Normalmente, vou bastante ao supermercado. Duas vezes por semana, no mínimo. As pessoas estão acostumadas a me encontrar pelos corredores e, quando falam comigo, são sempre muito simpáticas. Mas um cliente, certa vez, conseguiu me constranger. Sem dar bom dia e sem se apresentar, fitou meu carrinho com os dois olhos arregalados e exclamou num tom de voz muito acima do razoável: “Vamos ver o que a Martha Medeiros come!”. Fiquei muda, perplexa. Quando ele fez menção de tocar nas minhas compras, desviei e dei-lhe as costas — não disse o que ele merecia escutar. Sou covarde diante da iminência de um barraco.
Me doeu ver uma senhorinha de uns quase 90 anos comprar apenas um litro de leite, um pacote de macarrão, dois tomates, uma cebola e três sabonetes. Nem precisou de carrinho, a cestinha deu conta.
Foi quando me dei conta do quão íntimo é o conteúdo dos nossos carrinhos. É possível identificar o estilo de vida de uma pessoa apenas analisando suas compras regulares no súper: se mora sozinha, se tem crianças em casa, se tem filhos adolescentes, se tem muito dinheiro, se está de dieta, se é vegetariana. No filme Divã, a personagem de Lilia Cabral, recém-separada, encontra o ex-marido entre as gôndolas do súper e não resiste em dar uma conferida no carrinho dele. Repara que o ex comprou uma garrafa de um vinho caro. Espumando de raiva, mas mantendo o sangue frio, comenta: “Humm, comprando vinho de R$ 80 ... quando éramos casados o teto era R$ 35”. Ele dá uma desculpa qualquer, mas não adianta: ela acaba de descobrir que o bandido já está namorando.
O carrinho entrega tudo: se você só come carne de segunda, se tem cachorro, se não se preocupa com o peso, se está menstruada, se depila com gilete, se pretende maratonar uma série no sofá com um balde de pipoca no colo ou se vai dar uma festa em casa — não é possível que aquela quantidade de garrafas de espumante seja apenas para fazer estoque.
Nos primeiros dias da crise do coronavírus, quando a população invadiu os supermercados para se abastecer, os carrinhos deduraram os mais egoístas. Clientes que conduziam carrinhos abarrotados de papel higiênico e garrafas de álcool eram vistos como inimigos da população, pessoas sem empatia. Da mesma forma, mas invertida, me doeu ver uma senhorinha de uns quase 90 anos comprar apenas um litro de leite, um pacote de macarrão, dois tomates, uma cebola e três sabonetes. Nem precisou de carrinho, a cestinha deu conta.
Entre este momento em que escrevo até o momento em que serei lida transcorrerá uma semana. Não sei como estará o mundo, nem o Brasil, já que as notícias têm sido atualizadas a cada 10 minutos. Nossa vida melhorou? Piorou? Seja como for, espero o básico: que a gente consiga continuar se abastecendo de comida e de respeito pelos outros, que é o que faz uma sociedade doente receber alta.