Semana passada, fui surpreendida por uma contratura traiçoeira: começou levezinha, no pescoço, e logo se expandiu para as costas e um dos braços. Dor infernal, de acabar com o bom humor. Achei que um analgésico daria conta, mas não tinha nenhum em casa, então pedi socorro por WhatsApp a um vizinho mais prevenido que eu. Ele colocou a cartela no chão do elevador e apertou no botão do meu andar – não me entregou em mãos por motivos óbvios.
A vida do lado de fora das nossas janelas terá que ser repensada – e reescrita.
Mas o analgésico não foi suficiente. Já não conseguia me mexer, não havia posição para dormir, e pior, não conseguia mais escrever. Eu precisava de um fisioterapeuta pra ontem, e que fosse valente, já que seria impossível me ajudar a distância. Quis a divina providência que me recomendassem a Carol, uma vizinha não de prédio, mas de quarteirão, que se prontificou a me atender em casa. Chegou com máscara, luvas, álcool gel e logo perscrutou cada uma de minhas costelas e meus músculos. Eu estava com um nó cego dentro do corpo.
Ela aliviou a situação, mas deu a real: eu não ficaria boa num piscar de olhos. Sugeriu um pelotão de medicamentos e ordenou: repouso absoluto. Eu não poderia nem mesmo chegar perto do computador. Pensei: ok, tenho alguns textos de reserva justamente para essas situações. E relaxei.
Até que chegou o dia de enviar esta coluna para a redação do jornal. Abri meu arquivo de textos inéditos: qual escolher? Comecei a lê-los e me dei conta de que nenhum servia. Todos estavam relacionados a situações presenciais, ruas da cidade, hábitos culturais, preocupações que destoariam do que estamos vivendo hoje. Percebi que não era apenas o meu corpo que não podia sair de casa: minhas reflexões anteriores ao coronavírus também não.
A danada da contratura foi provocada por uma manobra desajeitada durante um exercício e pela má postura ao digitar no teclado, mas não se pode descartar os efeitos emocionais da pandemia. O estresse de ter a rotina interrompida. A aflição por quem não tem condições de ficar em casa, ou que nem casa tem. O medo de perder amigos e parentes. A falta de um prazo para o fim desta ameaça. As consequências econômicas, que serão dramáticas. A ausência de uma liderança política que nos passe confiança. Sorte de quem consegue peitar a crise sem desenvolver uma taquicardia, sem depressão, sem insônia, sem as entranhas acusarem o golpe. Eu, que me considero calma, amiga íntima do Dalai Lama, não consegui evitar a somatização.
Só me resta festejar a inexistência de exame antidoping para colunistas. Estou escrevendo este texto ainda sentindo dores lombares e ingerindo alguns comprimidos, mas não tem outra saída: daqui pra frente, o assunto mudou. A vida do lado de fora das nossas janelas terá que ser repensada – e reescrita.