. O essencial é ter um conceito, não interessa se é abstrato ou se é filosófico. Quando tu assiste a um espetáculo tem de saber porque está ali. Agora, se o autor não sabe explicar porque está ali, o espectador não vai saber jamais.
Daqui para a eternidade
Eva diz que a arte não tem nada a ver com entretenimento.
– Pra mim, arte é uma responsabilidade. Porque é um retrato do homem no seu tempo e no seu ambiente. Então, eu te diria que a arte evoluiu muito como linguagem, mas nada como estrutura política. As leis são derrubadas com facilidade. Agora mesmo, em Porto Alegre, a gente lutou dois anos para a Cia Municipal de Dança ser lei, e o atual prefeito disse que jamais iria pagar bailarinos para dançar, e engavetou a proposta.
Com mais de 50 anos de criação artística, quando provocada a pensar sobre os próximos anos, como se pudesse nos esperar lá no final dessa estrada futurista, Eva sorri.
– Difícil imaginar, porque no momento atual a dança anda um passo para frente e dois para trás.
Depois da piada, olha nos olhos e diz, não por profecia, nem por isso menos esperançosa:
– Seria lindo poder estar aqui daqui 50 anos e ver que realmente estamos vivendo arte e cultura.