Pare por um instante e imagine a sua casa sem um fogão. As paredes continuam em pé, a mesa segue com as cadeiras, o sofá ainda tem uma mantinha colorida para não manchar, as panelas ainda estão no armário. Talvez tenha uma ou duas goteiras quando chove, mas não há fogão. Não há como cozinhar, seja arroz, feijão, ovo, macarrão. Não tem como esquentar a água do chimarrão ou preparar as batatas da salada de maionese que acompanha o churrasco. Esse cenário pode ser distópico para quem tem o eletrodoméstico em casa, mas é a realidade de mais de 615 mil pessoas no Rio Grande do Sul hoje, segundo o relatório mais atualizado da Defesa Civil.
Com as enchentes que assolam o nosso Estado desde o início do mês de maio, muitas famílias vivem hoje não só com a falta de um fogão no dia a dia, mas também de comida. E todos sabemos que sem comida não há como viver. Por isso, as cozinhas solidárias ou cozinhas comunitárias são tão importantes nesses – e em todos os outros – momentos, já que a insegurança alimentar afetava cerca de 18,7% dos domicílios rio-grandenses em 2023, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADC) do IBGE.
O estudo divide a situação das famílias em três módulos: leve, moderado e grave. Se enquadra na insegurança alimentar leve quem tem alguma preocupação ou incerteza de acesso aos alimentos. Assim, prevalece a quantidade em relação a qualidade. As famílias que se enquadram no grau moderado são aquelas que reduzem a quantidade de comida para os adultos, privilegiando as crianças, e/ou têm algum tipo de mudança nos seus padrões de alimentação diária. Já os domicílios com insegurança alimentar grave são aqueles em que a condição afeta também as crianças e os jovens. Para o IBGE, nesse grau de vulnerabilidade, os residentes já começam a passar fome.
O QUE JÁ EXISTIA
Aberta em 2021, para auxiliar as pessoas em meio à pandemia de covid-19, a Cozinha Solidária da Azenha funciona todos os dias da semana, das 9h às 18h, distribuindo café da manhã, em parceria com o clube de pães Amada Massa, e almoço para trabalhadores em geral e pessoas em situação de rua. Em 30 meses de atuação, a iniciativa do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) já entregou mais de 150 mil refeições na região; só em fevereiro desse ano, foram mais de 4.800.
Após as trágicas chuvas que atingiram Porto Alegre, os 22 militantes que atuavam na produção das marmitas receberam a companhia de outros 60 voluntários para distribuírem quase quatro mil refeições por dia. Isso representa 1.000% a mais em relação às produções em dias comuns. O preparo só é possível graças às doações, segundo Eduardo Osório, da coordenação nacional do MTST.
– Contamos com a doação de movimentos parceiros, da sociedade civil e recebimento de cestas básicas do governo federal, defesa civil do RS e CONAB – afirma o coordenador.
Mas, com o cenário atual, Eduardo entende que são necessárias mais cozinhas como essa.
– Nossa proposta é a ampliação das Cozinhas Solidárias de Emergência (como a da Escola Frei Pacífico), devidamente instaladas próximo das regiões impactadas, bem como nos territórios em que estão sendo acolhidas famílias – diz.
DEPOIS DAS CHUVAS
“Vou dizer pra ti que aqui tá melhor do que na casa de qualquer um. Aqui tem comida de tudo quanto é lado, tudo quanto é jeito: é banana, é bolachinha de marca boa, é Nescau, é chá, é refri, é a quentinha de tudo quanto é comida diferente. Ô Márcia, vou falar pra ti, eu vou ficar um bom tempo aqui. Tá maravilhoso aqui!”
O áudio que circula nas redes sociais há alguns dias reforça as condições que parte da população enfrentava antes das chuvas, mas que, com a força das cozinhas comunitárias, do voluntariado e das doações, pode ser, mesmo que momentaneamente, melhor.
– Vemos um cenário de cozinhas solidárias construídas dentro de restaurantes, comércios e até mesmo casas. Há, ainda, cozinhas dentro de abrigos e universidades – percebe Franciele Reche, professora de Gastronomia da Unisinos, pesquisadora em inovação social, alimentação e sociedade e colaboradora na concepção de cozinhas solidárias e comunitárias na Capital.
No Campus de São Leopoldo da Unisinos, foi montada uma cozinha solidária dentro dos laboratórios de aulas dos universitários para a produção de quase 10 mil refeições diárias, entre cafés, lanches, almoços e jantares, a serem distribuídas para diversos lugares, como quilombos, igrejas e outros locais que abrigam os desalojados da Região Metropolitana.
- Em meio a essa situação catastrófica, em que as enchentes potencializam a vulnerabilidade das pessoas, elas irão priorizar ter uma casa para voltar e assim não terão recursos financeiros para se alimentar - explica Franciele.
Sabemos que a comida, além de alimentar, é um conforto para quem está nessa circunstância ou que convive com a falta de alimento na mesa. Por isso, apesar das dificuldades enfrentadas hoje por milhares de pessoas, há um ponto positivo a ser analisado: a solidariedade, a empatia e a força do povo possibilitam que quem perdeu tudo se alimente da melhor forma possível todos os dias.
– As cozinhas solidárias já existem há anos e sempre tiveram o propósito de erradicar a fome e, portanto, manter as pessoas vivas. Estamos vendo nesses últimos 10 dias a sua potência e importância. As novas projeções serão eficazes na construção da noção de direito à alimentação e de entendimento que uma cozinha solidária é mais que solução habilitante, é transformação – conclui.
As águas turvas da maior enchente da história do Rio Grande do Sul levaram incontáveis histórias, coisas, casas, objetos e memórias consigo, mas trouxeram à tona o amor ao próximo em forma de comida e alimento.